16 de novembro de 2021
O ex-presidente Luiz Inácio Lula da
Silva realizou uma palestra, na tarde desta terça-feira (16), no Instituto de
Estudos Políticos de Paris (Sciences Po). O evento, intitulado “Qual o lugar
do Brasil no mundo de amanhã?“, celebra os dez anos do título Doutor
Honoris Causa concedido pela instituição a Lula. O ex-presidente foi o primeiro
latino-americano a receber o título desta que é uma das instituições mais
respeitadas do mundo na área de ciência política e social.
Leia os principais trechos da
palestra:
É um privilégio voltar a este
anfiteatro histórico, onde estive há dez anos para receber o título de Doutor
Honoris Causa da Sciences Po. Tenho hoje a oportunidade de renovar os
agradecimentos e compartilhar impressões sobre as mudanças que ocorreram, desde
então, no Brasil, na América Latina e em nosso planeta.
Quero primeiramente agradecer por
este honroso convite à presidente da Fundação Nacional de Ciências Políticas,
Laurence Bertrand, ao presidente do Observatório Político da América Latina e
Caribe, Olivier Dabene, e a seu diretor-executivo, o professor Gaspard Estrada.
Disse em 2011 e reafirmo que estas
homenagens não pertencem a mim pessoalmente, mas ao sofrido e corajoso povo
brasileiro, em sua luta permanente por um país e um mundo mais justo, menos
desiguais e mais democráticos.
Quero saudar os convidados, os
professores e professoras, funcionários, alunos e alunas. Faço uma saudação
especial aos estudantes brasileiros e latino-americanos, que a Sciences Po
sempre acolheu nos momentos históricos mais difíceis para nossa gente. A
solidariedade aos perseguidos do mundo é uma das mais admiráveis tradições do
povo de Paris; tradição que felizmente persiste nesses tempos em que se
dissemina o ódio e a intolerância.
Pessoalmente, tenho muito a agradecer
pelo apoio e solidariedade que recebi de tantos amigos e companheiros na
França, ao longo do período em que fui alvo de uma implacável perseguição
judicial, política e midiática em meu país.
Agradeço especialmente ao Comitê Lula
Livre da França, ao apoio que recebi de companheiros como François Hollande e
Jeán-Luc Mélenchon, ao Conselho de Paris e à prefeita Anne Hidalgo, por minha
nomeação com Cidadão de Honra de Paris. Foram gestos generosos que romperam o
muro de silêncio sobre a nossa resistência no Brasil.
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Foram cinco anos de luta pela
verdade e pela justiça até que o Supremo Tribunal Federal do Brasil viesse a
estabelecer, afinal, a suspeição e a parcialidade do juiz que me condenou sem
provas e sem causa, como vinham denunciando desde o início meus incansáveis
advogados, Cristiano Zanin e Valeska Teixeira Martins.
Sempre compreendi que ao
condenar, prender ilegalmente e tentar proscrever minha pessoa, o que se
pretendia era aniquilar o projeto de um país mais justo, soberano, comprometido
com a sustentabilidade ambiental e democraticamente integrado ao mundo, que os
governos do Partido dos Trabalhadores representaram e continuam representando
no Brasil.
Nossa vitória na dura batalha para
restabelecer minha inocência e meus direitos políticos insere-se na luta mais
ampla do povo brasileiro e dos que defendem a liberdade e a democracia em todo
o mundo. Se vencemos, foi porque nunca estive só. Os 580 dias e noites em que
estive preso foram também 580 dias e noites em que, do lado de fora, sob sol ou
sob chuva, companheiros e companheiras que eu nem conhecia pessoalmente estavam
em permanente e solidária vigília.
MEUS AMIGOS E MINHAS AMIGAS,
Quando estive aqui, em setembro de
2011, o mundo ainda sofria os impactos da grande crise do capitalismo de 2008,
decorrente da especulação financeira desenfreada e sem controles.
O alerta para os efeitos nefastos do
aquecimento global já estava na ordem do dia. Debatíamos a necessidade de
fortalecer os organismos multilaterais e de atuarmos coordenadamente pela paz,
contra a desigualdade, a miséria e a fome no mundo.
Dez anos depois, os desafios
fundamentais da humanidade continuam os mesmos. A urgência de enfrentá-los é
que vai se tornando maior. Uma urgência agravada pela pandemia que segue
devastando especialmente as populações dos países mais pobres, além daqueles
cujos governos negaram a Ciência ou, pior ainda, investiram na morte, como
ocorreu no Brasil.
