(Foto: Tânia Rêgo/ Agência Brasil) |
“O Bope pede calma, ele não quer negociar
As operações no Rio
de Janeiro por vezes focam num único grupo armado, enfraquecendo-o no conflito
direto com seu inimigo territorial. Por Thiago Sardinha | Revista Opera
Por Thiago Sardinha
Revista Opera
A concepção de segurança pública que impera no Brasil e especificamente na cidade do Rio de Janeiro é algo que merece um extraordinário cuidado por conta da complexidade do tema. O que não faltam são reflexões que, em vez de se debruçar sobre a realidade, apontam conclusões e respostas antecipadas, num exercício cujo fim é antes dissertar de forma que o funcionamento da realidade confirme essas análises do que o contrário. Marx dizia que “não basta que o pensamento procure se realizar, a realidade deve compelir a si mesma em direção ao pensamento”.
Portanto, para analisar o que se concebe por aqui como segurança pública, é
primordial compreender a forma social na qual ela está atrelada, ou seja, uma forma
social capitalista e um modo de vida social burguês, com as especificidades da
dependência e formação periférica. Este fato não é menos importante, perfaz-se
determinante, e demarca o fio condutor de minha análise sobre segurança pública
no Rio de Janeiro.
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Nesse sentido, defendo a tese de que a polícia do Rio de Janeiro, associada a esta concepção de segurança pública, age como um grupo armado militarizado. Isto porque, a meu ver, as práticas policiais se assemelham em muito com as de alguns grupos armados, por isso também defendo a existência de facções dentro da própria polícia, que lhe permitem comportamentos e ações sistemáticas com certa autonomia e independência.
Ora funciona de acordo com seus interesses e diferentes
motivações, ora sob os mandos da classe dominante que podem ser resumidos no
extermínio de pobres e favelados. Tudo isso com respaldo social, jurídico e
político. Na história da formação social brasileira temos notórios exemplos
dessa relação entre oficial e extraoficial, autônomo e estatal: Esquadrões da
Morte, Milícias, Grupos de Extermínio, Cavalos Corredores. Uma característica
importante correspondente à militarização do espaço urbano no Rio de Janeiro.
Esse fato se explica por um conjunto de movimentações que vem causando estranheza até para quem não está muito familiarizado com a temática da segurança pública: a concentração de operações policiais em territórios do Comando Vermelho. Uma planilha de registro de operações policiais do Ministério Público divulgada na imprensa apontou que a região onde as incursões policiais se concentram é onde atuam determinados grupos armados, na sua maioria facções do varejo do tráfico: Zona Norte: 58,45%; Zona Oeste: 33,33%; Centro: 4,35%; Zona Sul: 2,9% [1]. Um relatório publicado em janeiro de 2021 pelo GENI (Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos), que destaca a relação das operações policiais com os grupos armados, apontou que 40,9% das operações ocorrem em áreas do Comando Vermelho, enquanto que 6,9% foram em territórios do Terceiro Comando e 6,5% em áreas de milícias [2].
Além destes números, que por si só espantam, cumpre destacar a
natureza destas operações. Em tempo que em favelas do CV a ordem é deixar corpo
no chão, nas outras áreas não é bem assim. Em territórios de milícias, nem
troca de tiro é perceptível. Um código que circula entre os milicianos é o de
que nunca se deve atirar ao ver uma viatura policial, pois não se troca tiro
com policiais, principalmente em serviço.
A questão territorial
entre os grupos armados no Rio de Janeiro é também algo que merece atenção.
Existem grupos armados com território rigorosamente definido, porém, outros
territórios estão em constante disputa, alguns deles mudando de controle à
medida que os grupos armados se enfrentam. Nessa trama, o papel da polícia
fluminense se faz imprescindível. A milícia é o grupo com maior número de
bairros sob seu domínio: 27,7%. Já o Comando Vermelho possui 26,4%; enquanto o
Terceiro Comando Puro e o Amigos dos Amigos têm 8,8% e 2,0% respectivamente. No
entanto, territórios em disputa perfazem 35,1%. Isto é, estão em constante
movimentação de territorialização e desterritorialização.
