Foto: Antônio Araújo / Câmara dos Deputados |
Gabriel Brito, da Redação - 16/04/2021
Talvez o mais bem sucedido chanceler da história do Brasil, Celso Amorim
ocupou o Ministério das Relações Exteriores por 10 anos (1993-1995 e
2003-2010), além de ter sido ministro da Defesa em outros quatro. Mesmo
assim, passa ao largo da mídia de massa, cujo “compromisso com a pluralidade”
não encontra espaço em sua vasta grade de debates ao vivo para o ex-ministro
de um Brasil visto pelo mundo de forma diametralmente oposta à atualidade.
É nesta longa entrevista ao Correio que o leitor poderá saber o que Celso Amorim
pensa da saída de Araújo e da “lamentável”, em suas palavras, inserção em
massa de militares no governo Bolsonaro.
“Araújo praticou uma política totalmente descolada
da realidade brasileira, descolada dos nossos vizinhos, brigou com
todos os nossos parceiros comerciais, usou linguagem inapropriada para a
diplomacia... Sob qualquer aspecto, um desastre. Os diplomatas brasileiros
se envergonhavam muito de representar isso”, resumiu, incluindo a relação
com os Estados Unidos na lista do prejuízo que considera irreversível.
Sobre a inédita crise com o alto comando das
Forças Armadas, marcada pela demissão de Fernando de Azevedo e Silva da Defesa
e a saída dos chefes de Exército, Marinha e Aeronáutica horas depois,
afirma que representa insucesso de Bolsonaro em usar os militares para
seu projeto político. No entanto, é exatamente este fator que o fez demitir
Azevedo e Silva, a fim de mostrar que ainda detém a iniciativa política
e não se encontra atado pelo Congresso.
“É tudo muito lamentável, inclusive para as
Forças Armadas. A percepção que se forma sobre o governo é negativa e tal
percepção vai se estender, inevitavelmente, às Forças Armadas e aos militares.
Havia um incômodo em relação a Pazuello, e isso deve se estender a outras
áreas menos óbvias das FA. É muito ruim e vai ser muito difícil evitar essa
percepção de que eles também são responsáveis pelo desastre”, afirmou.
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Ainda assim, Amorim compreende os dilemas que se
apresentaram à frente das instituições militares a partir da deposição
de Dilma e dos arranjos que até agora a direita brasileira busca consolidar
em sua governabilidade privatista.
“A iniciativa de entrar no governo não foi
deles, sinceramente. De toda forma, com o golpe contra a Dilma e o debilitamento
de nossa democracia e dos partidos, sem exonerá-los de responsabilidade,
os generais foram praticamente convidados pelo novo ‘sistema’ – moldado
por Globo, Lava Jato... – a fazer parte da nova governabilidade”.
Na conversa, Amorim também comenta os 30 anos do
Mercosul e lamenta o enfraquecimento do bloco. Apesar de classificar
tudo como absolutamente desastroso no atual governo, considera “até indecente”
falar em eleições agora e pontua as principais necessidades do país, a
despeito de quem capitalize politicamente.
“Pode acontecer o impeachment. Mas devemos defender
bandeiras concretas, não podemos ficar fixados numa possibilidade e nos
reduzir a torcer pra dar tudo errado e ele cair. Se houver um auxílio, ele
ganha fôlego, mas não podemos ser contra. Pelo contrário, devemos pressionar.
Se o país vacinar a população, diminui a pressão sobre ele. Mas precisamos
lutar pela vacina”.
A entrevista completa com Celso Amorim pode ser
lida a seguir.
Correio da Cidadania: Como você recebeu
a saída do ministro Ernesto Araújo do Ministério das Relações Exteriores,
imediatamente seguida pela demissão do ministro da Defesa, por sua vez
acompanhado em sua saída pelos três comandantes das Forças Armadas (FA)?
Celso
Amorim: A saída de Araújo era anunciada. A oposição
a ele vinha crescendo muito, não só na esquerda, a exemplo da carta dos embaixadores
e personalidades ligadas ao Itamaraty. Era um desgaste de mais de seis
meses, pra não entrar no mérito dos absurdos anteriores que conhecemos
na política externa.
Mas com a condução desastrada da pandemia, na
qual a diplomacia externa atrapalhou em vez de ajudar, criou um clima ruim
até entre os conservadores e setores ligados ao governo, o que levou a
uma consciência geral de que ele era parte do problema, não a solução.
