O presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, e o
chanceler alemão, Olaf Scholz, apertam as mãos durante uma declaração conjunta
com o presidente francês, Emmanuel Macron, no Palácio do Eliseu, em Paris,
França, em 8 de fevereiro de 2023. (Foto: REUTERS/Sarah Meyssonnier/Pool)
(Publicado originalmente no Outras Palavras)
Ao dissolver a Assembleia Nacional e
convocar eleições antecipadas no domingo (9/6), logo depois de sofrer derrota
política avassaladora, o presidente da França, Emmanuel Macron, deu o tom das
manchetes e análises sobre o resultado da disputa pelo Parlamento Europeu. A
extrema direita teria obtido, em todo o velho continente, uma grande vitória. O
resultado estaria fazendo tremer as instituições. Somado à alta probabilidade
de triunfo de Donald Trump nos EUA, em novembro, ele pressagiaria o pior.
Esta análise oculta mais do que revela. O avanço da ultradireita é real. Mas sua causa maior não é uma onda súbita e incompreensível de conservadorismo do eleitorado. Como nos anos 1920 e 30, o avanço do “neo”fascismo deve-se ao fiasco desastroso dos governos que adotaram, nos últimos anos políticas ultraliberais. Destacam-se os da França e Alemanha, eixo permanente da União Europeia.
Ao embarcarem de armas e bagagens
na guerra dos EUA contra a Rússia, eles debilitaram suas economias, agravaram a
crise social e ampliaram o descrédito na democracia. O retrocesso, portanto,
não é um destino, mas o resultado de políticas reversíveis. Os fatos podem
dizer muito também ao Brasil. Porém, a mídia conservadora calará a respeito e
apenas parte da esquerda parece atentar para o problema real.
Os gráficos a seguir – do The Guardian e Le Monde – são um primeiro elemento para compreender o resultado além dos mitos. Eles mostram que as duas principais correntes da ultradireita europeia cresceram de fato – porém, moderadamente. O grupo parlamentar ECR (Conservadores e Reformistas da Europa) que é pró-OTAN e cuja referência principal é a primeira ministra italiana, Giorgia Meloni, conquistou quatro novas cadeiras (+5,8%). Agora tem 73 dos 720 assentos do parlamento, ou 10,1%.
A facção Identidade e Democracia (ID), liderada pela francesa Marine Le Pen e
contrária à guerra na Ucrânia, cresceu 18,3% e formou uma bancada de 58
parlamentares. A estes somam-se ultradireitistas rejeitados no momento pelos
dois blocos (por sua proximidade com o nazismo), em especial a Alternativa para
a Alemanha (AfD), que elegeu 15 eurodeputados (tinha 11).
Continue lendo.
As imagens mostram que as oscilações
principais não foram estas – e sim as que puniram os partidos mais favoráveis à
guerra e que mais se identificaram com o ataque aos direitos sociais. O bloco
parlamentar Renovação, de Emmanuel Macron, abertamente neoliberal, perdeu 22,5%
de sua bancada e se reduziu a 79 parlamentares. Os Verdes, da ministra das
Relações Exteriores da Alemanha, Annalena Baerbock, talvez a política europeia
mais belicista, recuaram ainda mais (-27,8%). Os demais blocos mantiveram,
grosso modo, as representações anteriores. A centro-direita, que se
autodenomina Partido Popular Europeu (EEP), manteve-se dominante, com 185
cadeiras (nove a mais que em 2019). Os social-democratas perderam dois assentos
mas conservam-se como o segundo maior bloco, com 137. A esquerda perdeu 1 e
ficou com 36 – mas aí não estão contados os seis da Iniciativa Sarah
Wagenknecht (BSW), recém-fundada na Alemanha, outra vitoriosa no pleito (veja
nosso texto a seu respeito).
Porém, o cômputo geral dos resultados
ainda é insuficiente para identificar o fenômeno mais marcante das eleições.
Ele surge quando se examinam os movimentos na França e Alemanha – o núcleo
histórico da União Europeia (UE) e os países em que se se produziram os
fenômenos mais destacados do pleito. Ambos foram o eixo do alinhamento da UE à
guerra dos EUA e da OTAN contra a Rússia, na Ucrânia. A atitude de seus chefes
de governo – Emmanuel Macron e Olaf Scholz – foi vista pela mídia internacional
como marco da emergência de uma “nova Europa” [Veja, por exemplo, estas
matérias (1 2), na revista Economist]. Nos dois casos, os governos sofreram no
último domingo derrotas dramáticas.
A adesão de Emmanuel Macron à cruzada
para liquidar Putin foi tão completa que ele chegou a falar por duas vezes no
envio aberto de soldados franceses à Ucrânia – algo que nem Joe Biden cogitou,
em relação aos EUA. A oferta faria parte de um estranho passo da UE em busca de
maior presença geopolítica no mundo. Diante das incertezas sobre as eleições
norte-americanas, não caberia à Europa buscar paz e estabilidade – mas
tornar-se uma espécie de ponta de lança dos interesses do Ocidente diante da
Rússia e da China. O presidente francês seguiu o script comme il faut.
