O autor faz um estudo sobre as condições em que o policentrismo se tornaria uma realidade
19 de dezembro de
2023
Presidentes Joe Biden (EUA), Xi Jinping (China) e
Vladimir Putin (Rússia) (Foto: Divulgação)
Por Paris Yeros (1) - O imperialismo coletivo da Tríade (EUA-UE-Japão) evoluiu após a Segunda Guerra Mundial sob a égide dos Estados Unidos para dar coerência estratégica à expansão do capitalismo monopolista contra o Leste socialista e o Sul emergente. Seu objetivo era enfrentar resistências sem precedentes ao capitalismo monopolista, tanto pelo lado do sistema soviético, que havia vencido sobre o nazismo, como no Terceiro Mundo em vias de descolonização.
Essa
contradição era a essência da rivalidade sistêmica da Guerra Fria. As suas
origens se encontram justamente nos dois grandes acontecimentos
anti-imperialistas do século XX: a revolução socialista e a descolonização
geral.
Diz-se que o pós-guerra configurou um sistema “bipolar” entre Leste e Oeste. De fato o conflito foi muito maior. Consistia numa contradição sistêmica entre o imperialismo e todas as forças anti-imperialistas, não apenas aquelas provenientes do Leste. E mais: nessa contradição, a essência do conflito, mesmo entre Leste e Oeste, logo passou a girar em torno das forças de libertação nacional dos povos do Terceiro Mundo. Isto é, as lutas de libertação nacional se tornaram a principal força motriz da rivalidade sistêmica do pós-guerra.
Elas encontravam na União Soviética um contrapeso sistêmico ao imperialismo, senão
apoio direto, enquanto o próprio conflito Leste-Oeste ganhava o seu dinamismo
nas lutas de libertação nas periferias. Não é por acaso que a maior
confrontação nuclear da Guerra Fria se deu em função da revolução cubana.
Ouve-se dizer
também que o Ocidente “ganhou” a Guerra Fria. Nos anos 1990, os neoliberais em
sua euforia chegaram a postular até o “fim da história”, enquanto os seus alter
egos “realistas” contemplavam o caminho e os meios para se consolidar um mundo
“unipolar”. Um de seus feitos foi impor os seus termos no nosso debate,
difundindo não apenas teorias neoliberais, culturalistas etc., mas também
teorias de “polaridade” e “geopolítica”, entre outras, emprestadas da ciência
política norte-americana, alheias à teoria do imperialismo da nossa tradição
marxista-leninista. A presente intervenção busca apresentar alguns
esclarecimentos a respeito desses conceitos.
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É certo que os
termos da teoria da polaridade hoje em dia já foram apropriados por forças
anti-imperialistas, ocupando lugar central nas nossas reflexões. Contudo, ainda
há necessidade de esclarecimento e adaptação, se é para persistirmos no uso de
tais conceitos, pois em sua forma original eles passam longe de nossos
propósitos. Sobretudo, a sua ênfase analítica em “grandes potências” desvia o
foco daquela que Marx chamou de “sexta grande potência”, o poder popular
revolucionário. Tampouco esclarecem os desafios do desenvolvimento mundial
postos aos países periféricos, que necessitam hoje, mais do que nunca, que as
suas relações econômicas externas sejam subordinadas ao poder da soberania
popular.
O termo mais
preciso para essa análise, a nosso ver, seria “policentrismo”. Postula uma
multiplicidade de centros na qual países e regiões do Sul teriam condições de
seguir caminhos de desenvolvimento soberano e popular, isto é, “desconectar-se”
da lei do valor dominado pelo imperialismo. Mas, afinal, seja como for a
preferência terminológica, o que importa mesmo é o conteúdo da análise.
Quem ganhou a Guerra Fria?
A teoria da
polaridade se estendeu ao pós-Guerra Fria ao contemplar um “momento unipolar”.
Porém, não é possível sustentar que houve uma clara vitória do Ocidente. O
capitalismo monopolista não emergiu da Guerra Fria ileso. Já estava em crise
permanente, desde meados da década de 1960, devido à sua própria lógica
contraditória e sobretudo o seu conflito com o Leste e o Sul. Saiu da Guerra
Fria gravemente ferido.
