Lula (Foto: Ricardo Stuckert) |
Por Pepe Escobar (*)
1 de novembro de 2022
(Publicado originalmente no Asia
Times)
Luiz Inácio "Lula" da Silva talvez tenha dado a maior volta por cima política de todo o século XXI. Aos 77 anos, em boa forma e afiadíssimo, liderando uma aliança de dez partidos políticos, ele acaba de ser eleito Presidente do Brasil para o que será, na verdade, um terceiro mandato após seus dois primeiros, de 2003 a 2010. Lula chegou mesmo a ensaiar uma volta-dentro-da-volta durante a extremamente rápida e precisa apuração eletrônica, atingindo 50.9% contra os 49.1% dados ao atual presidente de extrema-direita Jair Bolsonaro, o que representa uma diferença de apenas dois milhões de votos em um país de 215 milhões de habitantes. Lula assume a presidência em 1º de janeiro de 2023.
O primeiro discurso de Lula foi um pouco anti-Lula. Conhecido por suas improvisações ao estilo de Garcia Marquez e por seu fluxo de consciência muito informal, ele, desta vez, leu uma peça comedida e cuidadosamente preparada. Lula enfatizou a defesa da democracia, a luta contra a fome, a busca do desenvolvimento sustentável com inclusão social, uma "luta sem tréguas contra o racismo, o preconceito e a discriminação".
Ele convidou a cooperação internacional para a preservação da floresta amazônica e prometeu batalhar por um comércio global justo, em lugar de um comércio "que condena nosso país a ser um eterno exportador de matérias-primas". Lula, sempre um negociador excepcional, conseguiu vencer o imenso aparato estatal montado por Bolsonaro, responsável pela distribuição de bilhões de dólares para a compra de votos, uma avalanche de fake news, intimidação aberta e tentativas de supressão de eleitores perpetradas por bolsonaristas hidrófobos, além de incontáveis episódios de violência política.
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Lula herda um país devastado e, de forma muito semelhante aos Estados Unidos, completamente polarizado. De 2003 a 2010 – ele, incidentalmente, chegou ao poder apenas dois anos antes do "choque e terror" dos Estados Unidos contra o Iraque – a história foi bem diferente. Lula conseguiu trazer à mesa prosperidade econômica, um maciço alívio da pobreza e uma série de políticas sociais. Em oito anos, ele criou 15 milhões de empregos.
Uma violenta perseguição política acabou por tirá-lo das eleições presidenciais de 2018, preparando o caminho para Bolsonaro – projeto esse acalentado desde 2014 pelos militares da direita linha-dura. O conluio entre o Ministério Público brasileiro e figurões maquiavélicos da "justiça" brasileira, visando a perseguir e condenar Lula com base em acusações espúrias, fez com que ele passasse 580 dias na cadeia, como um prisioneiro político tão notório quanto Julian Assange.
Lula acabou por ser declarado inocente em nada menos que 26 acusações levantadas contra ele por uma máquina de lawfare encravada no cerne da – profundamente corrupta – operação Lava-Jato. O trabalho sisífico de Lula começa agora. Pelo menos 33 milhões de brasileiros estão atolados na fome. Outros 115 milhões lutam contra "insegurança alimentar". Nada menos de 79% das famílias são reféns de altos níveis de endividamento.
Em contraste com a nova "onda cor-de-rosa" que varre a América Latina – da qual Lula é hoje o superstar – internamente a situação é outra. Muito pelo contrário, ele irá enfrentar uma Câmara e um Senado profundamente hostis, e até mesmo governadores bolsonaristas, inclusive o do mais poderoso estado da federação, São Paulo, que concentra mais poder de fogo industrial que muitas latitudes do Norte Global.
Os suspeitos de
sempre
O vetor absolutamente primordial é que o sistema
financeiro internacional e o "Consenso de Washington", que já
controlam a agenda de Bolsonaro, capturaram o governo Lula mesmo antes de ele
começar.
O vice-presidente de Lula, Geraldo Alckmin, é de
centro-direita, e pode ser catapultado ao poder no minuto em que o Congresso
profundamente hostil decida urdir algum esquema de impeachment de Lula.
Não é por acidente que o The Economist já
"advertiu" Lula a se mover para o centro: ou seja, seu governo tem
que, na prática, ser dirigido pelos suspeitos de sempre.
Muito dependerá de quem Lula irá escolher para
ministro da economia. O candidato com mais chances é Henrique Meirelles, ex-CEO
do FleetBoston, o segundo maior credor externo do Brasil depois do CitiGroup. Meirelles
expressou apoio incondicional a Lula, para quem ele já havia trabalhado como
presidente do Banco Central.
O mais provável é que Meirelles venha a usar o
mesmo receituário de políticas econômicas que o principal economista de
Bolsonaro, o banqueiro de investimentos Paulo Guedes. Esse receituário é
exatamente o mesmo que foi empregado por Meirelles durante o voraz governo
Temer, que chegou ao poder depois do golpe de estado institucional contra a
Presidenta Dilma Rousseff, em 2016.
E agora, chegamos ao mais suculento de tudo.
Ninguém mais que a Subsecretária de Estado para Questões Políticas dos Estados
Unidos, Victoria Nuland, visitou o Brasil em caráter
"não-oficial" em abril último. Ela se recusou a encontrar
Bolsonaro e elogiou o sistema eleitoral brasileiro ("Vocês têm um dos
melhores do hemisfério, em termos de confiabilidade, em termos de
transparência").
Mais tarde, Lula prometeu à União Europeia uma
espécie de "governança" da Amazônia, e teve que condenar publicamente
a "operação militar russa" na Ucrânia. Tudo isso depois de ele ter
elogiado Biden, em 2021, como sendo "um alento para a democracia no
mundo". O "prêmio", para o desempenho acumulado foi uma capa da
revista Time.
