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“Ossinhos” da fome: famélicos e insegurança alimentar na pandemia de COVID-19 no Brasil
Atualmente, um dos temas mais comentados é o crescimento avultado de vítimas da fome durante a pandemia de COVID-19 no Brasil. Certamente, uma das mais graves crises de insegurança alimentar das últimas duas décadas. São vinte milhões de pessoas, aproximadamente, sem ter o que comer e mais da metade da população brasileira sofrendo diferentes níveis de insegurança alimentar[2].
Dois dos episódios
mais recentes dessa grave crise vieram à tona na última semana. Imagens de
prateleiras de um supermercado, em Cuiabá/MT, amplamente divulgadas nas redes
sociais, mostravam a venda de fragmentos de arroz e de bandinha de feijão para
consumo humano. São produtos que, anteriormente, eram destinados à ração animal
e/ou descartados. Também provenientes da capital mato-grossense, circularam
vídeos e imagens de pessoas numa enorme fila, à espera da doação de ossos bovinos
por parte de um açougue. A frase do proprietário do estabelecimento, em uma
determinada entrevista[3], é bem ilustrativa do que ora descrevemos:
Até o ano passado,
vinham em busca da doação cerca de 30 a 40 pessoas. Atualmente, às vezes há
mais de 200 pessoas na porta. O fato é que o número aumentou dessa forma devido
à fome. Nós doamos alguns ossinhos, o que não é muita coisa, mas fazem muita
diferença no dia-a-dia deles.
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Não se pode afirmar
que o aumento do número de famélicos no Brasil, durante a pandemia de COVID-19,
é um evento inesperado ou acidental. Vários foram os estudos e as publicações
que advertiram sobre essa possibilidade, a exemplo de artigo escrito por mim,
em meados de abril de 2020, sob o título “Se esperarmos o agronegócio, morreremos
de fome: população em quarentena quer alimentos e não commodities”[4].
Lamentavelmente, o desenrolar dos acontecimentos confirmou o temível
prognóstico.
As determinações
essenciais do fenômeno da fome no Brasil permanecem incólumes. As políticas
públicas de segurança alimentar e a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab)
foram desmontadas ou fragilizadas, especialmente, entre 2019 e 2020, na
primeira metade do mandato presidencial de Bolsonaro. O agronegócio continua
ocupando amplas faixas de terra, dotadas de boa disponibilidade hídrica e
próximas às grandes concentrações populacionais e às principais rodovias. Além
disso, canaliza generosos subsídios estatais para a produção de commodities que
integram as cadeias globais de produção de valor, como a circulação de
alimentos, energia e celulose.
A despeito das
notícias do aumento da fome e do encarecimento de preços dos itens da cesta
básica[5] – que têm escandalizado o país desde o segundo semestre de 2020[6] –
a exportação de commodities pelos operadores do agronegócio não para de bater
recordes na pandemia de COVID-19. De janeiro a abril de 2021 a exportação de
soja alcançou algo próximo de 34 milhões de toneladas, quantidade superior à
recordista marca de 31,9 milhões de toneladas, registradas no mesmo período de
2020. A exportação de milho, acreditem, registrou alta de 1.854% em abril de
2021, estimulada pela especulação do grão na Bolsa de Chicago[7]. O arroz com
casca e o arroz sem casca e parboilizado atingiram a segunda e a terceira maior
marca de exportação, respectivamente, dos últimos onze anos[8] (2010-2020).
Os lucros ostentados
pelos operadores do agronegócio, no âmbito da pandemia de COVID-19, falam por
si só. A JBS, uma das maiores processadoras de proteína animal do mundo e dona
da marca Friboi, encerrou o último trimestre de 2020 com lucro líquido de R$ 4
bilhões, o que representa um crescimento de 65% em relação ao mesmo período de
2019[9]. A BRF, controladora das marcas Sadia e Perdigão, anunciou um lucro
líquido anual de R$ 1,4 bilhão, elevação de 14,6% em relação ao ano de
2019[10]. A norteamericana BUNGE, trading global, com várias operações no
território brasileiro, anunciou um lucro líquido de 551 milhões de dólares, no
quarto trimestre de 2020[11], e já celebra o fato de ter mais que triplicado
seus ganhos no primeiro trimestre de 2021, quando comparados ao mesmo intervalo
de tempo do ano anterior[12].
Em resumo, o
agronegócio não interrompeu sua marcha e nem mesmo o desespero de quem aguarda
numa fila por um “ossinho” mostrou-se capaz de sensibilizar seus operadores.
Por sinal, não nos parece coincidência que os casos de comercialização de
fragmentos de arroz e bandinha de feijão, bem como a doação de ossos bovinos
tenham ocorrido em Cuiabá. A capital mato-grossense está no coração do
agronegócio brasileiro, onde circundam os hectares a perder de vista dos
monocultivos agrícolas, as indústrias processadoras de grãos e proteína animal
e os depósitos das tradings. É, portanto, território da riqueza e da miséria.
Se o agronegócio
prosseguir ditando a dinâmica do uso da terra, o destino da produção agrícola e
se apropriando de parcelas importantes do fundo público, não serão poucos os
episódios de filas por “ossinhos”, venda de ração animal como alimento humano,
etc, etc. E não adianta alavancar o encarceramento de pessoas por furto de
comida[13] – como tem ocorrido durante a pandemia de COVID-19 no Brasil – em
ações que nos fazem recordar a comovente história de Jean Valjean, personagem
do genial Victor Hugo, igualmente condenado por crime famélico na França do
século XVIII[14]. Que possamos, logo, encerrar essa barbárie!
[1] Professor do
Curso de Geografia do Campus do Sertão da UFAL e membro do Comitê Central do
PCB.
[2]
http://olheparaafome.com.br/
[3]
https://www.pnbonline.com.br/geral/dono-de-aa-ougue-em-cuiaba-que-faz-doaa-a-o-de-ossinhos-diz-que-procura-a-assustadora/78523
[4] Disponível em:
http://anpocs.org/index.php/publicacoes-sp-2056165036/boletim-cientistas-sociais/2341-boletim-n-27-cientistas-sociais-e-o-coronavirus.
Também disponível em:
https://pcb.org.br/portal2/25298/se-depender-do-agronegocio-morremos-de-fome/
[5]
https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2021/03/11/brasil-e-o-pais-onde-precos-dos-alimentos-subiram-mais-depressa-na-pandemia-diz-estudo.ghtml
[6] https://www.brasildefato.com.br/2020/10/14/alta-dos-alimentos-atinge-populacao-desempregada-nao-tenho-condicoes-de-comprar
[7]
https://www.canalrural.com.br/projeto-soja-brasil/soja-recorde-exportacao/
[8]
http://comexstat.mdic.gov.br/pt/home
[9]
https://www.poder360.com.br/economia/lucro-da-jbs-atinge-r-4-bilhoes-no-4o-trimestre-de-2020/
[10]
https://www.infomoney.com.br/mercados/lucro-da-brf-sobe-308-e-vai-a-r-902-milhoes-no-4o-trimestre-de-2020/
[11]
https://valor.globo.com/agronegocios/noticia/2021/02/10/bunge-registrou-lucro-liquido-de-us-551-milhoes-no-4o-trimestre-de-2020.ghtml
[12]
https://forbes.com.br/forbes-money/2021/05/bunge-mais-que-triplica-lucro-no-1o-trimetre/
[13]
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-57477601
[14] HUGO, Victor. Os
Miseráveis. São Paulo: Martin Claret, 2007.
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