quarta-feira, 5 de maio de 2021

Carta de Mandetta aponta que atropelo da covid não foi acidente

Yahoo Notícias - Matheus Pichonelli

qua., 5 de maio de 2021

O ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta. Foto: Adriano Machado/Reuters

Com cerca de 20 minutos, a cobertura do primeiro dia de depoimento da CPI da Pandemia tomou quase metade da edição de terça-feira 4 do Jornal Nacional —um dia em que o país superou a marca dos 412 mil mortes pela covid-19. Entre as vítimas do dia estava a do ator e cineasta Paulo Gustavo, um talento e fenômeno de bilheteria de quem uma multidão acompanhava desde o dia 13 de março as notícias sobre sua internação. Ele tinha 42 anos.

Luiz Henrique Mandetta, ex-ministro da Saúde, falou à comissão por cerca de sete horas. No resumo de 20 minutos do principal noticiário brasileiro, ganhou destaque praticamente tudo o que ele já havia dito a respeito de sua passagem pelo governo de Jair Bolsonaro, inclusive em um livro de memórias. Ele guardou para o momento, porém, uma carta endereçada ao presidente que previa em março de 2020 exatamente o que aconteceria ao fim daquele ano. A missiva serve como prova de que o atropelo da pandemia não foi causada por acidente, mas pela irresponsabilidade de quem saiu às ruas ciente da imprudência.

Durante a sessão, passou quase desapercebida a tentativa do líder do governo, Fernando Bezerra Coelho (MDB-PE), de eximir o presidente de dolo ou má fé na condução da pandemia. As falhas, porém, eram admitidas pelo próprio parlamentar. Bezerra Coelho disse a certa altura que o Brasil está perto de testemunhar que as ações do governo eram as corretas. Parecia falar em maio de 2020, quando supor que o coronavírus mataria mais do que 100 mil brasileiros era apontado como catastrofismo e rendia demissão.

Mandetta teve tempo de explicar como chegamos até onde chegamos.

Ele lamentou que um projeto de testagem em massa no país chegou a ser articulado e nunca saiu do papel. E compartilhou a carta enviada ao presidente alertando para o agravamento da situação, com risco de colapso do sistema de atendimento e consequências sérias para a saúde da população, caso algumas recomendações, como o reconhecimento da transmissão comunitária do vírus e a urgência do isolamento social, não fossem adotadas. Não foram.

A previsão era que, se nada fosse feito, o país chegaria ao fim do ano com 180 mil mortos. Projeção equivocada: em 31 de dezembro o número de vítimas chegou a 191 mil. Bolsonaro preferiu apostar na cloroquina, medicamento sem eficácia comprovada e que, segundo o ex-ministro da Saúde, foi tema de um lobby escancarado de fabricantes que chegaram a sugerir mudanças na bula do emplastro para incluir a sua indicação para tratamento da covid-19. A iniciativa foi barrada pela Anvisa.

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Mandetta não cravou que a aposta de Bolsonaro era a imunização de rebanho, o que pode configurar o tal do dolo que a sua tropa de choque hoje quer afastar. Nem precisava. Há inúmeros registros do presidente dizendo que a melhor vacina era se contaminar. Para isso citava o próprio exemplo. O ex-titular da Saúde classificou como constrangedor o fato de ver o presidente tomar um rumo distinto daquele orientado pela pasta e as autoridades sanitárias.  

Segundo ele, Bolsonaro tinha um “conselho paralelo” que não fazia parte da estrutura da Saúde. Das revelações de Mandetta, não é menos grave o relato sobre a participação dos filhos do presidente em momentos chave da crise.

Vereador do Rio, Carlos Bolsonaro era presença constante nas reuniões onde se decidiam os rumos do país na pandemia. (O cidadão carioca paga R$ 10 mil mensais ao 02 para viajar, tomar notas e fazer as vezes de secretário do pai a 1.161,3 quilômetros de seu gabinete no Palácio Pedro Ernesto).

Mandetta relatou também que o deputado Eduardo Bolsonaro (sem partido-SP), juntamente com o então chanceler Ernesto Araújo, o proibiram de conversar com representantes da China, de onde viriam os insumos necessários para o enfrentamento da doença. O mal-estar com Pequim foi um dos muitos problemas enfrentados pelo país no momento em que mais precisou da diplomacia para vacinar a população.

Mandetta disse não ter dúvidas de que, diferentemente da narrativa palaciana, o Brasil poderia ter se saído melhor na crise e que a vacinação poderia ter começado em novembro do ano passado.

A tragédia, segundo ele, é resultado de decisões tóxicas e equivocadas tomadas pelo antigo chefe, que perdeu uma grande oportunidade para promover o que chamou de educação em saúde, convocando para o front ídolos e atletas brasileiros em uma ampla campanha de conscientização e vacinação. Bolsonaro e sua turma preferiram encampar conversas do tipo “O Brasil não pode parar”. Ele até hoje se nega a tomar vacina. E seu ministro da Casa Civil precisa se imunizar escondido para não melindrar o chefe.

Embora agora escancarada pelo depoimento do ex-ministro, a aposta do presidente já estava desenhada desde a reunião de 22 de abril, ocorrida pouco menos de um mês após o alerta do missivista. Que seria demitido em seguida. Naquela reunião falou-se de tudo, menos da pandemia. Deu no que deu.

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