O mesmo relatório citado acima mostra que 45,5% das operações policiais notificadas no ano de 2019 foram em territórios em disputa entre os grupos armados. O que o estudo não aponta são as razões e o “lado” dessas operações, que por vezes servem de ajuda aos milicianos e até mesmo proteção. Por exemplo, na região da Praça Seca, Zona Oeste do Rio de Janeiro, já há algum tempo vêm ocorrendo intensas disputas entre a milícia e o Comando Vermelho. No Morro da Barão, especificamente, ocorreram 17 operações policiais, 10 delas realizadas pelo BOPE (Batalhão de Operações Especiais) entre junho de 2020 e maio de 2021.
A milícia possui
interesses logísticos e geográficos nesta região, que a permitiria avançar para
Zona Norte da cidade, formando uma espécie de complexo miliciano, com um largo
perímetro sob controle único da milícia. É o caso da outra parte da Zona Oeste,
em que o controle territorial da milícia vai do bairro de Campo Grande a
Sepetiba, sem dividir fronteiras com algum território controlado por outro
grupo armado. Contudo, nesta, não há registros de operações de combate ao
“crime organizado” ou à milícia.
Em março de 2021 a polícia realizou uma robusta operação no bairro de Quintino, bairro estratégico para controle territorial de grupos armados, pois possui territórios que fazem fronteiras entre as Regiões Zona Norte e Zona Oeste, ou seja, dominados por diferentes grupos armados [3]. Na operação a polícia utilizou trezentos homens do Batalhão de Operações Especiais (Bope) e do Batalhão de Choque, no morro da Caixa D’Água, Dezoito e Saçu, para evitar a expansão territorial do CV; onze pessoas foram mortas. E não parou por aí. Algumas operações na Cidade Deus também foram realizadas para “combater o tráfico de drogas.” Em fevereiro deste ano a polícia militar fez uma operação da Cidade de Deus [4] para impedir que traficantes se deslocassem até a Praça Seca para ajudar comparsas que estavam em conflito com milicianos.
Os relatos dos moradores eram de que, no meio desta
operação, havia a presença de milicianos que aproveitaram a incursão policial,
pois a Favela da Cidade de Deus é um projeto antigo de tomada pelos milicianos
que atuam pela região. Um estudo publicado pela plataforma Fogo Cruzado apontou
que o bairro da Praça Seca é o bairro com mais registros de tiroteios. Nos
primeiros seis meses deste ano já houve quase o mesmo número de tiroteios de
2019 (153) e três vezes mais do que os registrados em 2020 (41). Isso demonstra
como essa região vem sendo disputada intensamente por grupos armados e com o
envolvimento da ação policial.
Quero de antemão esclarecer algo que pode causar uma interpretação equivocada diante da minha exposição: não estou fazendo defesa alguma do Comando Vermelho, apenas estou analisando os dados oferecidos pelo grupo de estudos, que mostram como operações policiais concentram-se em áreas do Comando Vermelho, sendo que é a milícia quem possui maior número bairros sobre seu domínio. Ora, se a polícia diz que combate o “crime organizado”, faz “guerras às drogas e seus impactos na família carioca”, esses dados no mínimo causam estranheza.
Estou convencido que
cada vez mais a guerra às drogas perde sua sustentação, pois se seu objetivo
era conter a circulação e venda de drogas, não é exatamente bem isso que
ocorre. De acordo com o levantamento da Consultoria Legislativa da Câmara dos
Deputados, realizado em agosto de 2016, o tráfico de drogas movimenta 15,5
bilhões de reais por ano; 6,6 bilhões em maconha, 4,6 bilhões em cocaína, 2,95
bilhões em crack e 1,1 bilhão em ecstasy, portanto, a chamada guerra às drogas
nunca se preocupou em atingir seus “objetivos”. Aliás, será mesmo que a
política de guerra às drogas é contra as drogas? Estou convencido que não! [5].
A situação fica ainda mais insustentável quando se descobre que as armas que circulam nas favelas são de responsabilidade da polícia e das forças armadas [6]. Em uma apreensão de armas e munição feita na favela do Jacarezinho, a identificação mostrava que elas pertenciam ao Estado, às polícias cariocas e às Forças Armadas. O mercado do capitalismo dependente funciona com suas duas mãos ao mesmo tempo: a mão invisível do mercado liberal e a mão de sangue de pobres e favelados, “os ninguéns que valem menos que a bala [ou arma] que os matam”, como escreveu Galeano.
