Edson Veiga - De Bled (Eslovênia) para a BBC News Brasil
dom., 19 de setembro de 2021
Paulo Freire está
entre os pensadores mais citados do mundo
Esta reportagem foi publicada
originalmente no dia 12 de janeiro de 2019 e republicada em 19 de setembro de
2021, data do aniversário de cem anos do nascimento de Paulo Freire.
Tratada pelo governo Bolsonaro como
bode expiatório da má qualidade do ensino público brasileiro, a obra do
educador Paulo Freire (1921-1997) pode ser controversa. Mas o trabalho do
pedagogo e filósofo, nomeado em 2012 patrono da educação brasileira e autor de
um método de alfabetização que completou 50 anos em 2013, não deixa de ser
bastante relevante nas discussões mundiais sobre pedagogia.
Freire é estudado em universidades
americanas, homenageado com escultura na Suécia, nome de centro de estudos na
Finlândia e inspiração para cientistas em Kosovo. De acordo com levantamento do
pesquisador Elliott Green, professor da Escola de Economia e Ciência Política
de Londres, na Inglaterra, o livro fundamental da obra do educador, 'Pedagogia
do Oprimido', escrito em 1968, é o terceiro mais citado em trabalhos acadêmicos
na área de humanidades em todo o mundo.
Para especialistas em educação
ouvidos pela BBC News Brasil, entretanto, a raiz da controvérsia em torno da
pedagogia de Paulo Freire não é sua aplicação em si - mas o uso
político-partidário que foi feito dela, historicamente e, mais do que nunca,
nos dias atuais. "Li a maior parte dos livros dele. Minha tese de
doutorado foi amplamente baseada em seus ensinamentos. Tenho aplicado seu
método de várias maneiras em minha carreira profissional, na prática e na
pesquisa", afirmou a pedagoga Eeva Anttila, professora da Universidade de
Artes de Helsinque, na Finlândia.
"A maior vantagem de sua
metodologia é a abordagem anti-opressiva e não autoritária, a pedagogia
dialógica e respeitosa que ele promoveu. O problema é que suas ideias têm sido
usadas para fins políticos - o que, em meu entendimento, nunca foi seu
propósito inicial", disse a finlandesa.
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Freire tornou-se conhecido a partir
do início dos anos 1960. Ele desenvolveu um método de alfabetização de adultos
baseado nos contextos e saberes de cada comunidade, respeitando as experiências
de vida próprias do indivíduo. Aplicou o modelo pela primeira vez em um grupo
de 300 trabalhadores de canaviais em Angicos, no Rio Grande do Norte. De acordo
com os registros da época, a alfabetização ocorreu em tempo recorde: 45 dias.
Homenagens pelo
mundo
Referência mundial em qualidade do
ensino, a Finlândia conta, desde 2007, com um espaço dedicado a discutir a obra
do educador brasileiro. O Centro Paulo Freire Finlândia fica na cidade de
Tampere. "É um hub para os interessados em Paulo Freire e em seu legado
para tornar o mundo mais igualitário e justo", de acordo com a definição
da própria instituição. Eles publicaram, online, três livros com artigos - em
finlandês - analisando a obra do brasileiro. O material teve 17 mil downloads.
Um mural retratando
o pedagogo pernambucano na Universidade do Bío-Bío, no Chile
Há centros de estudos semelhantes,
todos batizados com o nome do brasileiro, na África do Sul, na Áustria, na
Alemanha, na Holanda, em Portugal, na Inglaterra, nos Estados Unidos e no
Canadá. Na Suécia, Freire é lembrado em um monumento público. Localizada no
subúrbio de Estocolmo, 'Depois do Banho' é uma obra em pedra-sabão esculpida
entre 1971 e 1976 pela artista Pye Engström. Sentadas lado a lado, estão
retratadas sete personalidades com apelo político, como o poeta chileno Pablo
Neruda (1904-1973), a escritora sueca Sara Lidman (1923-2004) e a sexóloga
norueguesa Elise Ottesen-Jensen (1886-1973).