O que aconteceu a
partir dos anos 1970 foi uma ação retrógrada visando o resgate da dominação imperialista.
Financeirização, redolarização via o petróleo, novas ondas de exportação de
capital, escalada militar e saltos tecnológicos relançaram o imperialismo
coletivo. Decerto, essa revanche chegou a empurrar o sistema soviético para
além de seus limites e ao mesmo tempo consolidou a transição neocolonial dos
países do Sul. Seria mais apropriado ver nessa fase tardia do neocolonialismo
um longo impasse na transição sistêmica. Pois as contradições fundamentais do
capitalismo monopolista nunca se resolveram; e a financeirização, as
exportações de capitais e a militarização, apesar dos saltos tecnológicos
envolvidos, tornaram-se todos elementos de uma decadência secular.
O saldo líquido não
foi inteiramente a favor do imperialismo. Apesar de selar a transição
neocolonial na maior parte do Terceiro Mundo, com a notável exceção da China, o
relançamento do imperialismo coletivo não reverteu a descolonização, isto é,
não conseguiu derrubar o sistema generalizado de soberania nacional conquistado
pelos povos do Terceiro Mundo com a ajuda da União Soviética. Mesmo após quase
meio século de neoliberalismo, o regime não foi suprimido ou superado.
Há certamente uma
degradação do regime de soberania nacional nas periferias. Decorre da agressão
imperialista constante e da polarização social avançada, em especial do
crescimento gigantesco das reservas de trabalho, gerando forças neofascistas no
interior dos países e levando até mesmo a novas situações semicoloniais em uma
série de países que sucumbiram à invasão imperialista e à fragmentação
territorial. Porém, cabe enfatizar novamente, que o regime geral de soberania
nacional não foi derrubado até hoje, e esta é uma vitória consagrada dos povos
do Sul.
Tampouco o fim da
Guerra Fria pôs fim ao movimento comunista, apesar do colapso e desmembramento
da União Soviética. O movimento comunista recuou, mas também passou por
transformações ao ponto de fazer um salto econômico espetacular, especialmente
na China, como também importantes inovações em Cuba sob o peso do bloqueio
econômico. Pergunta-se o óbvio: é possível ainda dizer hoje que o Ocidente
venceu a Guerra Fria?
Seria mais preciso
dizer que o impasse do neocolonialismo tardio está sendo minado pelo avanço
novamente das forças antiimperialistas, que desta vez encontram um contrapeso
sistêmico na própria China. Mesmo hoje não se justifica um foco analítico em
“grandes potências”. Por um lado, o nacionalismo nas periferias vem se
radicalizando e, por outro, a trajetória da China permanece intimamente ligada
ao Terceiro Mundo. O futuro da própria China dependerá do caráter dessa
relação.
Ao longo desse impasse sistêmico, a aliança transatlântica manteve a sua coesão efetiva e a sua insistência em prol do expansionismo e da agressão, dado que o propósito único da OTAN sempre foi a destruição dos obstáculos ao capitalismo monopolista. A aliança expandiu as suas operações para a África e a Ásia, devorou a Europa do Leste e continuou a ameaçar o desmembramento da Rússia. Mas internamente, a mesma lógica monopolista, uma vez financeirizada e generalizada, fez estancar os salários e erodir a política de pleno emprego, desfazendo os pactos sociais e os pilares materiais da própria experiência social-democracia.
Sob tais condições, o retorno ao fascismo era questão de
tempo, em ambos os lados do Atlântico. Há até quem acreditou que o neofascismo
iria geral uma crise na própria OTAN, que a chegada de Trump iria colocar em
cheque a sua essência liberal! Mas o liberalismo nunca foi a razão de ser da
OTAN e, sim, a generalização do capitalismo monopolista.