Isso culminou com o cenário inédito de praticamente
ter sido demitido pelo Senado, quando foi convocado a se pronunciar
nesta casa legislativa, ocasião em que quase todos os senadores se posicionaram
contra ele.
Assim, embora Bolsonaro goste dele e acreditasse
que ele tinha uma função ideológica, o demitiu.
Correio
da Cidadania: Você enxerga uma mudança de perfil com a entrada de Carlos
Alberto França no Ministério das Relações Exteriores?
Celso Amorim: Mudança
de perfil, certamente. Mas mudança política é mais complicada. Nesse sentido,
não considero a saída do Araújo relacionada a sua pessoa. Claro que seu estilo era um
agravante, mas também é óbvio que suas posições eram sustentadas pelo presidente
da República.
Também penso que houve uma mudança na correlação
de forças, mesmo entre as forças que apoiam e aceitam o presidente, no sentido
de colocar um pouco mais de pragmatismo na política, a fim de conseguir
vacinas e medicamentos. Um pragmatismo que também se estende a outras
questões, como o comércio com a China, investimentos estrangeiros,
Amazônia... Ele se tornou símbolo de todas essas questões.
Embora representasse as posições presidenciais,
não era um fator de atenuação, mas de agravamento. Evidentemente, o Senado
não seria contra o presidente, por motivos vários, e acabou se colocando
contra ele. Assim, Bolsonaro se viu obrigado a retirá-lo.
O novo ministro parece bem diferente, e a situação
também é bem diferente. Pelo visto, só falou com os chineses entre os interlocutores
mais importantes, o que já mostra alguma coisa. Parece ter se denotado um
sentido mais pragmático, mas veremos o desenvolvimento das coisas, pois
aparentemente ministros mais pragmáticos se deram mal antes, a exemplo
de Santos Cruz, que se indispôs com as redes do presidente.
A dependência de Bolsonaro frente ao Congresso
aumentou, o centrão tem instintos mais pragmáticos, de modo que a situação
mudou. Não haverá mudanças de conteúdo profundo, mas a situação é um
pouco diferente. Talvez o ministro França possa conduzir a política de
forma mais pragmática e menos ideológica.
Correio
da Cidadania: Você mencionou as prejudicadas relações comerciais com
a China, a condução desastrada na obtenção das vacinas, entre outras atitudes
que marcaram a trajetória de Ernesto Araujo – sob bênção presidencial.
Será que a essa altura, quando já superamos 50% do período de mandato presidencial
e a pandemia atingiu o patamar que temos visto, não se chegou a um ponto de
não retorno, isto é, uma impossibilidade de se reverter o legado de Ernesto
Araújo e os prejuízos acumulados?
Celso
Amorim: As pessoas que morreram na pandemia são um
prejuízo irrecuperável. Talvez seja possível minimizar mortes daqui pra
frente. Tivemos a crise dos insumos farmacêuticos e da quebra de patentes
dos princípios ativos das vacinas, questões de mercado global. Tais coisas
podem ser amenizadas. Isso se o ministro não for violentamente atacado
pelas redes bolsonaristas, como vimos acontecer com outras figuras, que
assim acabaram tendo seu trabalho inviabilizado.
Correio
da Cidadania: Saindo das relações exteriores para as interiores, como
você percebeu a passagem de Araújo pelo Itamaraty, em relação aos sentimentos
despertados naqueles que fazem parte da instituição, do pessoal de carreira?
Celso
Amorim: Não sei de tudo, é claro, mas tanto entre jovens
como aposentados a percepção é de desastre absoluto, sem paralelo na
história do Itamaraty. Não é só que ele reverteu políticas da era Lula, o
que pra mim é uma pena. Mas não se trata disso, até porque já vinha mudando no
período Temer. Araújo praticou uma política
totalmente descolada da realidade brasileira, descolada dos nossos
vizinhos, brigou com todos os nossos parceiros comerciais, usou linguagem
inapropriada para a diplomacia... Sob
qualquer aspecto, um desastre. Os diplomatas brasileiros se envergonhavam
muito de representar isso.
Correio da Cidadania: Portanto,
até com os Estados Unidos, país ao qual mostramos completa submissão, a relação
foi prejudicial?