Mas a obra do educador brasileiro
está longe de ser unanimidade entre os países que costumam liderar o ranking
Pisa (sigla em inglês para Programa Internacional de Avaliação de Estudantes).
Em Cingapura, que apareceu na primeira colocação na edição 2016 da avaliação
trienal realizada pela OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento
Econômico) com escolas conhecidas por adotar um método linha-dura, a BBC News
Brasil procurou a mais importante instituição de ensino superior do país para
saber se algum pesquisador comentaria a obra do brasileiro Paulo Freire.
Professor destacado pela assessoria
de comunicação da Universidade Nacional de Cingapura para atender à reportagem,
Kelvin Seah disse que "não era a melhor pessoa para comentar sobre Paulo
Freire". "Eu não sou familiarizado com seu método", afirmou.
Convidado a comentar sobre qual seria o método mais adequado ao contexto brasileiro, o especialista recomendou que os gestores analisassem caso a caso. "O método mais apropriado para os alunos em uma escola depende do perfil dos alunos da escola, do treinamento prévio recebido pelos professores, bem como dos recursos de instrução e financeiros disponíveis para a escola."
Pedagogia do
diálogo nos Estados Unidos
Em artigo acadêmico analisando o
legado de Paulo Freire pelo mundo, o professor de filosofia da educação da
Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos, Ronald David Glass aponta que o
mérito de Paulo Freire está no método que valoriza a "consciência crítica,
transformadora e diferencial, que emerge da educação como uma prática de
liberdade".
"Paulo Freire viveu sua vida no
espaço desta consciência; é por isso que inspirou e energizou pessoas no mundo
inteiro, e é por isso que seu legado se prolongará muito além de qualquer
horizonte que possamos enxergar agora", escreveu o professor. "Freire
sempre estava buscando se tornar mais humano, tornar possível que outros fossem
mais humanos e, se acolhermos esta busca com tanto amor e determinação quanto
ele, então uma maior medida de justiça e democracia estará ao alcance."
Professor da Faculdade de Educação da
Universidade Cristã do Texas, Douglas J. Simpson causou certa polêmica no meio
acadêmico ao publicar, anos atrás, um artigo intitulado 'É Hora de Engavetar
Paulo Freire?'. "Na verdade, não acho que suas ideias devam ser
arquivadas", esclareceu ele à BBC News Brasil. "Meu texto foi pensado
para atrair a atenção daqueles que acham que sempre estamos recorrendo a
Freire. Pessoalmente, acho importante descobrir de novo ou pela primeira vez
por que precisamos combinar uma forte paixão reflexiva 'freireana', de respeito
e amor, a pessoas carentes de justiça pessoal."
Simpson afirma que a pedagogia baseada no diálogo é fundamental "para que a educação e a democracia prosperem, ou pelo menos sobrevivam". Ele culpa justamente a falta de diálogo pelo fato de as sociedades - e as escolas - estarem fortemente polarizadas politicamente. "Não temos sido efetivamente ensinados a praticar o diálogo nas escolas, muito menos nos governos." Para o professor, Paulo Freire ensinou, acima de tudo, que precisamos aprender "a ouvir, a entender e a respeitar uns aos outros" e a "trabalhar juntos nos problemas".
Considerando o contexto brasileiro,
Simpson acredita que não deveria haver uma padronização - ou seja, que as
escolas não deveriam seguir todas o mesmo método pedagógico. "As escolas
precisam de culturas e responsabilidades que se baseiem em uma ética
profissional, políticas e práticas meritórias", disse. Para ele, os métodos
são necessários, "mas devem ser vistos como revisáveis, porque as escolas,
sociedades, trabalhos e aprendizados são dinâmicos". "A padronização
nas escolas muitas vezes leva a uma inércia indevida, de mesmice, de
regulamentação estéril", complementou.
Nos anos 1970, o pedagogo John L.
Elias, então professor da Universidade de Nova Jersey, escreveu muito a
respeito de Paulo Freire. O educador brasileiro foi tema de sua tese de
doutorado. Em texto de 1975, Elias apontou "sérios problemas no método"
do brasileiro.