A retomada da Guerra Fria
As contradições
sistêmicas que movimentaram o longo impasse do neocolonialismo tardio estão
hoje se acirrando. Se a emergência da China é a força que mais aproveitou da
decadência do imperialismo coletivo e minou a infraestrutura econômica do
sistema neocolonial, a violenta confrontação da OTAN com a Rússia na Ucrânia e
o genocídio na Palestina, configuram no seu conjunto um ponto de inflexão.
A Rússia, como o
principal país herdeiro da União Soviética – integrando grande parte do seu
território, do seu povo e da sua memória, e beneficiando-se da sua capacidade
tecnológica, recursos energéticos e energia nuclear – continuou a apresentar
obstáculos ao expansionismo da OTAN. O foco da disputa voltou para a Ucrânia,
que sempre teve um valor estratégico superior nos desenhos da OTAN, como do
exército nazista antes. A transformação da Ucrânia na ponta de lança do
imperialismo era questão de tempo.
A instrumentalização
da Ucrânia pela OTAN foi tudo menos um exercício de soberania. A soberania
nacional é, acima de tudo, uma fórmula anti-imperialista para o exercício do
poder popular. A instrumentalização da Ucrânia através de um golpe, promoção de
forças neonazistas no aparelho de Estado, a sua tutela pelo aparato militar da
OTAN e lançamento de uma guerra contra minorias étnicas russas no leste do
país, em Donbass, foi um ato de liquidação de soberania. A Ucrânia mergulhou
numa situação semicolonial simulada, sem que fosse diretamente ocupada e
dividida, mas mesmo assim reprogramada para lançar uma guerra contra si mesma e
para apontar as armas para a Rússia. Nessa situação, qualquer tentativa de
incorporar o país na OTAN, com tropas e mísseis na fronteira, foi obviamente um
casus belli para a Rússia. A Rússia tinha o direito de intervir.
A intervenção foi
realizada contra um consolidado eixo OTAN-Neonazista. Ao longo dos últimos dois
anos, uma guerra horrível tem sido travada às custas do povo ucraniano e da
juventude de ambos os lados, recrutada na campanha da guerra. Longe de seus
supostos ideários liberais, a OTAN mostrou mais uma vez que não tem
constrangimento nenhum em apoiar forças nazistas fora das suas fronteiras,
custe o que custar, e patrocinar guerras no ultramar, aumentando
sistematicamente as apostas com cada vez maiores aportes orçamentários e
transferências de armas pesadas para a Ucrânia. A OTAN também duplicou o
tamanho da sua fronteira terrestre com a Rússia pela entrada da Finlândia na aliança
em abril deste ano. Uma extensa frente contra a Rússia tomou forma mais uma
vez, com ideologia supremacista. A capacidade da OTAN para a provocação e a
escalada do conflito está sempre dada, mesmo que atualmente haja um evidente
desgaste com a guerra.
Cabe acrescentar
que essa guerra é também um trágico alerta sobre o que acontece quando um país
mais vulnerável não consegue sustentar uma política de Não Alinhamento Positivo
diante Estados mais capazes de defender os seus interesses estratégicos. Afinal,
essa foi a lição histórica mais importante do Movimento de Bandung: a razão do
não-alinhamento justamente a preservação de Estados menores contra a sua
incineração numa briga entre os grandes.
Se essa guerra na
Ucrânia é uma extensão da dimensão Leste-Oeste da Guerra Fria, a guerra na
Palestina, que estourou novamente em outubro deste ano, é a essência do mesmo
conflito Norte-Sul de sempre. Trata-se de uma clássica situação de assentamento
colonial patrocinada pelo imperialismo, uma das últimas situações coloniais não
resolvidas do século passado e a mais consequente para a transição sistêmica no
século XXI. O Estado sionista nunca deixou de cumprir as suas funções
essenciais, objetivando a dominação dos povos da região, a degradação das suas
soberanias e o controle sobre os seus recursos energéticos e as rotas
comerciais.