Celso Amorim: Não preciso
nem falar nada. O Ernesto Araújo, se não elogiou abertamente a invasão do
Capitólio, afirmou que as pessoas que invadiram o local eram “pessoas de
bem”, bem intencionadas. Externou a posição, compartilhada pelo presidente,
de que era possível ter havido fraude nas eleições dos EUA...
Vai ser muito difícil recompor uma relação com o
país agora presidido por Joe Biden. É possível que tentem, em especial em
relação ao meio ambiente, um tema sensível fora do Brasil. Há negociações
entre o Ministério do Meio Ambiente, sem o Itamaraty, e o escritório do
John Kerry, responsável pelas questões climáticas dos EUA (1)... É muito
preocupante que isso corra em segredo, pois pode sair algo muito prejudicial
ao Brasil, uma visão descolada do desenvolvimento sustentável, sem clareza
sobre as questões dos povos indígenas, dos pagamentos em forma de incentivo...
Pode até ter uma aparência de melhora nas relações.
Se ocorrer, pode ser usada por Kerry pra dizer que houve avanços em relação ao
Brasil e sua floresta, mas dificilmente teremos algo voltado ao desenvolvimento
sadio para a Amazônia.
Não vejo nenhuma possibilidade de uma relação
intensa e amistosa com os EUA. Vai ser muito difícil pra eles esquecerem
que a presidência brasileira endossou os discursos de Trump sobre fraude
eleitoral nos EUA. Não quer dizer que não vão mais querer saber de Brasil.
Nosso país é muito grande e importante, não dá pra ignorar.
De todo modo, não basta reverter a relação, mas
reverter sabendo com qual tipo de projeto contaremos. Nos governos em que
estive, especialmente de Lula quando fui chanceler, os projetos precisavam
ser aprovados, e uma vez aprovados aqui eram submetidos a países que se dispunham
a financiar, a exemplo de Alemanha e Noruega. Agora não há nada disso, o
que é preocupante. Não vejo possibilidade de qualquer parceria
interessante com o governo Biden.
Correio
da Cidadania: O senhor também foi ministro da Defesa durante quatro anos.
Que considerações faz sobre a saída do chefe da pasta, Fernando de Azevedo
e Silva, seguida da surpreendente saída dos três chefes das Forças Armadas,
no que se configurou uma crise inédita?
Celso
Amorim: Havia um desconforto de Bolsonaro com o
ministro da Defesa e os comandantes, sobretudo o do Exército. Por dois
motivos: a própria pandemia, sobre a qual desde o início o presidente diminuiu
a importância, enquanto o comandante do exército afirmou que se tratava
do maior desafio da geração deles. E as questões de politização, golpe militar,
AI-5... O alto comando buscou se distanciar do governo. Não saíram do governo,
mas se posicionaram de forma a evitar uma manipulação ostensiva das
Forças Armadas, a partir de ideias como Estado de Sítio, intervenção nos estados
contra governadores...
Não tenho informações de cocheira, mas aparentemente
Bolsonaro também queria manifestações de endosso por parte desses comandantes.
Isso acumulou uma irritação entre os lados. O general Fernando estava no
meio e acabou dando apoio aos três comandantes.
O momento em que isso ocorreu tem a ver com a demissão
de Araújo. Uma demissão praticamente exigida pelo Senado, ou seja, uma
derrota para o governo em qualquer observação possível, uma perda de
poder frente ao legislativo. Bolsonaro quis mostrar capacidade de iniciativa,
força política, e aproveitou para tirar pessoas das quais não gostava numa
área sensível, pessoas que não rezaram a mesma cartilha.
Não posso prever os desdobramentos, mas houve
certo estremecimento entre o presidente e o alto comando. Pode não ser
tão evidente como foi em relação ao general Pujol, mas acho que vai ser
muito difícil manipular as Forças Armadas para quaisquer outros propósitos.
Não sei, de repente aparecem situações que permitam isso, mas não dá pra
saber.
Correio
da Cidadania: Para além deste contexto imediato, como você observa a entrada
massiva dos militares no governo, algo sem paralelo nos governos anteriores
da chamada Nova República, e tendo em conta o perfil de Bolsonaro e seu governo?
Celso
Amorim: É lamentável, inclusive para o país, pois
as pessoas entram em funções a respeito das quais não entendem. Até vejo
que o novo ministro da Saúde tem retirado militares dos cargos... Claro,
eles não têm nenhuma competência. E nem era obrigação deles, mas acontece
que não deveriam ter aceitado os cargos. Tudo isso foi feito para se ter uma
possibilidade de envolvimento das FA com o governo, obviamente. É um
número tão grande de militares que fica difícil separar os envolvimentos
pessoais do envolvimento de conjunto.