É duro, mas é necessário, admitir que
na última década o mundo regrediu.
Não há como explicar às gerações
futuras que em nosso tempo 1% da humanidade detém quase a metade da riqueza do
planeta, enquanto 800 milhões de pessoas passam fome. Que uns poucos
privilegiados viajam ao espaço por um capricho bilionário, enquanto milhões de
famílias não têm sequer onde morar.
Não há justificativa para não termos
taxado as transações financeiras globais, e criado fundos de desenvolvimento e
combate à pobreza.
É diante desses desafios que me
convidam a falar sobre o papel do Brasil no futuro próximo. Apesar da
gravíssima situação e de todos os retrocessos que foram impostos ao país e ao
povo brasileiro nos anos recentes, quero trazer uma palavra de esperança.
MEUS AMIGOS, MINHAS AMIGAS
É inevitável comparar a posição
que o Brasil havia alcançado nas relações internacionais com o isolamento entre
as nações em que o país se encontra hoje. Isso não é fruto do acaso. É o
resultado de uma disputa pelo poder que extrapolou os limites da Constituição e
do respeito à democracia, até culminar no golpe do impeachment sem crime da
presidenta Dilma Rousseff, em 2016, e tudo o que veio depois.
O objetivo indisfarçável do golpe era
reverter o projeto de país soberano, voltado para o desenvolvimento econômico,
social e ambientalmente sustentável, com geração de emprego e distribuição de
renda para a imensa maioria historicamente excluída.
Ampliamos significativamente o
investimento público em políticas sociais e de infraestrutura para o
crescimento, reduzindo e controlando a inflação e a dívida pública. O Brasil
chegou a ser a sexta maior economia do mundo. Em 12 anos, criamos 20 milhões de
empregos formais, elevamos em 74% o salário-mínimo e, graças a um conjunto de
programas, dos quais o mais conhecido é o Bolsa Família, tiramos da miséria 36
milhões de pessoas. Em 2012, o Brasil saiu do Mapa da Fome da ONU.
Criamos 18 universidades, com 178
novoscampi e 422 escolas técnicas por todo o país. O Estado criou o passou a
garantir o crédito educativo, ampliou a oferta de vagas e reservamos cotas para
negros, indígenas e alunos de escolas públicas nas universidades. As matrículas
no ensino superior saltaram de 3,5 milhões para 8 milhões e, pela primeira vez,
negros, pardos e filhos de trabalhadores chegaram a ser maioria nas
universidades públicas do Brasil.
Dessa forma reduzimos a desigualdade
e ao mesmo tempo aprofundamos a democracia.
Costumo dizer que tudo isso aconteceu
porque, também pela primeira vez, colocamos os pobres e os trabalhadores no
Orçamento da União, provando com isso que os pobres não são problema, mas sim a
solução do país.
Transformações dessa magnitude
parecem intoleráveis para elites forjadas num processo histórico marcado pela
violenta apropriação das terras e das riquezas naturais, pelo genocídio dos
indígenas e por mais de três séculos de escravização de povos africanos.
Havíamos interrompido um ciclo de
políticas econômicas neoliberais, de encolhimento do estado e privatização sem
critério. Contrariamos poderosos interesses econômicos, financeiros e
geopolíticos dentro e fora do Brasil. Foi para interromper aquele projeto de
país soberano e retomar o ciclo neoliberal que mentiram ao país até levar um
governo autoritário e obscurantista à presidência da República.
Na realidade, o processo de
destruição nacional em curso no Brasil só poderia ser conduzido por um governo
antidemocrático, num país envenenado pela indústria das fake news e em que a
oposição é excluída dos debates nos grandes meios de comunicação.
Destruíram cadeias econômicas
essenciais, os setores de engenharia, óleo e gás, e estão destruindo a maior
empresa do povo brasileiro, a Petrobrás. Corroeram as finanças públicas e
contrariamente ao que prometiam, minaram a confiança dos investidores.
Transformaram o Brasil numa economia onde apenas especuladores e oportunistas
obtém benefícios.
O resultado é que em apenas cinco
anos os trabalhadores perderam direitos fundamentais, o desemprego e o custo de
vida explodiram, programas sociais foram abandonados ou descontinuados, incluindo
o Bolsa Família. A fome voltou ao cotidiano das famílias.
