Francisco Joseli Parente Camelo disse que os acampamentos "foram tolerados" graças a um “entendimento" transmitido pelo governo Jair Bolsonaro
23 de janeiro de
2024
Tenente-Brigadeiro do Ar Francisco Joseli Parente
Camelo | Acampamento a favor de Bolsonaro (Foto: FAB | Reuters)
Por Caio de Freitas Paes, Agência
Pública - Passado mais de um ano do 8 de janeiro, não há sinal
de punições militares a oficiais que permitiram a manutenção de acampamentos
golpistas em frente aos quartéis antes do ataque extremista em Brasília (DF).
Em entrevista à Agência Pública, o presidente do Superior Tribunal Militar
(STM), Francisco Joseli Parente Camelo, admitiu que os acampamentos “foram
tolerados por orientação dos chefes” das Forças Armadas – segundo ele, graças a
um “entendimento transmitido pelo próprio governo [Bolsonaro]”.
A nota dos
comandantes militares defendendo a “manifestação crítica aos poderes
constitucionais” em plena crise golpista reforça tal impressão, mas o
presidente do STM não vê chance de desdobramentos ou punições a oficiais
envolvidos. “Pode ser que haja um caso ou outro de omissão… mas acredito que
dificilmente teremos crimes militares”, afirmou.
A fala do
presidente do STM chama atenção porque todo delito cometido em áreas
administradas pelas Forças Armadas é considerado crime militar. O Brasil todo
viu bolsonaristas pregarem, por mais de dois meses, intervenção e golpe em
frente ao Comando Militar do Planalto e ao Quartel-General do Exército. Além
disso, o fracassado atentado a bomba na capital segue sob suspeita de ter sido
arquitetado no acampamento em frente ao QG.
Golpe de estado e
insurreição, conceitos usados por pesquisadores para explicar a crise que
culminou no ataque de 8 de janeiro, não são considerados crimes no Código Penal
Militar. O texto-base do atual código entrou em vigor em 1969, pouco tempo
depois do Ato Institucional nº 5, que marcou a época mais violenta da ditadura.
“Foi uma lição importante, mas agora vamos
olhar para frente e não cometer os erros do passado”, disse à Pública o
presidente do STM, Joseli Parente Camelo.
À Pública, Camelo
ainda negou que tenha colaborado com a equipe de transição do governo Lula na
seara militar – o ministério da Defesa foi o único a não constituir um grupo de
trabalho à época. “Talvez pela relação que construí com o presidente, disseram
que influenciei, que falei com ele na transição. Mas não, só conversei com o
presidente no dia da diplomação [12 de dezembro de 2022], e após eu ter tomado
posse na presidência [do STM]”, disse.
O atual presidente da Justiça Militar é tenente-brigadeiro da Aeronáutica, posto mais alto da Força Aérea Brasileira. Responsável pelo comando do avião presidencial por 12 anos, Joseli Camelo pilotou a aeronave nos primeiros mandatos de Lula e Dilma Rousseff (PT), somando mais de 10 mil horas de voo no período. Ele virou ministro do STM logo depois, em 2015, indicado pela então presidenta Dilma Rousseff. O presidente do STM recebeu a equipe da Pública em Brasília em seu gabinete, em 15 de janeiro passado.
Agência Pública: Poderia explicar o que diferencia o crime militar do
crime civil? Qual a área de atuação – e os limites – da Justiça Militar?
Joseli Camelo: A Justiça Militar
foi criada em 1808 com a chegada de D. João VI ao Brasil. Uma das primeiras
medidas dele foi criar, por alvará com força de lei, o Conselho Supremo Militar
e de Justiça na cidade do Rio de Janeiro (RJ). Já existia uma noção da importância
de termos um Exército disciplinado, e daí veio a nossa competência – que é
tutelar a disciplina e a hierarquia no centro das Forças Armadas. Atuamos
ininterruptamente desde então, atravessando todos esses movimentos e
‘revoluções’, procurando garantir a hierarquia e a disciplina no seio da tropa.
Quanto aos crimes
militares, eles estão definidos em nosso Código Penal Militar. Basicamente, o
crime militar é aquele cometido por militar contra militar; em lugar sujeito à
administração militar; e também contra o patrimônio militar. Até 2017, nós
julgávamos apenas o que estava dentro do Código Penal Militar. A partir daquele
ano, com a aprovação da Lei nº 13.491, passamos a julgar toda a legislação
penal brasileira – desde que estivesse nas condições estabelecidas no artigo 9º
do código.
Agência Pública: Acampamentos golpistas se espalharam em locais administrados pelas
Forças Armadas, como na frente de quartéis do Exército em todo o Brasil, com
pedidos de golpe de estado e intervenção militar – o que é crime. O senhor
acredita que a Justiça Militar poderia ter atuado para evitar que aquilo
persistisse?
Joseli Camelo: Realmente, não é
normal acontecerem acampamentos como aqueles, pregando intervenção. Intervenção
militar é crime, nós sabemos. Então, não podemos aceitar isso. Mas temos que
lembrar que aquelas pessoas acampadas eram seguidores do governo Bolsonaro.