Ao mesmo tempo resignou-se às
políticas de “austeridade” ditadas pelo Banco Central Europeu. Por isso, os
recursos extraordinários destinados à ampliação do orçamento militar resultaram
em cortes nos gastos sociais. O efeito mais grave foi a contrarreforma da
Previdência. Entre janeiro e abril de 2023, Macron fez tramitar um projeto de
lei que eliminava diversos direitos relacionados à Seguridade Social – e
elevava a idade mínima de aposentadoria de 62 para até 67 anos. A proposta não
enfrentou apenas a reação dos sindicatos, que realizaram três greves gerais com
enorme adesão. Ela era rechaçada por 70% dos eleitores e não obteve a maioria
parlamentar necessária – até que Macron recorreu a um dispositivo autoritário
(o artigo 47-1 da Constituição) que permite ao Executivo legislar, restando aos
que se opõem derrubá-lo por uma improvável moção de censura.
A França foi forçada a engolir a
redução dos direitos, mas o resultado eleitoral deste domingo expõe o desgaste
de Macron. O bloco parlamentar do presidente, que obteve 44,8% das cadeiras na
Assembleia Nacional há menos de dois anos, despencou para 16%. Diante da
divisão da esquerda e centro-esquerda, os dois grupos de ultradireita
dispararam. A Reunião Nacional (de Marine Le Pen) avançou para 31,4% (contra
18,7% em 2022) e a Reconquista (ligada à ECR e hoje sem representação na
Assembleia) obteve 5,5%.
Algo semelhante se deu na Alemanha,
embora sem um crescimento notável do fascismo. Em nome de um alinhamento total
com os EUA, que contraria décadas de busca de independência por parte de
Berlim, o chanceler Olaf Scholz (do Partido Social-Democrata – SDP) abriu mão
das bases em que se sustentava a indústria do país – em especial, o acesso
fácil e barato à energia exportada pela Rússia. A submissão chegou a ponto de
não investigar a explosão dos gasodutos NordStream 1 e 2, provavelmente
perpretada por Washington.
O gás russo foi substituído pelo gás
natural liquefeito (GNL) norte-americano, muito mais caro e devastador do
ambiente (é extraído por meio de fragmentação rochosa, além de ser transportado
em incontáveis viagens de navio…). A indústria alemã perdeu competitividade. O
país entrou em recessão e a renda dos trabalhadores despencou. Nada disso
sensibilizou Scholz, muito menos sua coalizão de governo, que inclui os
partidos Verde e Liberal. Ao contrário: o governo impôs um tributo sobre o
diesel destinado aos tratores, despertando a ira dos agricultores (o mesmo
ocorreu na França) e tentou obrigar a população a pagar o custo da troca dos
aquecedores domésticos por outros – menos poluentes, mas muito mais caros. Como
sustentar esta proposta, em meio ao empobrecimento da maioria? Não satisfeito
em em assumir o desgaste que a proposta implicava, Scholz prometeu elevar os
gastos militares e encerrar as salvaguardas que limitam, desde o final da II
Guerra, os gastos da Alemanha com armamentos.
Tambem em seu caso, a punição veio
nas urnas. A coalizão no governo, que tem 56,7% das cadeiras do Bundestag
alemão, ficou reduzida a 31%. A direita conservadora avançou de 26,7% para 30%.
E a ultradireita, de 10,5% para 15,9%. A mídia aplaudiu Scholz. Eleito em
dezembro de 2021, seu governo viverá até 2025 acuado, sob pressão permanente
dos mais conservadores.
Em meio a este cenário desfavorável,
como se saiu a esquerda? Os resultados gerais são frágeis, se se considera que
o capitalismo vive sob crise prolongada, mas chama atenção a ausência de
alternativas. O bloco parlamentar intitulado A Esquerda já reuniu 52
parlamentares (em 2014), mas vê-se reduzido agora a 36 (ou 42, se computados os
6 da BSW alemã). Porém destacam-se, em meio ao estancamento, dois resultados
que podem indicar tendências.
O primeiro é o da própria Alemanha.
Constituído apenas em janeiro, a partir da deputada Sahra Wagenknecht, o
embrionário BSW estreou no patamar animador de 6,2% dos votos. Sustenta um
programa claramente voltado à justiça social e à redistribuição de riquezas.
Porém, faz restrições à entrada “livre” de imigrantes (por julgar que ela tende
a favorecer a formação de um exército de reserva de trabalhadores, em favor dos
empresários) e, embora feminista, considera a pauta do identitarismo de gênero
sobrevalorizada.