O genocídio em
curso contra o povo palestino é a prova cabal da barbárie do imperialismo
coletivo liderado pelos Estados Unidos e da natureza fascista de seus desenhos
estratégicos. Assistimos à uma limpeza étnica declarada contra um povo sob
ocupação, perpetrada pelo Estado sionista e apoiada pelos Estados Unidos e pela
União Europeia. Dezesseis mil palestinos já morreram em dois meses, desde 7 de
outubro, dos quais 40 por cento foram crianças, e mais quarenta mil ficaram
feridos nos bombardeios. Se havia alguma dúvida ainda sobre o caráter
civilizacional do Ocidente, já virou pó nos bombardeios de Gaza.
Essa tragédia, por
sua vez, é também uma demonstração de como evoluirá a partir de agora a chamada
“transição multipolar”: enquanto as potências semiperiféricas buscam jogar em
todos os tabuleiros, em um novo fenômeno de “multialinhamento”, o povo
trabalhador do Terceiro Mundo, preso e asfixiado em reservas de trabalho irá se
rebelar e forçar o avanço da transição sistêmica.
Cabe acrescentar
que a única possibilidade de fissuras por dentro da OTAN é através da implosão
de um ou mais governos sob pressão popular. Não podemos descartar essa
possibilidade em nosso tempo, embora o proletariado no Ocidente ainda falte
organização e consciência histórica. Mas a dinâmica neoliberal-neofascista
dirigida pelos monopólios dentro das suas arenas nacionais tomou conta da
região toda e colocou-a num caminho de declínio e polarização social que também
alimenta revoltas internamente.
Ademais, a
marginalização das comunidades imigrantes de origem africana e asiática
acrescenta um fator crucial no impulso das revoltas. As recentes manifestações
maciças contra o genocídio palestino em muitos casos impulsionaram para à
frente da cena política as próprias comunidades racialmente oprimidas. Essas
fissuras irão se aprofundar. A exata coloração ideológica de eventuais
rachaduras continua imprevisível, e sabemos que o fascismo está sempre a
postos. Mas no século XXI não está mais dado o curso desta disputa.
Desafios da transição sistêmica
As fissuras no plano global estão mais maduras. A infraestrutura do domínio neocolonial está cedendo sob o peso da crise permanente do imperialismo e da emergência chinesa. Nos últimos vinte anos, a economia mundial passou para um padrão de comércio inteiramente novo cujo centro hoje é a China, sendo este país o principal parceiro comercial da grande maioria dos países do mundo. A China também é uma enorme fonte de recursos financeiros, que o próprio Ocidente absorve para se sustentar.
A função da
resistência especificamente econômica por parte da Rússia é também notável
nesta conjuntura. Além de bloquear o avanço militar da OTAN, também enfrentou
com sucesso o regime de sanções unilaterais, resguardando a sua moeda e
firmando novas parcerias comercias. Ademais, as pesadas sanções impostas sobre
a Rússia e o confisco de 300 bilhões de suas reservas em dólar
fortaleceram a aproximação da Rússia com a China e o Irã. Tal parceria estratégica
hoje apresenta novas possibilidades de transações econômicas e comercialização
do petróleo fora do dólar e de Wall Street, isto é, fora dos mecanismos
operacionais do regime de sanções unilaterais. As rachaduras prometem ampliar
cada vez mais o espaço de manobra para o Terceiro Mundo e, inclusive, para as
revoltas populares.
Contudo, uma ressalva está em ordem: salvo um repentino colapso financeiro em Wall Street, que também não pode ser descartado dado o grau de endividamento, o caminho para um sistema monetário e financeiro alternativo permanece longo. Isso vale para a iniciativa dos BRICS, liderada pela China, que teoricamente tem o potencial de deslocar ainda mais a correção de forças.
Mas o futuro dos BRICS dependerá do
grau de coesão de um grupo de países cujos sistemas políticos, na sua maioria,
continuam imprevisíveis ou pouco confiáveis em termos estratégicos, que mantém
simultaneamente relações econômicas e/ou militares estreitas com o
imperialismo, nessa fase de “multialinhamento”. As suas posturas internacionais
ainda não têm a convicção necessária para sustentar um avanço robusto contra a
estrutura econômica de dominação neocolonial. Este é o caso da maioria dos
membros, nomeadamente a Arábia Saudita, a Argentina, o Egito, os Emirados Árabes,
a Índia e o próprio Brasil.
