"João Cândido já foi consagrado como herói popular, da autêntica nacionalidade dos de baixo, agora falta o reconhecimento do Estado brasileiro"
Marcos Sampaio Olsen | João Cândido Felisberto
(Foto: Pedro França/Agência Senado | Arquivo do Estado de SP)
Filho de ex-escravos, João Cândido Felisberto nasceu em 24 de junho de 1880, na fazenda Coxilha Bonita, que ficava na cidade de Encruzilhada do Sul (RS), e morreu no município de São João de Meriti (RJ), em 06 de dezembro de 1969. João Cândido, aos 13 anos, em 1893, participou da Revolução Federalista e em agosto do ano seguinte estava alistado no Arsenal de Guerra do Exército Nacional, iniciando precocemente seu envolvimento com as atividades militares.
Em 1895, ingressa na Escola de
Aprendizes Marinheiros em Porto Alegre (RS) e no mesmo ano passa a compor a 16ª
Companhia da Marinha do Brasil, já no Rio de Janeiro. Militar, com qualidades
de liderança, foi elogiado e promovido como marinheiro de 1º classe, logo
depois foi rebaixado por participar de brigas, comuns entre a marujada.
A Marinha, nesse período, era a força
militar mais oligárquica e reacionária, filhos de latifundiários do interior do
país e de famílias ricas do Rio de Janeiro, então capital federal, integravam o
alto oficialato e o comando naval, com práticas e regimentos funcionais ainda
herdados da Armada Imperial. Em contraste, a base da força era integrada por
uma maioria negra e cabocla, muitos ex-escravos, e pessoas oriundas das camadas
mais pobres da população brasileira.
Foi no ambiente dos porões e dos
conveses das embarcações militares, transformadas em novos navios negreiros,
que João Cândido forjou a sua personalidade e a conduta de liderança diante das
adversidades.
A vida nas embarcações da Marinha
brasileira era dura, com oficiais autoritários e sádicos. A chibata, usada nas
fazendas para punir os escravos, era o instrumento utilizado para punir os
marujos, o regimento disciplinar era severo e a menor infração poderia custar a
vida do embarcado. Humilhações diversas, racismo institucionalizado, a péssima
alimentação e o trabalho penoso tornavam a vida do marinheiro infernal nos
quartéis e navios. Além de soldos insignificantes e proibições draconianas para
os marinheiros quando não embarcados: proibidos de casar, estudar e de exercer
atividades associativas e políticas.
A revolta da Chibata
A resposta dos marinheiros, liderados
por João Cândido, contra os maus tratos, castigos físicos medievais e os abusos
dos oficiais, ocorreu na última semana do mês de novembro de 1910, por cinco
dias, de 22 a 27, quando explodiu a insurgência no interior dos navios.
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Os marujos tomaram quatro navios
militares, os mais modernos e bem equipados da época – o Minas Geraes [recém
adquirido na Inglaterra], o São Paulo, Bahia e o Deodoro – ancorados na Baía da
Guanabara, manobrando as embarcações com perícia ao longo da costa e apontando
os canhões em direção ao centro da capital do país — durante a ocupação dos
navios realizaram alguns disparos de advertência.
Houve pânico e desespero entre as
classes dominantes e no governo do presidente Hermes da Fonseca, que recebeu
uma mensagem telegrafada por João Cândido exigindo o fim da chibata e dos
códigos disciplinares autocráticos e degradantes.
Os marinheiros revoltosos exibiam
trapos com as inscrições: “Viva a liberdade e abaixo a chibata”. Houve casos de
resistência de oficiais durante a tomada do comando dos navios e alguns foram
mortos pela ira dos insurgentes, o que lembra um episódio histórico de motim
naval ocorrido cinco anos antes na Rússia czarista, que ficou conhecido como a
“Revolta do Encouraçado Potemkin”, embarcação militar que integrava a frota do
Mar Negro, estratégica no desenrolar da Guerra Russo-Japonesa de 1905. As cenas
da revolta dos marinheiros russos foi eternizada na obra do cineasta Sergei
Eisenstein.
O governo de Hermes da Fonseca
aceitou parcialmente as reivindicações e a prática odiosa das chibatadas foi
proscrita do rol de punições, porém a anistia aos 3000 mil marinheiros
amotinados durou pouco e o alto comando da Marinha, que se considerava
humilhado pelos revoltosos, preparou um ato inominável de revanchismo e
covardia.
A Marinha expulsou os participantes
do motim, desonrou a conduta militar dos marujos, não pagou os seus soldos,
conforme o acordo acertado, e aprisionou João Cândido e outras 20 lideranças do
movimento na Ilha das Cobras, na Baía de Guanabara. A maioria morreu, João
Cândido sobreviveu, após anos de prisão, caiu num profundo ostracismo e ganhava
o pão de cada dia vendendo peixe fresco nas imediações da Praça XV, no centro
do Rio de Janeiro.