O segundo é o ressurgimento do velho Partito Democratico (PD), na Itália. Depois de seu fiasco nas últimas eleições parlamentares em seu país, em setembro de 2022 (quando obteve apenas 15,4% dos votos), muitos julgavam moribunda esta organização, originária do lendário PCI. Mas, segundo o cientista político Giancarlo Summa, ela conseguiu um sopro novo de vida sob a liderança renovadora da secretária-geral Elly Schlein, de 38 anos e claramente contrária ao aumento do gasto militar para sustentar a guerra na Ucrânia.
Além de obter 27,6% dos votos na eleições para o parlamento europeu
(ficando agora apenas quatro pontos atrás do partido de ultradireita de Georgia
Meloni), o PD venceu neste domingo a maior parte das eleições locais e
regionais de que participou – entre elas as de Florença, Bari, Cagliari,
Perugia e Bergamo, e as do Piemonte e Emilia Romana. Talvez menos vistosos, mas
ainda assim significativos, foram os resultados de partidos claramente á
esquerda na Finlândia (Aliança de Esquerda: 17.3%), Grécia (Coalizão de
Esquerda Radical: 14,9%), Suécia (Partido de Esquerda: 10,9%) Portugal (Bloco
de Esquerda e PC somaram 8,4%) e Bélgica (Partido do Trabalho, com 5,6%),
Embora não favoreçam diretamente a
esquerda, os resultados nos países nórdicos sugerem um forte desgaste da
ultradireita no poder. Na Suécia, os “neo”fascistas autointitulados
“Democratas” caíram para 14,3% dos votos (obtiveram 20,6% dos assentos do
Parlamento, em 2022, e emprestam apoio à coalizão no poder). Na Finlândia, os
Verdadeiros Finlandeses, de ultradireita, reduziram-se a 7,6% (dos 22,5% de
cadeiras que controlam no parlamento nacional, onde fazem parte da coalizão no
poder).
Nas mídias comerciais, o avanço da
ultradireita aprece como um estranho fenômeno sem causa. É como se não
pudéssemos conhecer suas causas, muito menos enfrentá-las. Os liberais
derrotados no domingo não estão dispostos a rever suas políticas. Num novo
sinal de que a democracia está se tornando insensível ao desejo político das
maiorias, a derrota evidente do Partido da Guerra não levou a nenhum recuo de
seus líderes. Mal foram abertas as urnas, no domingo à noite, a deputada alemã
Ursula von der Leyen, atual presidente da Comissão Europeia (o Poder Executivo
da UE), proferiu discurso diante de burocratas em Bruxelas, anunciando que
disputará um segundo mandato (indireto), mantendo o mesmo programa de guerra e
retrocessos sociais. É como se as políticas europeias nada tivessem a ver com a
reação dos eleitores, apoiando-se apenas em arranjos entre os líderes dos
partidos.
A atitude mais irresponsável e oportunista, porém, partiu do próprio Macron, ao dissolver a Assembleia Nacional e convocar eleições parlamentares-relâmpago, para 30/6. Nada o obrigava a isso, muito menos num cenário de ascenso da ultradireita. Para Giancarlo Summa, o presidente francês (cujo mandato está garantido até 2027) calcula que uma presença ainda maior dos partidários de Marine Le Pen no Parlamento irá realçar sua suposta condição de única alternativa ao fascismo e, com isso, reduzir o espectro político real a uma disputa entre ultradireitistas e ultracapitalistas.
Felizmente, surgiu de imediato uma resposta sensata e
criativa, no campo da esquerda. Ainda na segunda-feira (10/11), e por
iniciativa do documentarista e deputado François Ruffin (da França Insubmissa),
socialistas, comunistas, insubmissos e verdes franceses anunciaram a formação
de uma Frente Popular com vistas ao pleito. Os candidatos dos quatro grupos
disputarão juntos as eleições (que na França são distritais) desde o primeiro
turno. Espera-se que a unidade possa mobilizar também os movimentos sociais. Um
primeiro sinal animador foi o fato de o acordo ser saudado por uma pequena
multidão, ainda ontem, em Paris.
Há uma receita clara para convocar o
fascismo, ensina a cientista política Clara Mattei em A Ordem do Capital.
Quando a democracia divorcia-se dos interesses e anseios das maiorias e ataca
seus direitos, quem a defenderá? Há alternativas?
Em todo o Ocidente, esta pergunta tem sido evitada.
No terceiro mandato de Lula, o Brasil permanece aprisionado aos limites do
liberalismo. O desgaste resultante é claro. Resta saber o que aprenderemos com
ele.
EM TEMPO: Os mais diversos analistas políticos sejam marxistas ou sociais democratas não consideram o fato da maioria da população do mundo inteiro ser conservadora, isto é, de direita e de centro-direita. Esta razão é muito simples de ser compreendida em face da população está sob a influência da ideologia das Classes Dominantes. Portanto, diariamente somos bombardeados pela citada ideologia, pela desinformação, pelas mentiras, etc.
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