Não é coincidência que em março de 2020 o presidente Jair Bolsonaro
tenha revogado a portaria COLOG nº 46, 60, 61, que tratava exatamente do
rastreamento, identificação e marcação de armas e munições por, segundo ele,
“não estar de acordo com suas diretrizes.” Portanto, a chamada guerra às drogas
não possui lastro quando analisa-se o comércio lucrativo das mesmas, ao mesmo
tempo é catastrófico do ponto de vista da circulação de armas, das mortes
produzidas e do racismo combinando com o higienismo social. Portanto, pode ser
uma guerra, mas longe de ser às drogas.
Em 2017, na Cidade Alta, território que hoje pertence ao Terceiro Comando Puro e que tem como principal liderança o “Peixão”, passou por um período bastante cabuloso. Como se sabe, o objetivo de Peixão é consolidar o já reconhecido Complexo de Israel, envolvendo bairros da Cidade Alta, Cordovil e Parada de Lucas. Neste mesmo ano, o Comando Vermelho organizou uma ofensiva contra o TCP para retomar a Cidade Alta, que havia perdido em 2016.
Na elaboração deste plano militar e
territorial, o CV teria contado com a ajuda policial, segundo relato de
moradores e de um traficante (ou pelo menos era o que acreditava). No dia da
invasão, o Comando Vermelho mobilizou muitos dos seus homens e mais o pagamento
de propina aos policiais que o ajudariam na empreitada. No final, quando os
traficantes do CV acreditaram ter tomado o território do Terceiro Comando Puro
sob a vista grossa policial, veio a surpresa: os policiais ao mesmo tempo em
que fizeram acordo com o Comando Vermelho, fizeram acordo com o Terceiro
Comando Puro, que na ocasião pagou mais.
Quem denunciou esse esquema foi um integrante do Comando Vermelho, ao ser preso. O traficante Carlos Alberto de Assis Farias, conhecido como Cachoeira, declarou que “o combinado com os PMs era que eles apreendessem apenas o blindado para marcar o GPS”, arrecadar um só fuzil e sair do local de imediato, “para apresentar a ocorrência à Polícia Civil”[7]. Neste dia, 45 membros do CV foram presos, e PMs foram denunciados por transportarem integrantes do TCP no Caveirão. Desde então o Complexo de Israel se expandiu territorialmente, estabelecendo tréguas e acordos com milicianos do Quitungo, bairro estratégico para uma possível expansão próximo do Complexo do Alemão.
Após a “denúncia” do traficante, nove
policiais do Grupo de Ações Táticas Especiais (GATE) do 16º BPM (Olaria) foram
presos e transferidos. Em 2020 o Comando da Polícia Militar avaliou que os
policiais envolvidos deveriam ser levados para o Conselho de Disciplina para
serem julgados, enfrentando expulsão. Até hoje nenhum deles foi julgado. Um dos
policiais envolvidos no suposto acordo descumprido possui denúncias de
participação na milícia do Rio de das Pedras.
Em 2019, a disputa
entre o Comando Vermelho e o Terceiro Comando Puro ganharia mais um violento
episódio. Integrantes do Comando Vermelho do Fallet-Fogueteiro orquestraram uma
ofensiva contra o TCP no morro da Coroa, centro do Rio, o que para o CV seria
um passo decisivo. Tudo indicava que o Comando Vermelho conquistaria mais um
território, até que agentes do BOPE e do Batalhão de Choque realizaram uma
operação “para intervir na guerra entre facções, tendo como principal preocupação
preservar vidas”[8]. A operação resultou na morte de 13 pessoas com sinais de
execução sumária dentro de uma casa na favela do Fallet. Parentes das vítimas
informaram que alguns dos mortos foram executados a facadas. Todos pertenciam
ao Comando Vermelho.