Não vou dizer que
era uma política de governo, mas aquela gestão tinha os acampamentos com uma
orientação, defendia que as pessoas estavam ali democraticamente, as definiam
como ‘patriotas’. Se fosse apenas para manifestar suas opiniões, tudo bem, mas
tínhamos faixas propondo intervenção. Realmente, isso acirrou os ânimos.
Depois, me parece
que não houve uma liderança, mas é difícil entender como eles montaram toda
aquela estrutura, com tantos ônibus, para aquele dia [8 de janeiro] se não
havia uma organização… de qualquer forma, se houve realmente alguma coisa, foi
muito mal planejada. Hoje em dia, nós temos que levar em conta que o mundo evoluiu,
e evoluiu muito, então não havia apoio popular, nem internacional, a uma ideia
de golpe.
Agência Pública: Nas semanas seguintes, houve um impasse sobre quem julgaria militares
eventualmente ligados ao ataque. Houve tratativas entre STM e STF, para que se
definisse a Justiça Comum como responsável por esse julgamento?
Joseli Camelo: Os crimes contra a
ordem política e a ordem social são de competência da Justiça Comum, como diz a
Constituição. Não houve nenhuma conversa [entre as Cortes], porque tudo foi definido
dentro da lei. Nosso Ministério Público [Militar] estava levantando alguns
dados, tinha iniciado alguns processos administrativos, mas, depois, o MPM
enviou todos aqueles processos para o Supremo.
O ministro [do STF]
Alexandre de Moraes fez uma fundamentação perfeita, colocando o papel da
Justiça, mostrando que os locais onde houve vandalismo não eram sujeitos à
administração militar. Com isso, conseguimos pacificar essa posição. Era uma
coisa que as pessoas não entendiam – como militares podem ser julgados na
Justiça [Comum]? Isso é possível desde que um militar cometa um crime comum, da
mesma maneira que civis podem ser julgados na Justiça Militar se cometerem um
crime militar.
Agência Pública: Como a decisão de manter o caso como um todo – incluindo a possibilidade
de julgar militares envolvidos – reverberou no meio militar? Houve críticas ou
ataques contra o STM?
Joseli Camelo: Houve gente que
dizia: “os militares serão ‘sujeitados’, julgados pela Justiça Comum”? Mas
estava dentro da lei, seguindo o devido processo legal. Houve uma revolta nas
redes sociais, quiseram nos colocar contra o STF, o que não era verdadeiro.
Apenas as narrativas no campo virtual estimulavam isso – houve algumas
‘sementes’ plantadas dentro das Forças [Armadas], mas não vingaram.
[No 8 de janeiro]
tivemos um vandalismo que, pelas pesquisas que vimos, foi repudiado por algo em
torno de 90% da população brasileira. Não foi criado nenhum subterfúgio para
haver um julgamento militar. Tudo foi feito dentro do nosso direito
democrático, seguindo o processo penal democrático. Eu acho que isso foi uma
coisa muito boa que aconteceu: julgarmos de acordo com a nossa lei, de acordo
com a constituição do nosso país.
Agência Pública: O senhor e outras autoridades têm defendido que o 8 de janeiro
consolidou a democracia e reforçou a necessidade dos militares se afastarem da
política no Brasil. Há outras lições para as Forças Armadas após a crise
golpista?
Joseli Camelo: Ficou bem claro que
os acampamentos foram tolerados por orientação dos chefes [militares], porque o
governo [Bolsonaro] entendia que aquilo era um movimento pacífico… esse era o
entendimento que era transmitido pelo próprio governo para as Forças [Armadas].
Mas não podemos ver
o 8 de janeiro isoladamente. Temos de ver que, na história, não é papel dos
militares atuar na política. As Forças Armadas têm um papel muito importante
para o país: defender a nossa soberania. Então, não é para se confundir, as
Forças Armadas têm que estar subordinadas ao poder civil. Até comentei noutro
dia: qual foi o único ministério que não teve uma equipe de transição? O
Ministério da Defesa. Isso porque temos nossas competências bem definidas pela
Constituição. A cada quatro anos, fazemos uma estratégia para trabalhar uma
política de defesa nacional, essa estratégia política é levada ao Congresso
Nacional, e assim por diante.
Agência Pública: Muito se fala da necessidade de despolitização dos quartéis e das Forças
Armadas. Com mais de um ano de governo Lula, o senhor enxerga avanços nessa
questão?
Joseli Camelo: Hoje, nós temos
três comandantes que estão fazendo um belíssimo papel, mas ainda continuam
essas narrativas nas redes sociais – tem gente batendo em um, batendo em outro,
falando mal… esse discurso de ódio não faz parte da nossa índole, da índole do
povo brasileiro. As narrativas das redes sociais ainda são muito fortes, isso
traz um prejuízo muito grande para a nossa nação. É como disse o ministro
Flávio Dino em sua sabatina para o STF no Senado: o mundo virtual não é uma
terra de ninguém. O mundo virtual é igual ao mundo real, você não pode fazer o
que quiser… tudo tem de ter um limite.
