terça-feira, 5 de julho de 2022

A cúpula do desespero e do terror

 

5 de julho de 2022

 

Por José Goulão, via ABRIL ABRIL

Foi um desfile de arrogância, ameaças, irresponsabilidade, insensibilidade para com as pessoas, alto risco para o planeta – de terror. A Cúpula da OTAN em Madri teve tudo o que é de esperar dos donos do mundo (ou que pelo menos ainda se julgam como tal) para ditarem aos súditos na Terra como vai funcionar a partir de agora, mas sempre sob chuvas de balas e de mísseis, a «ordem internacional baseada em regras». A peça e a encenação, com fausto aristocrático – e repercussões mentais a condizer – servidas por uma oligarquia globalista recolhida numa bolha virtual mais e mais instável, não disfarçaram, porém, um alarmado desespero, febre que afeta seriamente a organização expansionista pela primeira vez na sua história.

Além desse desespero, e apesar da parafernália de estruturas e meios exibidos para dar ao evento as tonalidades dramáticas de tropas em campanha, a Cúpula da OTAN padeceu também de um comprometedor anacronismo, afinal mais uma expressão da teimosia negacionista com que encara as transformações em curso num mundo onde são cada vez mais frequentes (e eficazes) os sinais de irreverência, distanciamento e afirmação soberana. Estas tendências manifestam-se principalmente no interior da esmagadora fração de mais de 85% do planeta, que tem estado submetida, em maior ou menor grau, à arbitrariedade colonial e imperial – a tal «ordem baseada em regras» usada para subverter o direito internacional e o conceito básico e elementar de igualdade entre países e povos.

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As «regras» são, afinal, os «nossos valores partilhados», a «democracia liberal» e outras muletas de oratória esvaziadas de conteúdo e transformadas em ferramentas de propaganda que servem essencialmente para cultivar o medo inibidor e o primado da violência militar na escala global. Daí que as tais «regras», «valores» e «democracia» se tenham fundido num único conceito econômico e político, o neoliberalismo selvagem, e numa exclusiva atividade, a da guerra, que o chamado «mundo ocidental» – menos de 15% do planeta – manipula agora desesperadamente, de maneira perigosa e suicida, para travar as transformações internacionais que, por linhas direitas e linhas tortas, já estão fazendo o seu caminho.

O efeito Ucrânia

A causa próxima do desespero entranhado na Cúpula da OTAN em Madri é a maneira como está correndo a guerra que a organização atlantista trava com a Rússia através da transformação cruel da Ucrânia num país mártir, com desprezo absoluto pelo seu povo.

Depois das derrotas humilhantes no Afeganistão e no Iraque, do flagrante insucesso na operação para desmantelar a Síria, da caótica e sangrenta situação deixada na Líbia por uma criminosa agressão militar, a OTAN está perdendo a guerra na Ucrânia. É um contexto desastroso para a organização que tem como missão garantir o «excepcionalismo» ocidental para grandeza e usufruto dos Estados Unidos da América.

E a única saída que a aliança continua a cultivar, como se percebeu na reunião na capital espanhola, é a acumulação de incentivos de guerra em cima da guerra para prolongar artificialmente um conflito que, segundo um número cada vez maior de analistas militares sérios e objetivos, deveria passar imediatamente à fase de negociações para que uma entidade ucraniana possa continuar existindo e, sobretudo, não se percam mais vidas humanas.

Para a OTAN, porém, a Ucrânia é terra arrasada. A organização que se considera o braço armado e global da democracia e dos direitos humanos está disposta a mergulhar os povos dos Estados-membros na pobreza e numa crise económica e social profunda para sustentar um regime nazista, corrupto e falido em Kiev, com um exército em frangalhos. É uma insistência desgovernada no objetivo declarado de «enfraquecer a Rússia» e mudar o regime político em Moscou acreditando que assim conseguirá travar a ordem multipolar em construção.

