Por Mauro Iasi
BLOG DA BOITEMPO
Há um golpe em
marcha. Ele pode fracassar, pode não passar de um blefe ou pode ser uma vitória
de Pirro, na qual o golpista não consegue montar no tigre que pretendia
cavalgar.
Bolsonaro não se
preparou para governar, sua intenção desde o início foi produzir as condições
para uma ruptura institucional, numa espécie de saudosismo de 1964. Tais
condições pareciam ser uma radicalização nas pautas morais e reacionárias e a
construção de uma narrativa, na qual o miliciano que ocupa a presidência
estaria sendo impedido de governar pela interferência de outros poderes, o
Legislativo e o Judiciário.
As coisas não aconteceram como imaginava o presidente de extrema direita por alguns motivos. Em primeiro lugar, a ruptura institucional que levaria a um governo de força necessitaria de dois apoios essenciais: o grande capital e as Forças Armadas. Temos afirmado que em nenhum desses pólos o presidente teria um respaldo homogêneo. A grande burguesia monopolista se divide entre a manutenção do presidente, que opera sua pauta, e a necessidade de afastá-lo porque o mandatário e suas intenções rupturistas criam uma grande instabilidade, que prejudica o bom andamento da mesma pauta.
As Forças Armadas transformaram-se em
avalistas do presidente, uma espécie de garantia ao grande capital e aos outros
poderes de que o presidente se manteria no cercadinho da institucionalidade
apesar de suas bravatas. Os militares são mais que avalistas, participam
diretamente do governo e têm demonstrado que seus interesses extrapolam o
corporativismo e se aproximam de interesses econômicos e políticos que
compartilham com o bolsonarismo.
Este jogo de forças
produziu um pacto protagonizado pelos militares, o Judiciário e o Legislativo que
manteve até agora o miliciano. O descontrole da pandemia, os desvios e
desmandos na vacinação e a Comissão Parlamentar de Inquérito jogaram água no
moinho daqueles que querem o afastamento do presidente ou desgastá-lo para
buscar uma alternativa em 2022. O problema é que, quanto mais o cerco se fecha,
mais o presidente ameaça uma ruptura. A grande questão é, portanto, se o
miliciano no governo tem ou não condições de desfechar seu golpe e efetivá-lo
na formação de um governo de força, mesmo sem o apoio ou respaldo integral do
grande capital, que parece preferir uma continuidade institucional que o
favorece e não parece ameaçada em 2022.
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Esta não é uma
questão tão simples. Acredito que a resposta tem que partir de duas
constatações: primeiro, o presidente tem meios para iniciar uma ruptura e
provocar uma fratura com consequências imprevisíveis; segundo, talvez, o
golpista não tenha apoio para efetivar o golpe em um novo governo fundado numa
institucionalidade de exceção.
Vamos nos deter, primeiramente, no plano que parece estar em andamento e verificar se os recursos disponíveis permitem a aventura golpista. O presidente tem demonstrado ser incontrolável, isto é, os que defendem a continuidade do pacto tendem a perder espaço para a polarização que colocará em rota de colisão os que estão com Bolsonaro e os que estão contra ele. Paralelamente, o governo de extrema direita acentuará as tensões e a narrativa de uma conspiração, convocando sua base social e política para checar as forças de que dispõe. Por enquanto, e isso pode mudar, o governo dispõe dos votos necessários para barrar um processo de impedimento na Câmara dos Deputados.
No entanto, diante de um relatório
final da CPI que, ao que se supõe, indica o indiciamento do presidente por um
certo número de delitos, pode haver um deslocamento desta camada fisiológica
que não guarda nenhuma coerência a não ser com sua própria sobrevivência.
Ao nosso ver, o
isolamento do presidente e a possibilidade de deposição são os gatilhos para o
plano já em andamento. Caso sobreviva ao impedimento, o pretexto seria a mítica
possibilidade de fraude nas eleições na ausência de um voto impresso. Seja como
for, a ameaça de ruptura permanece como uma ameaça constante. Como dissemos, a
aparência da figura tosca e aparvalhada no ato de governar não pode obscurecer
a capacidade do conspirador e dos meios de que dispõe para agir.
Assusta-me a
confiança que os setores políticos, incluindo aí a centro-esquerda que
acomodou-se ao campo institucional da ordem burguesa, tem na solidez de um
regime político que aponta sérios indícios de corrosão iminente. Tal postura
está na base da inação que espera que o calendário e as eleições de 2022
cheguem como solução redentora, independentemente de o atual presidente chegar
ou não em pé no pleito.
Essa convicção trabalha apenas com alguns fatores, todos eles no campo da institucionalidade, até porque ela mesma – a centro-esquerda – escolheu esse campo e abdicou de qualquer outra via de enfrentamento e de busca pelo poder do Estado. Entretanto, este recuo e a abdicação ao uso da força foram unilaterais. As classes dominantes nunca o fizeram, certamente a extrema direita nunca o fez. As classes dominantes e suas personificações políticas, midiáticas, jurídicas operam um sofisticado esquema que navega dentro e fora da institucionalidade e mesmo da legalidade, estão sempre preparadas e dispõem de recursos para a garantia da ordem.
Quando acreditaram ser necessário, operaram um golpe fundado
em uma escandaloso casuísmo jurídico, seja pelo pretexto das pedaladas que
afastaram a presidente eleita em 2014 ou pela farsa jurídica que afastou o
ex-presidente Lula da disputa eleitoral de 2018.