O governo desmonta políticas públicas
bem sucedidas e persegue os cientistas, artistas, professores e lideranças
sociais; incentiva a destruição das florestas e a mineração ilegal.
Este governo colocou o Brasil
de costas para o mundo e quem mais sofre com isso é o povo.
Por todos estes motivos, uma nova
inserção do Brasil no cenário mundial passa, necessariamente, pela reconstrução
do país, num processo de eleições democráticas e verdadeiramente livres, sem
fake news diferentemente do que ocorreu em 2018.
QUERIDOS AMIGOS, QUERIDAS AMIGAS,
O isolamento político e diplomático
do Brasil é nocivo não só para o nosso país, mas para a comunidade das nações.
Ouso dizer que nossa participação ativa nos grandes fóruns globais faz muita
falta para o mundo.
O Brasil é muito mais que um imenso
território, um grande mercado e uma economia que foi até recentemente um dos
maiores destinos de investimento produtivo. O Brasil são 213 milhões de seres
humanos, das mais diversas origens, com capacidade de trabalhar, aprender,
ensinar e sonhar. Um país defensor do diálogo, com tradição de convivência
pacífica e respeito à autodeterminação dos povos.
Temos muito a contribuir em temas
como o combate à pobreza e à fome; o diálogo político; a construção da paz; o
equilíbrio geopolítico do mundo; a democratização das relações financeiras e
comerciais entre países e no enfrentamento da emergência climática. Temos muito
a contribuir para a segurança alimentar do planeta, a economia global, a
cultura, a ciência e tecnologia.
Na medida em que o povo
brasileiro volte a decidir sobre os rumos do país, estou certo de que atuaremos
fortemente em todas as iniciativas para superar a indecente desigualdade entre
países, e garantir a segurança ambiental do planeta. Esta é a nossa vocação e
foi nossa prática quando governamos.
Recordo que chegamos à
Conferência do Clima de Copenhague, ainda em 2009, apresentando a meta
voluntária de reduzir as emissões de CO2 em até 39% em 2020, compromisso
transformado em lei pelo Congresso Nacional. Aquela atitude nos autorizou a
chamar à mesa os grandes países, lançando ali as sementes do que viria a ser o
Acordo do Clima de Paris de 2015.
Nossa credibilidade era lastreada na
redução da taxa de desmatamento em 75%, o menor nível alcançado até então.
Nosso governo foi responsável por 74% das unidades de conservação florestal e
ambiental criadas no mundo naquele período. Apresentei estes dados aqui na
Sciences Po. em 2011 e, apesar de todos os retrocessos, são eles que
representam de fato o compromisso do povo brasileiro com o planeta em que
vivemos.
Temos plena consciência da
necessidade de preservar a Amazônia, por uma razão muito simples e não muito
difundida: é nela que vivem mais de 25 milhões de brasileiros e brasileiras,
incluindo povos indígenas, populações ribeirinhas, pescadores e extrativistas.
A ninguém interessa mais preservar a floresta, saudável e de pé, do que a quem
dela retira seu sustento, em necessário equilíbrio.
Demarcamos mais de 50 milhões de
áreas de proteção florestal em nossos governos, para que nelas possam conviver
os indígenas, os quilombolas e as populações locais em harmonia com a natureza.
Incentivamos a pesquisa científica e a utilização sustentável dos recursos da
Amazônia em benefício da humanidade.
Os que destroem, degradam,
incendeiam e desmatam são invasores, que, em nosso período, vinham sendo cada
vez mais coibidos pela lei e pelo Estado, mas no governo atual eles receberam
salvo-conduto para cometer seus crimes.
Somos nós os mais radicalmente
interessados em manter vivo esse patrimônio natural, sem abrir mão nem de nossa
soberania nem de nossa responsabilidade intransferível. Foi dessa maneira que
obtivemos, por exemplo, o apoio financeiro da Alemanha e da Noruega para
constituir o Fundo Amazônia, que lamentavelmente foi tornado inviável pelo
atual governo do Brasil.
QUERIDAS AMIGAS, QUERIDOS AMIGOS,
Foi para nos abrirmos ao mundo, de
maneira soberana e solidária, que nos empenhamos na integração latino-americana
a partir da América do Sul. Fortalecemos o Mercosul, criamos a Unasul, o
Instituto Sulamericano de Governo em Saúde, o Conselho de Defesa da América do
Sul e, em seguida, da Comunidade de Estados Latino-Americanos e do Caribe, a
Celac.