Tudo o que foi dito acima pode sugerir que vem
vindo aí um suspeito governo de pseudo-esquerda do Partido dos Trabalhadores –
neoliberalismo com um rosto humano – infiltrado por vetores direitistas de
todos os tipos e servindo essencialmente aos interesses de Wall Street e do
Departamento de Estado controlado pelos democratas.
Os principais pontos da plataforma: aquisição de
bens econômicos importantes pelos suspeitos globalistas de sempre e, portanto,
espaço nenhum para o Brasil exercer uma real soberania.
Lula, é claro, é inteligente demais para se deixar
reduzir ao papel de um mero refém, mas sua margem de manobra – internamente – é
extremamente reduzida. O bolsonarismo tóxico, agora na oposição, continuará a
prosperar institucionalmente, assumindo uma – falsa – postura
"antissistema", principalmente no Senado.
Bolsonaro se autodescreve como um "mito"
criado e empacotado pelos militares, e ele ganhou proeminência cerca de um mês
após a vitória eleitoral de Dilma de 2014, que deu a ela seu segundo mandato.
O próprio Bolsonaro e muitos de seus seguidores
fanáticos flertaram com o nazismo, louvaram descaradamente torturadores
conhecidos que atuaram na ditadura militar brasileira e incitaram as
fortes propensões fascistas que espreitavam a sociedade brasileira.
O bolsonarismo é ainda mais insidioso por ser um
movimento urdido pelos militares e subservientes às elites linha-dura do
globalismo neoliberal. O movimento é composto por evangélicos e magnatas do
agronegócio, embora pose de "antiglobalista". Não é de admirar
que o movimento tenha contaminado literalmente metade de uma nação ofuscada e
confusa.
A velha e
experiente China
Ele prometeu governar apenas um mandato, que termina
ao final de 2026. Mas esse é exatamente o período crucial do olho do vulcão,
abrangendo a década descrita por Putin na fala de Valdai como a mais perigosa e
importante desde a Segunda Guerra Mundial.
O impulso rumo a um mundo multipolar, representado institucionalmente
pela congregação dos organismos, que vão dos BRICS+ e a Organização de
Cooperação de Xangai até a União Econômica Eurasiana, irá se beneficiar
imensamente com a atuação de Lula, que talvez seja o líder natural do Sul
Global – possuindo um currículo à altura de sua importância.
É claro que seu primeiro foco de política externa
será a América Latina: ele já anunciou que essa será a destinação de sua
primeira visita presidencial, muito provavelmente começando pela Argentina, que
está posicionada para se juntar aos BRICS+.
Lula, então, visitará Washington. Ele tem que fazer
isso. Mantenha seus amigos perto de você, e seus inimigos mais perto ainda.
Correntes abalizadas de todo o Sul têm pleno conhecimento de que foi no governo
Obama-Biden que foi orquestrada a complexa operação de derrubada de Dilma e
expulsão de Lula da política.
O Brasil será um pato manco na próxima reunião do
G20 a ser realizada em meados de novembro, em Bali, mas em 2023, Lula
estará de volta à cena, lado a lado com Putin e Xi. E isso se
aplica também à próxima cúpula dos BRICS+ a ter lugar na África do Sul, onde
estará presente uma fila de países ansiosos para se juntarem ao grupo, da
Argentina e Arábia Saudita até Irã e Turquia.
E então há o nexo Brasil-China. Brasília, desde
2009, é o principal parceiro comercial de Pequim na América Latina, respondendo
por cerca de metade dos investimentos chineses na região (e pela maior parte de
qualquer destinação de investimentos para a América Latina), e firmemente
colocada como o quinto maior importador de petróleo bruto para o mercado
chinês, os segundo para ferro e o primeiro para soja.
Os precedentes contam a história. Desde o início,
em 2003, Lula apostou na parceria estratégica com a China. Ele viu sua primeira
visita a Pequim, em 2004, como sua prioridade máxima de política externa. A
boa-vontade de Pequim é inabalável: Lula é visto como um velho amigo pela China
– e esse capital político irá abrir praticamente todas as portas vermelhas.
Na prática, isso significa que Lula irá investir
sua considerável força global no fortalecimento dos BRICS+ (ele já declarou que
os BRICS estarão no centro de sua política externa) e no funcionamento interno
da cooperação geopolítica e geoeconômica Sul-Sul.
O que talvez signifique que Lula irá transformar o
Brasil em um parceiro da Iniciativa Cinturão e Rota, de uma maneira que não
seja hostil aos Estados Unidos. Afinal, Lula é um mestre desse ofício.
Encontrar o caminho no olho do vulcão, tanto
interna quanto externamente, será o desafio político definitivo para a volta
por cima. Lula já foi dado por politicamente morto por diversas vezes, de modo
que subestimá-lo é uma péssima aposta. Mesmo antes de começar seu terceiro
mandato, ele já realizou uma tremenda façanha: emancipar a maioria dos brasileiros
da escravidão mental.
Todos os olhos estão voltados para o que os
militares brasileiros – e os estrangeiros que os controlam – realmente
querem. Eles embarcaram em um projeto de muito longo prazo, controlam a maioria
das alavancas da estrutura do poder e simplesmente não irão desistir. Portanto,
as probabilidades talvez não ajudem o velho neo-Ulisses nascido no Nordeste
brasileiro a alcançar sua Ítaca ideal de uma terra justa e
soberana.
(*) Pepe Escobar é jornalista e correspondente de várias publicações
internacionais
Tradução de
Patricia Zimbres
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