Se avaliado pela
estrutura neocolonial ainda em vigor nesta fase do imperialismo, o novo mundo
policêntrico – comumente denominado “multipolar” – ainda não tomou forma, por
mais que esteja a caminho. Seja como for a conveniência terminológica, cabe
enfatizar que o termo “policentrismo” diz respeito não apenas a distribuição de
um conjunto de capacidades militares, econômicas e outras, mas a capacidade por
parte de países e regiões de se desconectarem da lei do valor mundial dominada
pelo imperialismo e construir um caminho de desenvolvimento autocentrado,
soberano e popular.
A construção de um
mundo policêntrico, nos termos aqui colocados, pressupõe a identificação mais
precisa do conjunto de desafios que vigoram nesta crise permanente. Nestes
termos, a transição sistêmica está ainda incipiente; e a contradição principal
permanece a mesma entre o imperialismo e os povos trabalhadores do Terceiro
Mundo. Contudo, a contradição principal adquire novos contornos à medida que se
aprofunda a crise do capitalismo monopolista, agregando os seguintes
elementos.
A expansão maciça
das reservas de trabalho na economia mundial e a sua concentração nas
periferias do sistema, configurando formações sociais historicamente distintas
e duradouras que apresentam desafios inéditos pela gravidade da crise da
reprodução social que as convulsiona.
A concentração e,
ao mesmo tempo, a absorção cada vez mais estreita das burguesias periféricas
nos sistemas globais de valor sob o comando do capitalismo monopolista-financeiro,
embora com deslocamentos na orientação comercial rumo à China e, em alguns
contextos condicionados pela radicalização anti-imperialista e sanções
unilaterais, a emergência de frações burguesas patrióticas associadas à
incentivos estatais (China, Rússia, Irã, Iêmen, Zimbábue, Venezuela, etc.).
A emergência
econômica da China no próprio terreno econômico da Tríade, isto é, no comércio,
nas finanças e na tecnologia, e ademais, a integração econômica do mundo à sua
trajetória.
A aceleração do
aquecimento global e de fenômenos climáticos extremos e especialmente
catastróficos nos trópicos justamente onde se concentram as reservas de
trabalho.
A inauguração de
uma longa época marcada por pressões insurrecionais permanentes, que emanam da
polarização social já avançada, onde novamente se concentram as reservas de
trabalho.
A escalada militar
generalizada do Ocidente, expandindo a sua presença militar ao redor do mundo,
articulando novas alianças e atingindo um novo patamar de hostilidades, chegando
a armar um confronto nas fronteiras de um país membro do Conselho de Segurança
da ONU e agora promovendo sem constrangimento moral nenhum um genocídio contra
o povo palestino.
Se analisarmos
corretamente o rumo deste conjunto de contradições devemos concluir que, se não
se consolidar a transição ao policentrismo a tempo, o que está na agenda do
século XXI é o genocídio em série contra os povos trabalhadores da África, da
Ásia e da América Latina e do Caribe, que enfrentam uma crise existencial.
Não há transição que não seja ao socialismo
A construção de um
mundo policêntrico, que certamente será um caminho longo, implica sobretudo na
construção do próprio socialismo. E nessa construção, seria óbvio olhar para a
China e a sua liderança. Porém, os limites da própria China precisam ser
analisados, especialmente na conjuntura da intensificação da contradição
sistêmica.
Por um lado, a
China alavancou inovações institucionais no seu sistema de planificação central
que a blindaram dos piores efeitos da lei do valor mundial, criando condições
para um caminho de desenvolvimento próprio. Apesar das concessões extensivas ao
capitalismo, é o país que navegou os desafios da transformação econômica com
mais clareza, inovação e agilidade, sem abrir mão de ganhos substantivos da
Revolução de 1949, especialmente em sua questão agrária. Também, demonstrou que
o capitalismo só é possível funcionar para o benefício dos povos da periferia
do sistema sob controle de um Partido Comunista. Afinal, esse sempre foi o
sentido da acumulação primitiva socialista.