"A teoria da aprendizagem de
Freire está subordinada a propósitos políticos e sociais. Tal teoria se abre
para acusações de doutrinação e manipulação", afirmou ele. "A teoria
de Freire da aprendizagem é doutrinária e manipuladora?", provocou.
Paulo Freire é a segunda figura, da esq. para a dir., nesta escultura de 1976 de Nye Engström. A obra fica em Estocolmo, na Suécia
Elias apontou que o educador
brasileiro via "os sistemas educacionais do Terceiro Mundo como o
principal meio que as elites opressoras usam para dominar as massas".
"Conhecimento e aprendizado são políticos para Freire, porque eles são o
poder para aqueles que os geram, como são para aqueles que os usam",
argumentou.
Professora de Educação Internacional
e Comparada na Faculdade dos Professores da Universidade Columbia, nos Estados
Unidos, Regina Cortina já abordou a metodologia de Paulo Freire em diversos
estudos sobre educação na América Latina, mas disse à BBC News Brasil que não
se sentia "confortável" em comentar o tema no momento "por causa
das mudanças administrativas no Brasil". Cortina afirmou, por meio da
assessoria de imprensa da universidade, que não é possível vislumbrar com
clareza "como as coisas vão seguir nas escolas brasileiras".
Principal obra de
Freire, "Pedagogia do Oprimido" foi escrito em 1968, mas só foi
publicado no Brasil anos depois, em 1974
Quais as ideias de
Freire?
Para Freire, o ensino ocorre a partir
do diálogo entre professor e aluno, desenvolvendo assim capacidade crítica e
preparando os estudantes para sua emancipação social. No jargão do meio, o
método Freire é o oposto ao conceito "bancário" de educação - aquele
no qual o professor "deposita" o conhecimento nas mentes dos alunos.
Para Freire, a educação é construída em conjunto.
O método Paulo Freire chegou a ser
adotado pelo governo de João Goulart (1919-1976) em esforços para alfabetização
de adultos. Com a ditadura militar, entretanto, o educador passou a ser
perseguido, chegou a ser preso por 70 dias e viveu no exílio na Bolívia e no
Chile. Após a publicação da 'Pedagogia do Oprimido', em 1968, Freire foi
convidado para ser professor visitante na Universidade Harvard, nos Estados
Unidos.
Reconhecido desde 2012 como o Patrono
da Educação Brasileira, Paulo Freire é considerado o brasileiro mais vezes
laureado com títulos de doutor honoris causa pelo mundo. No total, ele recebeu
homenagens em pelo menos 35 universidades, entre brasileiras e estrangeiras,
como a Universidade de Genebra, a Universidade de Bolonha, a Universidade de
Estocolmo, a Universidade de Massachusetts, a Universidade de Illinois e a
Universidade de Lisboa. Em 1986, Freire recebeu o Prêmio Educação para a Paz,
concedido pela Unesco, a Organização das Nações Unidas para a Educação,
Ciências e Cultura.
Paulo Freire em retrato de 1963
Há instituições de ensino que seguem o método Paulo Freire em diversos países. É o caso da Revere High School, escola em Massachusetts que em 2014 foi avaliada como a melhor instituição pública de Ensino Médio nos Estados Unidos. Em Kosovo, um grupo de jovens acadêmicos criou um projeto de ciência cidadã inspirado na pedagogia crítica do brasileiro. Os participantes recebem um kit para monitorar as condições ambientais e, assim, juntos, pressionar o governo por melhorias na área.
"Acredito que seria ótimo que a pedagogia em
qualquer escola de qualquer país partisse do pensamento de Freire",
comentou a pedagoga finlandesa Anttila. "Especialmente no Brasil, dada a
atual situação política e a história do país." Ela diz que um método de
ensino, para funcionar bem, precisa levar em conta as situações de vida dos
alunos. "Não acredito em pedagogia autoritária. As aulas não precisam ser
autoritárias. É preciso diálogo, discussão, negociação, exploração. Construir
conhecimento para que haja capacidade de expressar ideias e ouvir os outros.
Eis a chave para a democracia. E a educação democrática é a única maneira de
salvaguardar uma sociedade democrática", declarou.
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