É tudo muito lamentável, inclusive para as
Forças Armadas. A percepção que se forma sobre o governo é negativa e tal
percepção vai se estender, inevitavelmente, às Forças Armadas e aos militares.
Havia um incômodo em relação a Pazuello, e isso deve se estender a outras
áreas menos óbvias das FA.
Não é bom para elas uma inserção tão grande no governo.
Um ou outro militar poderia ser usado, no governo Dilma tivemos alguns generais
nos cargos de governo; tivemos um general na Defesa Civil, o próprio general
Fernando foi Autoridade Olímpica... Mas são casos pontuais, não milhares
de militares em cargos comissionados, dez ministérios etc.
É muito ruim e vai ser muito difícil evitar essa
percepção de que eles também são responsáveis pelo desastre.
Correio
da Cidadania: É muito difícil não perceber as Forças Armadas como instituições
marcadas pela ideologia antiesquerda, anticomunista. E o senhor é
uma pessoa identificada à esquerda que foi ministro da Defesa de um governo
de esquerda. Como era sua relação com as instituições militares, você
sentia tensões que iam além da rotina de governo?
Celso
Amorim: Minha relação era boa. O que não era tarefa
simples na época foi a Comissão Nacional da Verdade (CNV). Mas tivemos alguma
condução da questão, diálogos, almoços, reuniões entre os pesquisadores
e o alto comandante. Este assunto era sensível, incomodava mesmo. Minha
impressão, não posso falar por eles, é que os comandantes até entendiam a
CNV como uma evolução da nossa democracia. O incômodo, me parece, era
maior na reserva e algumas camadas mais baixas.
Se olharmos o relatório final da CNV, a apresentação
feita pelo coordenador Pedro Dallari é muito positiva sobre a cooperação
que teve dos comandantes das Forças Armadas. Essa foi a questão mais difícil.
Em outros temas, como investimentos e equipamentos,
deu sequência no investimento do submarino de propulsão nuclear, decidiu
pela questão dos caças, finalizou uma etapa importante do avião CASSEN-390
(de transporte de tropas), teve o projeto do blindado Guarani... Tudo isso
foi nos nossos governos, de modo que a relação era boa.
Posso estar sendo ingênuo, mas depois de mim
ainda tivemos Jacques Wagner (ex-governador da Bahia pelo PT) e Aldo Rebelo,
então do PC do B. Progressivamente, se não tivesse acontecido o que aconteceu...
A iniciativa de entrar no governo não foi deles, sinceramente. Podem
ter achado bom, mas os comandantes da época eram legalistas, que cumpriam
a lei. Podia haver certo “esforço” em temas como a CNV. De toda forma, com o
golpe contra a Dilma e o debilitamento de nossa democracia e dos partidos,
sem exonerá-los de responsabilidade, os generais foram praticamente
convidados pelo novo “sistema” – moldado por Globo, Lava Jato... – a fazer
parte da nova governabilidade.
Podemos destacar a importante matéria do Le
Monde sobre a Operação Lava Jato, que é a alma do golpe contra o Brasil. Ela
não fala em momento algum das Forças Armadas. Fala de juízes e promotores
armados com o FBI, com amplo apoio midiático e político. Os militares entraram
nessa. Está errado? Sim, está errado. Mas também está errado associá-los a
este processo e ao bolsonarismo. O bolsonarismo não é ideologia dos militares.
Nem há uma ideologia única, conheci vários militares e não há uniformidade
total. Há uma tendência conservadora, como em quase todo o mundo, e um passado
de longo período de ditadura militar, o que confere certos significados.
Mas, por exemplo, falando de política externa,
o governo Geisel foi bem avançado. Mesmo em relação a Cuba, com o qual o
país tinha cortado relações, seu governo passou a uma posição de abstenção.
Reconheceu o governo de Angola, proclamadamente marxista-leninista,
restabeleceu relações com a China, permitiu a instalação do Comitê
pela Libertação da Palestina no país... E rompeu o Acordo Militar com os
Estados Unidos! Difícil elencar quatro atitudes tão fortes como essas, em
qualquer governo, mesmo civil.