Poderia citar outros exemplos de operações policiais sob a justificativa de combater o “crime organizado” que cumpriram a função de quase exclusivamente focar num único grupo armado, enfraquecendo-o de certa maneira no conflito direto com seu inimigo territorial. Este foco pode ser interpretado como “ajuda” a outros grupos armados tanto do varejo, concorrente direto no negócio da venda de drogas, quanto de grupos armados de controle territorial militarizado que exercem extorsão generalizada, como a milícia.
Nesse sentido é que volto na
tese que defendo: se isso de fato ocorre, é possível afirmar que a polícia atua
como um grupo armado? Ou pode se tratar apenas de uma coincidência? A conclusão
deste raciocínio deixarei para o leitor. De toda forma, as operações policiais
e sua funcionalidade não se encerram nesses aspectos que exemplifiquei, mas
conjuntamente aos mandamentos burgueses de extermínio sistemático de uma força
de trabalho supérflua e excluída do processo produtivo direto, isto é, dos
pobres e favelados.
No último semestre,
no Rio de Janeiro e região metropolitana, segundo a plataforma Fogo Cruzado
[9], foi registrado um número total de 37 chacinas com 166 pessoas mortas.
Comparando com 2020, houve um aumento exponencial, de 54% e 78%. Em oito de
cada dez chacinas havia a presença das forças de segurança do Estado burguês!
Pode parecer que sejam apenas números, mas são números que representam vidas
dos que sempre assumem o destaque neste tipo de análise. É desta forma que se
construiu o Estado em uma realidade de capitalismo dependente, é desta maneira
que a formação social brasileira trata uma classe trabalhadora negligenciada e
marginalizada por esta forma social esgarçada. É assim que é, em resumo, a
polícia do Rio de Janeiro em seu estado puro.
Dessas chacinas, a que mais chocou foi a do Jacarezinho, ocorrida em maio deste ano. Numa ação genocida, a polícia, seguindo os preceitos sociais sintetizados no Estado burguês, assassinou 27 pessoas, em um ato de vingança que atropelou qualquer desautorização, fosse via STF ou outro representante da institucionalidade, pois é regra que uma polícia no capitalismo periférico aja como um grupo armado.
A propósito, uma propriedade da norma que se convencionou chamar de segurança pública, a vingança é um ente orgânico presente na atuação policial contra pobres e favelados. Desta vez foram vinte e sete pessoas executadas sumariamente por conta da morte de um policial civil, mas em 2017 ocorreu algo parecido na mesma favela, quando um policial civil foi morto de forma contenciosa. A resposta do Estado burguês foi executar mais um episódio da permanente vingança contra indesejáveis da cidade maravilhosa.
Oficialmente a
operação foi chamada de “operação vingança”, porém, na imprensa burguesa, o
destaque era para “a Síria do Jacarezinho” [10]. Com mandado de busca e
apreensão coletivos emitido pela Justiça, forças de segurança e Forças Armadas
ocuparam por onze dias a favela da zona norte da cidade, garantindo invasões a
quaisquer casas. Seis mil agentes das polícias civil e militar estavam
envolvidos, além de agentes das Forças Armadas, num ensaio para a calamitosa
intervenção militar de 2018. Neste cenário de repressão ordenada, sitiados pelo
Estado, moradores da favela do Jacarezinho tiveram que estocar comida por onze
dias e mais de 6 mil crianças ficaram sem aulas, pela magnitude desta ocupação
motivada por vingança.
Tudo isso prefigura
um retrato habitual da segurança pública na cidade do Rio de Janeiro capaz de
oferecer elementos suficientes para convencer, seja quem for, que é impossível
tratar de segurança pública de forma dissociada da realidade capitalista.
Portanto, é plausível debater, a partir desta temática, a transformação radical
de uma situação dramática na qual, sai ano e entra ano, somos condicionados a
contar corpos de gente pobre e favelada executada pelo Estado burguês através
de suas forças de segurança, que agem como grupo armado para preencher
estatísticas. Já chega!
Thiago Sardinha é
militante do PCB, geógrafo e professor de Geografia, pesquisa a militarização
do espaço urbano desde 2011 e atualmente vem realizando pesquisas sobre a
expansão territorial militarizada das milícias na Zona Oeste do Rio de Janeiro
para a tese de doutoramento do programa de pós graduação em Ciências Sociais da
UFRRJ.
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