A OTAN confirmou em Madri que ficou encurralada num beco sem saída ao apostar tudo na Ucrânia para derrotar a Rússia. A estratégia está atingindo extremos inimagináveis: Scott Ritter, antigo oficial de inteligência dos Marines norte-americanos e que atuou no Iraque como inspetor de controle de armas a serviço da ONU, explicou num dos seus últimos artigos que a quantidade de peças de artilharia e de sistemas de lançamento múltiplo de foguetes pedida pelo regime do idolatrado Zelensky à OTAN excede o estoque de serviço ativo do Exército e do Corpo de Fuzileiros dos Estados Unidos juntos; e que os 500 tanques de batalha igualmente solicitados por Kiev superam os estoques combinados da Alemanha e do Reino Unido. 

Ao mesmo tempo, a República Tcheca advertiu que já enviou para a Ucrânia todo o material de guerra que tinha desde os tempos do Tratado de Varsóvia. Será que a OTAN aposta o que tem e o que não tem à mão numa vitória de Kiev que parece cada vez mais distante enquanto a Rússia continua progredindo no Donbass recorrendo a um dispositivo e a uma estratégia de guerra que correspondem a menos de um quinto das suas forças militares totais?

Se assim for, o desespero atlantista é compreensível, mas também de sua única e exclusiva responsabilidade. Uma notícia que a propaganda oficial naturalmente escamoteou dá conta do gesto repugnante de Zelensky de pedir autorização ao parlamento, o que vale por um decreto porque na «democracia» ucraniana ocidental a oposição está proibida, para que até os cidadãos portadores de deficiências físicas sejam recrutados para as forças de reserva territorial que estão sendo deslocadas, sem qualquer preparação operacional militar, para a frente de combate à medida que as tropas regulares e especiais são aniquiladas. 

O presidente ucraniano, pelos vistos, ainda não assimilou bem o conceito de direitos humanos e «valores partilhados», mas isso não é problema para a OTAN, trancada no seu beco sem saída, uma vez que continua a desconhecer o que são negociações diplomáticas, da mesma maneira que ignorou a existência dos Acordos de Minsk, a chave que teria fechado a porta à tragédia ucraniana.

Uma situação como esta é provavelmente a ameaça à vida do planeta mais alarmante de sempre. A OTAN escolheu a guerra como o único caminho para tentar garantir a sobrevivência de uma «ordem internacional baseada em regras», isto é, do domínio imperial, e impedir a todo o custo as transformações em curso no sentido de um mundo multipolar. O alarme radica nas possíveis repercussões de alcance global do desespero atlantista perante o previsível fracasso da estratégia ucraniana para reduzir a Rússia ao papel de animal de estimação de Washington, como foi nos tempos do alcóolatra Ieltsin.

Resta por hipótese, no caso do fracasso total da operação Ucrânia iniciada com o golpe fascista de 2014, uma mudança de estratégia da OTAN para continuar a guerra contra a Rússia. E qualquer alteração poderá ter como consequência a entrada das armas nucleares em cena, pois não parece haver outra opção à vista. Uma ameaça de extermínio em massa nunca esteve tão próxima; e a partir daí deixará de haver qualquer ordem internacional, ou mesmo vida no planeta tal como hoje a conhecemos. O agravamento desse risco foi, podem crer, a principal consequência da encenação de Madri, onde os dirigentes políticos e militares que usurparam os votos e as vontades de centenas de milhões de pessoas se irmanaram como irresponsáveis e potencialmente criminosos senhores da guerra.

As nações «dispensáveis»

Num discurso proferido em 2014 aos futuros oficiais do Exército norte-americano, na Academia de West Point, o então presidente Obama, a eminência parda da administração Biden tirando proveito das visíveis limitações do titular, afirmou que «os Estados Unidos são e continuarão a ser a única nação indispensável». E explicou: «Do Brasil à Índia, as classes médias em ascensão competem conosco; é tarefa da sua geração responder a este novo mundo.» Ou seja, garantir que a ordem de sempre continue a vigorar.

Trata-se, sem dúvida, da reafirmação do programa imperial e do «excepcionalismo» norte-americano, conceito equivalente ao de «domínio de espectro total», todos eles emanados dos centros de conspiração norte-americanos a partir da queda do muro de Berlim. Todas as outras nações do planeta são, portanto, «dispensáveis». A começar pelas que foram prestar vassalagem em Madri, no âmbito de uma organização militar com ambições de controle global, à sua incontestável chefia, exercida pela única nação «indispensável». 