É difícil dizer que há uma ideologia. Na política
interna, sim, eu mesmo fui vítima disso, demitido da presidência da Embrafilme
por causa do filme Pra frente, Brasil, obra que tratava da tortura... Mas não
dá pra generalizar.
Obviamente, eles têm um papel no atual governo,
de certa maneira isso pode dificultar certas ações no plano civil e legal
contra o governo, o que pode inspirar temor – e Bolsonaro joga com isso.
Mas não diria que eles, sobretudo o alto comando, são responsáveis pelos
grandes desatinos da nossa política, em especial da política externa.
Correio
da Cidadania: Dessa maneira, é de se concluir que uma eventual aventura
golpista de Bolsonaro ele haveria de contar mais com as camadas subalternas
das FA e policiais.
Celso
Amorim: Acho muito difícil que as camadas subalternas
se rebelem frente ao comando. Não quero ficar especulando, mas imagino
que ele contaria com outras forças. Enfim, espero que nada disso ocorra.
Penso que Bolsonaro faz muito jogo com certo
nível de ameaças, e não fatos. As ameaças ele pode retirar, os fatos são difíceis
de reverter se consumados e têm consequências muito graves. Até agora, no
plano institucional, são mais ameaças do que iniciativas reais.
Correio
da Cidadania: Mudando de tema, neste ano completamos 30 anos de história
do Mercosul, em contexto de profunda crise econômica, já afirmada na conjuntura
geral do continente anos antes da pandemia. Que apreciação você faz das
três décadas de história do bloco sul-americano?
Celso
Amorim: O Mercosul foi responsável por um crescimento
extraordinário. Em primeiro lugar, não se trata só de comércio. Contribuiu
muito para o crescimento da região, através de relações e convergência
estrutural, com investimentos diversos.
Se pegarmos o comércio em si, num período de 20
anos, em especial num espaço de cerca de 20 anos que vai até 2015, o comércio
entre os países do bloco cresceu 14 vezes, enquanto o do resto do mundo aumentou
4 vezes. Caiu muito nos últimos anos, em parte pela competição da China, em
parte porque não soubemos tomar as medidas adequadas, como estabelecer
uma tarifa comum pra valer, definir compensações em eventuais problemas
nas relações entre países...
A integração é uma coisa complicada, precisa
ser sempre levada a sério, é preciso resolver cada problema, ter muita dedicação.
Lembro do tempo que eu e o presidente Lula levamos pra resolver um problema
sobre a importação de agua mineral do Uruguai. Tinha uma portaria que tornava
praticamente impossível. O Uruguai exportava água pra Europa, mas não
para o Brasil. São questões assim do dia a dia que criam a integração. Sem
falar das macroquestões, desequilíbrios comerciais, como lidar com
tais coisas etc. Isso requer atenção permanente e já há algum tempo deixou
de existir.
De Temer pra cá, abandonou-se tal concepção, prevalecendo
a visão de certa parte do empresariado, que considera o Mercosul pouco
útil, acha melhor ter acordos separados com outros países. É um erro, que
abalou muito o Mercosul. O bloco não acabou, pelo menos até agora, e haverá
muito trabalho pra recompô-lo.
No momento eu diria ser preciso preservar a tarifa
externa comum, mas para manter o bloco vivo precisaremos de uma verdadeira
união. Área de livre comércio é importante, mas não cria uma união entre os
países. Facilita, mas não é tudo. Pode-se ter área de livre comércio com
qualquer país do outro lado do mundo, mas isso não quer dizer integração. O
Mercosul é uma ideia de integração, projetada para integrar todos os
países da América do Sul.
É uma pena o que acontece, e se estende a toda a
América do Sul. Para dar um exemplo, anos atrás 80, 90% das exportações do
Brasil aos países do bloco eram manufatura. A Argentina chegou a ser o terceiro
parceiro comercial do Brasil, abaixo apenas de China e EUA. O Mercosul no
conjunto chegou a ser mais importante que os EUA nas nossas exportações.
Depois caiu, porque não houve cuidado. Não é um processo fácil, olhe para a
Europa e como está seu bloco interno. É preciso envolvimento permanente,
mas infelizmente deixou de ser prioridade.
Integração é ação afirmativa. Quando não se prioriza,
cada um procura seu interesse em algum lado, cada um arruma seus parceiros,
na China, na União Europeia. Busca-se um ganho imediato e deixa-se a integração
de lado.