O “Almirante Negro” reaparece em março de 1964
A figura envelhecida e a voz de
comando mais fraca, mas ainda ostentando certo carisma e brilho nos olhos
quando falava da Revolta de 1910, empolgou os marinheiros liderados pela
Associação de Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil (AMFNB), uma espécie de
organização sindical e assistencial dos praças e marujos, em uma nova revolta
na Marinha.
Em março de 1964, o país governado
pelo presidente João Goulart enfrentava forte oposição, de tipo golpista, da
direita e do alto comando das Forças Armadas, principalmente do Exército.
Nesse contexto, de radicalização
política, explode a revolta dos marinheiros e fuzileiros navais, entre os dias
25 e 27 de março de 1964, como um fio de continuidade histórica com a Revolta
da Chibata de 1910, que reivindicava mudanças na Marinha: direito de
associação, melhores salários, direito ao voto e ao casamento, melhora da
alimentação nos navios e quartéis e o fim das discriminações e arbitrariedades
dos oficiais.
A revolta dos marinheiros de 1964
levantava praticamente as mesmas reivindicações de 1910, sem as chibatas,
abolidas pelo movimento liderado por João Cândido. Por isso, a sua presença,
como convidado de honra, na festa de aniversário da Associação dos Marinheiros,
no dia 25 de março, na sede do Sindicato dos Metalúrgicos do Rio de Janeiro.
O evento dos marinheiros acabou
gerando uma crise política, que enfraqueceu o governo de Jango Goulart, e
forneceu uma narrativa para os militares golpistas sobre a quebra da hierarquia
militar e a escalada da esquerdização entre os praças, cabos e sargentos nas
Forças Armadas — cinco semanas depois, em 1º de abril, o governo democrático
era derrubado por um golpe militar, que promoveu um amplo expurgo no conjunto
das forças militares.
Em 2024, um novo açoite na memória de João Cândido
Um projeto de Lei – PL4046/2021- de
autoria do deputado federal Lindbergh Farias (PT-RJ), que tramita na Comissão
de Cultura, da Câmara dos Deputados, foi o motivo de uma nova polêmica em torno
o legado de João Cândido e da repercussão histórica da Revolta da Chibata.
O comandante da Marinha, Marcos
Sampaio Olsen, em carta oficial enviada na segunda-feira passada (22) ao
presidente da comissão, deputado Aliel Machado (PV-PR), criticou raivosamente a
proposta de inclusão do “Almirante Negro” no livro de aço dos Heróis e Heroínas
da Pátria, uma homenagem prestada aos brasileiros que deram contribuições
importantes ao país.
A honraria, criada em 1992, já
homenageou figuras históricas e relevantes para a construção da identidade
nacional como Anita Garibaldi, Chico Mendes, Machado de Assis, Santos Dumont e
Tiradentes. A inclusão do nome no Livro de Aço de Heróis e Heroínas da Pátria,
depende de aprovação do Congresso Nacional. O livro fica guardado no monumento
do Panteão da Pátria, em Brasília.
Na carta, o comandante da Marinha
revela uma postura rancorosa contra João Cândido e os marinheiros que
participaram da Revolta da Chibata: “A Força Naval não vislumbra aderência da
atuação de João Cândido Felisberto na Revolta dos Marinheiros com os valores de
heroísmo e patriotismo; e sim, flagrante que qualifica reprovável exemplo de
conduta para o povo brasileiro”.
O comandante Olsen acrescenta ainda
que a rebelião de 1910 foi um ato de “subversão” e de “ruptura de preceitos
constitucionais organizadores das Forças Armadas”. Ele menciona também que o
episódio desrespeitou a disciplina militar e causou mortes.
Ou seja, 114 anos após a insurreição
dos marinheiros, a Marinha do Brasil prossegue com os ataques e o vilipêndio ao
consagrado herói do povo brasileiro, cantado em prosa e verso nas ruas, praças
e no Carnaval, a maior festa popular do Brasil.
João Cândido já foi consagrado como
herói popular, da autêntica nacionalidade dos de baixo, agora falta o
reconhecimento do Estado brasileiro, como reparação histórica e ato de Justiça.
Além disso, a Marinha deve uma retratação ao
“Almirante Negro”, concedendo a patente máxima da força naval ao ilustre
marinheiro, que tem uma estátua em sua homenagem na Praça XV, na área do antigo
cais do porto do Rio, que na canção composta por Aldir Blanc e João Bosco foi
retratado com perfeição e lirismo o seu feito histórico: “Glória à farofa/À
cachaça, às baleias/Glória a todas as lutas inglórias/Que através da nossa
história não esquecemos jamais/Salve o navegante negro/Que tem por monumento as
pedras pisadas do cais”. Desde então, a rebeldia de João Cândido ainda assombra
a oligárquica corte do Almirantado.
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