É um fato que todos os outros membros da O TAN aceitaram por inerência esse estatuto de não-países ao abdicarem das soberanias militares e, no caso da maioria deles, das soberanias econômicas e políticas no interior de comunidades geridas por não-eleitos, como a União Europeia. Dissolvendo-se assim a democracia e a capacidade de intervenção internacional de cada um deles por obra de governos sofrendo de total falta de brio, de dignidade e, sobretudo, de respeito pelos seus povos.

A teoria das nações «dispensáveis» é aliás uma das bases da estratégia de Great Reset, o grande reinício, do Fórum Econômico Mundial de Davos (FEM), assentado na perspectiva da instauração de um governo global num mundo sem fronteiras e sem barreiras habitado por «cidadãos felizes que nada têm de seu» – tudo lhes é servido num universo de controle digital, segundo pode-se ler no site do próprio FEM.

Como seria de esperar, nem todas as nações, pelos vistos a maioria delas e que representam muito mais de três quartos da população mundial, se revêem neste panorama tão futurista como orwelliano e não abdicam da soberania, da independência e da intervenção no quadro do direito internacional, rejeitando, por isso, a «ordem internacional baseada em regras». O que representa uma atitude subversiva perante a gestão imperial, seus agentes e instituições.

Chegamos, portanto, a um confronto existencial entre uma ordem vigente decadente (a História nos ensina que os impérios acabam) e uma ordem nascente funcionando segundo novos mecanismos de coexistência internacional suportados pela cooperação mutuamente vantajosa e igualitária entre Estados fortemente soberanos. Exatamente o oposto do colonialismo e do imperialismo vigentes.

Os senhores do mundo, habituados a pôr e dispor de um planeta submetido às suas ordens, interesses e rapinas, reagem muitas vezes sem nexo e lucidez às transformações. Não as admitem e com a finalidade de as travarem inventam «regras» sempre em formato de guerra, sanções e outras arbitrariedades penalizadoras para tentarem manter um sistema de diktat internacional cada vez mais feroz. A guerra é, como se percebe, a única ferramenta a que recorrem para tentarem atingir os seus fins.

A cultura da guerra, da violência e da mentalidade de confronto como norma fundamental no contexto de um pensamento único define, por isso, a essência dos anos que este século tem de vida.

Reacionário por inerência, o imperialismo ataca as mudanças em estilo cada vez mais precipitado e desesperado, como é próprio de quem sente que entrou num beco sem saída. Foi tudo isso que a Cúpula da OTAN expôs em Madri e que nem a irresponsável euforia midiática, funcionando como central de propaganda belicista onde a palavra «paz» tem conotações subversivas, conseguiu disfarçar.

Entre a velha ordem e a consolidação das transformações suscetíveis de criar um novo sistema de relações entre nações que se respeitam independente das características que assumam os seus governos, existe um interregno que começamos a atravessar. Um período extremamente perigoso, instável, propício ao aparecimento de comportamentos irresponsáveis, terroristas e persistentemente provocatórios. A Cúpula da OTAN confirmou, tragicamente, a atualidade destas ameaças de alto risco.

Como existem milhares de armas nucleares nos arsenais de pouco mais de meia dúzia de países, a situação tornou-se aterradora para a espécie humana. Já repararam certamente que os senhores do império deixaram, de um momento para o outro, de falar em alterações climáticas, «transições digitais» e economias «verdes», e não hesitam sequer em recorrer de novo ao carvão como fonte de energia. O que confirma o princípio defendido pelos verdadeiros pacifistas e ecologistas de que o combate à guerra é a prioridade da luta pela sobrevivência do planeta, nunca devendo estar isolado das ações contra os problemas ambientais e vice-versa. Uma bomba nuclear provoca em minutos as catástrofes que as mudanças climáticas ameaçam fazer em décadas.

Nada do que se passou na Cúpula da OTAN é tranquilizador em relação aos tempos que estamos vivendo. Pelo que é urgente restabelecer uma cultura de paz mesmo que isso represente um comportamento subversivo perante os senhores que nos governam e os seus esbirros midiáticos, que persistem em tentar nos robotizar no modo suicida de pensamento único.

Exclusivo AbrilAbril

[Foto: O presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky (no vídeo), fala durante a Cúpula da OTAN em Madri, em 29 de junho de 2022
Créditos: Juan Carlos Hidalgo / EPA]

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