Agora, o fato de
ter havido um presidente [Jair Bolsonaro] que foi militar gerou uma confusão,
que seria um governo militar. Não era um governo militar. Naturalmente, tivemos
muitos militares participando daquele governo porque o presidente escolheu
aquelas pessoas da sua confiança, e como ele tinha um relacionamento com muita
gente, com militares ‘quatro-estrelas’, alguns eram seus companheiros de turma,
ele acabou levando muita gente para dentro do governo. Nós vimos que isso não é
saudável.
Acho que a maior
lição que tiramos é que nós, militares, temos de voltar ao nosso papel
constitucional – um papel sublime, que é defender a pátria, garantir os poderes
constitucionais. Se as nossas Forças Armadas se desorganizam, elas perdem a
capacidade e a competência de defender a pátria, o que põe em risco a soberania
do Estado e a estabilidade da ordem democrática. Temos de ter muito cuidado com
tudo isso. Mas eu tenho muita esperança de que essas coisas estão sendo
solidificadas. Veja: não houve nenhuma reação contra a proposta de que
militares não devam estar envolvidos na política. Nenhuma. Então, acho que
estamos caminhando para uma pacificação. Ainda estamos lutando, mas não está
consolidado porque não é algo simples de se fazer.
Agência Pública: Parte da sociedade questiona o compromisso dos militares com a
democracia pela falta de punição a oficiais que se envolveram em problemas nos
últimos anos, especialmente durante a presidência de Bolsonaro. Houve o caso do
ex-ministro da Saúde e general do Exército Eduardo Pazuello na pandemia, a
crise golpista e desdobramentos do 8 de janeiro. Qual sua posição sobre isso?
Joseli Camelo: Peguemos o caso do
8 de janeiro, talvez seja o mais emblemático. Nós tivemos a CPMI, o instrumento
investigativo que o Congresso tem, que dá condições de realmente levantar os
fatos e propor uma denúncia – não digo uma condenação, porque o julgamento é
posterior. Isso foi feito, houve bastante discussão e debate, mas todos foram
adiante e devem ser investigados pelo Ministério Público [Federal].
Acredito que o
Ministério Público está investigando, descobrindo até que ponto houve crimes –
porque não há julgamento sem denúncia, que é realmente onde se configuram os
indícios. É na denúncia que identificamos se há crime, se há autoria. Não é uma
situação fácil para o Ministério Público porque, para denunciar, tem que ter
provas, e no caso do 8 de janeiro ainda não houve decisões, [as investigações]
estão em curso.
Agora, ao longo do
governo [Bolsonaro], tome o caso do Pazuello: ele era um militar da ativa mas
estava em cargo político, e as coisas se misturam um pouco. Fica difícil você
definir até que ponto ele está cometendo um crime, uma indisciplina, se ele é
político ou militar. Uma hora ele respondia como militar, outra como político.
Surgiu a dúvida, ele estando em um comício [de Jair Bolsonaro], mas ele também
era ministro, era assessor do presidente. É uma situação que fica difícil você
dizer se ele está errado ou certo, se deve ou não ser condenado. Criou-se essa
‘simbiose’, havia um limiar, algo que não ficava muito claro. Por isso que não
é bom que o militar esteja na política, como todos nós estamos defendendo a
essa altura do jogo.
São ensinamentos
que trazem muito amadurecimento, é tudo um processo. Vimos que ao longo do
século passado os militares sempre estiveram presentes nas revoltas, e agora
estamos trabalhando para que isso não aconteça, para que não se repita, porque
não é o certo. Não é só a sociedade brasileira que não aceita mais isso: o
mundo não aceita mais aventuras de ditadura. Nenhum órgão multilateral aceita
isso. Mas o ensinamento maior é esse: olha, vamos lá, cada um no seu
‘quadrado’.
Agência Pública: Após decisão do STF em 2017, a Justiça Militar tem disponibilizado
áudios gravados durante julgamentos do STM no período da Ditadura Militar. Mas
tem havido relato de problemas na disponibilização do material, estariam
faltando alguns áudios. Ainda restam muitos materiais para serem divulgados?
Quando pretendem concluir isso?
Joseli Camelo: Em 2017 iniciamos
um processo de digitalização de todos os nossos processos, que vamos concluir
neste ano. Já determinamos que tudo, desde 1808, que trata da nossa história,
absolutamente tudo tem que ser divulgado. As pessoas que têm interesse no tema,
acadêmicos, historiadores, curiosos, todos vêm aqui e pesquisam o que desejam.
O que acontece é que, naquela época [da ditadura], as gravações não tinham a
qualidade que têm hoje. Então, há muitas gravações em que praticamente não se
aproveita nada – pela qualidade do material, ou pela ação do tempo. Às vezes a
pessoa falava e o microfone não captava, né? Mas nós já mandamos verificar esse
problema, queremos colocar tudo à disposição do público. A memória tem que ser
colocada como ela de fato é.
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