Correio
da Cidadania: De volta ao plano interno, como você enxerga o Brasil em seu
segundo ano pandêmico, marcado por crises social, política e econômica
ainda mais profundas do que em 2020, com grande sofrimento da população e,
provavelmente, muitas mortes pela frente. Como começar a sair disso, por
onde o país poderia começar a se reencontrar?
Celso
Amorim: Precisamos pressionar pelas necessidades
do momento. No cenário político, a presença de Lula já mudou muita coisa.
Não havia pressão suficientemente grande, agora há preocupação nos parlamentares,
no grande capital. As mudanças ministeriais não foram por acaso.
No momento o importante é salvar vidas e dar condições
adequadas para as pessoas que não podem trabalhar, através de um auxilio
emergencial real, porque o auxílio deste ano não dá. Além disso, precisa
parar com as privatizações, um crime. Falar em privatizar para garantir
o auxilio é uma loucura, é vender um apartamento pra comprar um saco de
feijão e um de arroz.
Essa é a preocupação imediata. Olhem o exemplo
dos EUA. Podemos, dentro da nossa proporção, seguir neste caminho: políticas
de distribuição de renda, investimento em saúde... Aqui é o contrário: diminuem
a verba para saúde, para ciência e tecnologia... Um desastre permanente.
Todas as forças políticas que quiserem contribuir pra isso precisam atuar
junto. Talvez algumas até apoiassem por oportunismo, como no caso da saída
do Ernesto Araújo e no Ministério da Saúde, mas é necessário.
Também devemos nos preparar para o horizonte.
Falar de eleições hoje é até indecente. Mas devemos pensar em programas comuns,
visões de médio e longo prazo, devemos falar disso. É muito difícil reverter
as privatizações feitas no governo FHC. Assim como as privatizações em
massa que fazem a preço de banana. Podem vender estatais até pra China, não
sei.
Devemos, sim, pressionar o atual governo. Seria
possível uma frente ampla em alguns temas como soberania e democracia. Na
economia já acho que não daria, pois estamos falando de setores privatizantes.
Aí cabe aos partidos progressistas fazerem seu trabalho, o que pode atrair
até apoio de partidos sem tanta firmeza ideológica. Espero que a partir
daí se abra caminho para uma frente progressista disputar a eleição.
Correio
da Cidadania: Mas é possível salvar vidas sem a remoção de Bolsonaro?
Você é a favor do impeachment do presidente?
Celso
Amorim: Não adianta eu dizer se sou a favor ou
contra. Pode acontecer o impeachment. Mas devemos defender bandeiras
concretas, não podemos ficar fixados numa possibilidade e nos reduzir a
torcer pra dar tudo errado e ele cair. Se houver um auxílio, ele ganha fôlego,
mas não podemos ser contra. Pelo contrário, devemos pressionar. Se o país
vacinar a população, diminui a pressão sobre ele. Mas precisamos lutar
pela vacina.
A prioridade é sobre esses assuntos. As coisas
tendem a ocorrer naturalmente, como com Ernesto Araújo. Claro que a presidência
é diferente. Voltando ao ponto inicial, ele quis mostrar nessas demissões
recentes que tem o controle e a iniciativa, uma vez que se criou a impressão
de estarmos caminhando para um parlamentarismo informal, com as decisões
de peso sendo tomadas pelo Congresso.
Mas Bolsonaro vem sendo derrotado em questões
como a das armas, às vezes na Câmara, às vezes no Supremo. Claro, algum mal é
feito, só a incerteza que ele joga na população sobre a pandemia faz um
mal enorme. Mesmo com o esforço de isolamento dos governadores, o instinto
natural das pessoas é sair, trabalhar, cuidar da vida. O que já é difícil
fica mais complicado ainda quando o presidente dá sinais contrários às
recomendações sanitárias.
Se eu pudesse votar, provavelmente seria a
favor do impeachment. Mas não sou congressista e isso não está em votação.
Devemos nos concentrar na defesa da vida, do emprego, de uma renda básica
que permita a sobrevivência das pessoas.
Nota
1) Na quinta, 15 de abril, o Ministério Público
Federal pediu afastamento de Ricardo Salles do Ministério do Meio Ambiente
por improbidade administrativa, sob acusação de desmantelar a política
de proteção ambiental. - Gabriel
Brito é jornalista e editor do Correio da Cidadania.
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