Não é pouco relevante, considerando a
história, termos estabelecido na América Latina e Caribe um foro político e
diplomático autônomo em relação aos Estados Unidos.
Na minha visão, o avanço da
integração regional permitirá aos nossos países contribuir de forma efetiva
para um diálogo global mais democrático. Por isso, também inovamos ao
estabelecer o IBAS, com a Índia e África do Sul, e os BRICS, incluindo a Rússia
e China.
Ampliamos o comércio e as
relações com a União Europeia e avançamos na parceria estratégica e de Defesa
com a França. Cooperamos com os países da África, estabelecemos novo diálogo
com os países árabes e com a China, sem prejuízo de relações comerciais e
diplomáticas que mantínhamos com outros países.
Foram avanços importantes,
dentro de uma visão de um mundo multipolar, que deram consequência prática à
defesa de relações econômicas e políticas mais equilibradas entre países. A
necessidade de fortalecer ou renovar o sistema multilateral, tornando-o mais
efetivos por meio de sua democratização, é uma questão dramaticamente urgente
para o mundo.
Nunca me conformei com o fato
dos países ricos não terem dado consequência às resoluções do G 20 nas reuniões
de Londres e Pitsburgh em 2009.
Além da frustração com o que se
deixou de fazer, preocupa-me que a comunidade internacional tenha feito tão
pouco para impedir que outra crise venha a ocorrer em escala ainda maior. O
sistema financeiro globalmente integrado exerce seu poderio de forma
instantânea sobre a vida de 7 bilhões e oitocentos milhões de pessoas.
Será que teremos de esperar a próxima
crise para voltar a falar sobre a necessidade de uma governança global
democrática? Até quando a ganância dos ricos, o isolacionismo dos governos e o
individualismo vão prevalecer sobre os interesses do planeta e da humanidade?
Estamos falando da responsabilidade
dos Estados nacionais e da recuperação do papel da Política, em seu mais
elevado sentido, para enfrentarmos juntos e coordenadamente o desafio da
desigualdade.
O atraso, a pobreza e a fome
não são mandamentos divinos. São o resultado do que fazemos ou deixamos de
fazer neste mundo.
A experiência me mostrou que para
enfrentar a desigualdade num país, é central o papel do Estado para cobrar e
distribuir, para planejar e executar políticas públicas abrangentes, para
garantir os direitos do mais fracos. Estas funções o Estado exerce quando é
governado democraticamente, convivendo com a energia de uma sociedade livre –
partidos, movimentos, imprensa, universidades e indivíduos.
A desigualdade entre os povos
e países tampouco nasceu com a humanidade. É resultado de processos históricos
que privilegiaram alguns em detrimento de muitos, em um círculo vicioso, até
chegarmos ao ponto em que nos encontramos.
É certo que não temos respostas
prontas para estas questões, mas é mais certo ainda que elas só vão se agravar
se ficarmos inertes e tudo continuar como está.
Temos de buscar estes caminhos no
diálogo democrático, sincero e com sentido de justiça, para o qual o Brasil
terá muito a contribuir, tão logo volte a ser a um país soberano.
AMIGOS E AMIGAS,
O mundo ainda vive a grande crise
causada pela pandemia. Como ocorreu depois de outras grandes crises, é
necessário reconstruir as instituições internacionais sobre novas bases. Não
podemos continuar governados pelo sistema criado após a Segunda Guerra Mundial.
É urgente convocar uma conferência mundial, com representação de todos os
Estado, e participação da sociedade civil, para definir uma nova governança
global, justa e representativa.
Neste planeta que compartilhamos, o
futuro da humanidade precisa ser construído com diálogo e não autoritarismo,
com paz e não com violência; com mais livros e não mais armas; com mais escolas
para termos menos presídios. Com mais verdade, e menos mentiras. Com mais
respeito a natureza, para assegurarmos a água, o ar e a vida para nossos filhos
e netos. Com mais acolhimento e solidariedade, e menos exclusão.
Com mais amor e menos ódio.
Muito obrigado, do fundo do meu
coração, por esse reencontro.
MUITO OBRIGADO!
Luiz Inácio Lula da Silva
FONTE: www.pt.org.br
EM TEMPO: Chora Bozo, Bolsominios e Moro (rsrsrs)
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