Contudo, uma das
grandes questões postas a essa trajetória socialista única, é o futuro das suas
relações econômicas com as periferias do sistema. Na medida em que uma nova
rodada de acumulação socialista primitiva ocorreu, ela hoje tem uma dimensão
global, diferente de tudo que vimos antes. Vale lembrar que a União Soviética
não teve relações econômicas substantivas com a maior parte do Terceiro Mundo,
com as notáveis exceções da Índia, da China, e do Egito por certo tempo, e de
Cuba até o final. O caminho que essa nova relação econômica mundial tomará é
crucial para a transição policêntrica.
O máximo que se
pode esperar é que a China continue a circular excedentes via a Iniciativa
Cinturão e Rota, que construa novas e modernas infraestruturas, que compartilhe
tecnologias avançadas, que plante sementes para a industrialização periférica.
Mas nada disso será suficiente para enfrentarmos os desafios postos hoje ao
Terceiro Mundo. A China não deslocará a lei do valor ao ponto de favorecer uma
industrialização periférica capitalista generalizada, tampouco irã suprimir a
lei do valor fora das suas fronteiras pela produção de utilidades públicas à
altura da crise de reprodução social atual.
Nas condições
atuais, a transição policêntrica não dependerá da China e, sim, de nós, da
nossa insurgência, das nossas capacidades de alterar a correlação de forças. A
salvação não vem de fora – como também não veio de fora na Guerra Fria do
século passado.
Tomar o rumo
policêntrico significa coisas muito concretas para nós: absorver as enormes
reservas de trabalho concentradas no Terceiro Mundo em condições dignas de
vida; estabilizar e equilibrar, econômica, social e politicamente, as relações
campo-cidade via reformas agrárias radicais; planificar uma industrialização
soberana, rural e urbana, sem medo de desmontar e recompor cadeias produtivas;
e enfrentar às mudanças climáticas em diversos níveis de ação e especialmente
por meio de novas formas de propriedade de caráter socialista para estabelecer
uma nova relação entre economia e natureza.
A alteração das
relações de força em escala nacional e regional ao redor das periferias
permanece crucial para o conjunto da transição sistêmica. E o prazo não é menos
crucial: a transição tem que ocorrer, substantivamente, até meados do século
XXI, se é para se evitar o crescimento catastrófico das reservas de trabalho e
as piores consequências do aquecimento global.
Existe outra medida
da transição ao policentrismo senão pela transição ao socialismo? Já nos
encontramos numa situação pré-revolucionária mundial, sob permanente pressão
insurrecional nas periferias, que não pode mais ser ignorada. Nesse sentido,
cabe lembrar uma afirmação de Marx da época em que “cinco grandes potências”
disputavam o poder do continente europeu e do ultramar: o que realmente
importa, afirmou Marx, é a “sexta grande potência”. Nas suas palavras, escritas
em fevereiro de 1854 (tradução nossa):
[…] não devemos
esquecer que existe uma sexta potência na Europa, que em certos momentos afirma
a sua supremacia sobre o conjunto das chamadas cinco “grandes” potências, e as
faz tremer, cada uma delas. Esse poder é a Revolução. Longa, silenciosa e
cansada, é agora novamente chamada à ação pela crise comercial e pela a
escassez de comida.
(1) Professor
do Programa de Pós-graduação em Economia Política Mundial, UFABC, integrante da
Escola Nacional João Amazonas e do CEBRAPAZ. As ideias aqui elaboradas foram
apresentadas no Curso de Formação da União da Juventude Socialista no debate
sobre “A nova ordem global, a emergência climática e o socialismo no mundo – o
Marxismo ainda é Atual?”, Itapecerica da Serra, 6 de dezembro de 2023.
(2) Os termos
“policentrismo” e “desconexão” foram elaborados pelo economista egípcio Samir
Amin a partir das experiências revolucionárias do século XX
(3)Ver www.marxists.org/archive/marx/works/subject/russia/crimean-war.htm#17,
acesso em 08/06/2023.
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