Por seu lado, o
bolsonarismo, que dirige sua intencionalidade na ruptura, centra suas
preocupações na aglutinação de recursos de força. Acobertado pelo pacto que lhe
deu uma sobrevida institucional, o miliciano se aproveita dos termos do pacto
para manter-se enquanto prepara essa ruptura. E como ela estaria sendo
construída?
Para seu intento o
bolsonarismo precisa de um certo apoio popular e de esquemas armados. É verdade
que, no que tange à popularidade, o presidente perdeu espaço, mas arrisco dizer
que o núcleo central do apoio de massas ao bolsonarismo ainda sobrevive. O
pacto que pretendia controlá-lo golpeou não mais que superficialmente as
máquinas de fake news e os meios de manipulação em massa, por exemplo, em
certos setores evangélicos. Ao lado disso, existe o apoio das milícias, de
parte dos aparatos policiais e de segmentos das Forças Armadas.
Na lógica do
miliciano, o país está dividido, e a crise gera condições de polarização e
confronto que serão decididas pela força. Na famosa reunião ministerial que se
tornou pública, o presidente insistiu na ideia do armamento de setores da
população, claramente vinculando esse armamento à defesa da população contra
uma ditadura. Agora convoca seus apoiadores para sair em defesa daquilo que ele
denomina de um “contragolpe”, reforçando a narrativa segundo a qual estaria em
marcha um golpe do Judiciário para afastá-lo.
Um dado deve ser
considerado neste possível cenário. Houve um enorme crescimento no número de
registros de armas no Brasil durante o atual governo, que, como sabemos, tentou
sempre que pôde facilitar o acesso às armas. O número de registros de armas na
Polícia Federal passou de 637.972 pedidos em 2017 para 1.056.670 pedidos em
2019 e 1.279.941, em 2020. Só no Distrito Federal, esses pedidos de registros
saltaram de 35.693 para 236.296, num crescimento de 562%. Os pedidos de
registro, que em 2018 eram de 46 armas por dia, saltaram para 378 pedidos
diários em 2019. Sabemos que, ao lado dos pedidos legais dos chamados cidadãos
de bem, as milícias têm outras fontes de armamento, como parece indicar o
arsenal descoberto na casa vizinha à do presidente em seu condomínio no Rio.
A meu ver, isto significa que a convicção de certos segmentos políticos de que o golpe estaria descartado pela falta de respaldo político (seja no Parlamento ou no grande capital), ou pela ação do poder judiciário como guardião de uma ordem constitucional estabelecida, apresenta-se como uma grossa ingenuidade. Os que planejam golpes devem levar em conta respaldos políticos, mas sabem que a ação de força é decisiva. Creio que o bolsonarismo aposta nesse cenário e na ideia de que, uma vez dada a partida para uma confrontação armada, conseguirá o apoio que lhe falta.
Existe a possibilidade do blefe, isto é, o bolsonarismo não
contaria com o apoio que alardeia nas milícias, corporações policiais e nas
Forças Armadas. No entanto, para seu intento, bastaria que segmentos destas
corporações se movessem e que os demais não tivessem disposição em promover a
resposta armada em defesa de uma ordem política em ruínas.
Resta a posição dos
interesses econômicos dominantes. Acredito que o grande capital, por ora, opera
na intencionalidade de manter a ordem política e institucional vigente, no
entanto, não podemos desconsiderar a variada gama de formas políticas nas quais
estes interesses se acomodam. O grande capital se desenvolveu satisfatoriamente
durante a Ditadura Militar inaugurada em 1964, sobreviveu à sua queda e
encontrou um terreno favorável à acumulação durante a transição controlada e
sob tutela militar, e mesmo no máximo desenvolvimento de uma democracia
limitada nos governos do PT. Por que não buscaria entender-se com um governo de
extrema direita à cabeça de um Estado forte se este acabasse por se impor pela
força? O capital não tem princípios, tem interesses.
Há um golpe em
marcha. Ele pode fracassar, pode não passar de um blefe ou pode ser uma vitória
de Pirro, na qual o golpista não consegue montar no tigre que pretendia
cavalgar. A institucionalidade burguesa pode se antecipar e frustrar a
tentativa golpista, afastando o presidente e prendendo os que iniciarem alguma
ação mais decisiva de reação. É possível. Mas, até agora, há um golpe em
marcha: de um lado os que apostam no conflito e se armam, de outro aqueles que
já preparam uma Ação Direta de Inconstitucionalidade para ser enviada a um
Supremo Tribunal Federal que pode não mais estar lá para recebê-la.
Mauro Iasi é
professor adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ, pesquisador do NEPEM
(Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas), do NEP 13 de Maio e membro do Comitê
Central do PCB. É autor do livro O dilema de Hamlet: o ser e o não ser da
consciência (Boitempo, 2002) e colabora com os livros Cidades rebeldes: Passe
Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil e György Lukács e a
emancipação humana (Boitempo, 2013), organizado por Marcos Del Roio. Colabora
para o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas. Na TV Boitempo, apresenta o
Café Bolchevique, um encontro mensal para discutir conceitos-chave da tradição
marxista a partir de reflexões sobre a conjuntura.
EM TEMPO:
1 - Acrescento ao texto do professor Mauro Iasi, que para se dar um autogolpe é preciso combinar com o governo Joe Biden, como também com os governos da China, França, Alemanha, Inglaterra, etc. Mas, Bozo não goza de prestígio internacional. Lembrando que o ex-juiz Sérgio Moro fez o que fez porque foi treinado nos EUA;
2 - A situação é incerta, mas diante de tantas hipóteses um autogolpe pode ser seguido de um golpe contra o próprio Bolsonaro. Será que os militares das três forças iriam dar um autogolpe para manter no poder um ex-militar indisciplinado? Agora durmam com esse pesadelo
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