sexta-feira, 16 de abril de 2021

Celso Amorim: “A percepção que se forma sobre o governo é negativa e, inevitavelmente, vai se estender aos militares”

Foto: Antônio Araújo / Câ­mara dos De­pu­tados

Gabriel Brito, da Redação - 16/04/2021


Talvez o mais bem su­ce­dido chan­celer da his­tória do Brasil, Celso Amorim ocupou o Mi­nis­tério das Re­la­ções Ex­te­ri­ores por 10 anos (1993-1995 e 2003-2010), além de ter sido mi­nistro da De­fesa em ou­tros quatro. Mesmo assim, passa ao largo da mídia de massa, cujo “com­pro­misso com a plu­ra­li­dade” não en­contra es­paço em sua vasta grade de de­bates ao vivo para o ex-mi­nistro de um Brasil visto pelo mundo de forma di­a­me­tral­mente oposta à atu­a­li­dade. É nesta longa en­tre­vista ao Cor­reio que o leitor po­derá saber o que Celso Amorim pensa da saída de Araújo e da “la­men­tável”, em suas pa­la­vras, in­serção em massa de mi­li­tares no go­verno Bol­so­naro.

“Araújo pra­ticou uma po­lí­tica to­tal­mente des­co­lada da re­a­li­dade bra­si­leira, des­co­lada dos nossos vi­zi­nhos, brigou com todos os nossos par­ceiros co­mer­ciais, usou lin­guagem ina­pro­priada para a di­plo­macia... Sob qual­quer as­pecto, um de­sastre. Os di­plo­matas bra­si­leiros se en­ver­go­nhavam muito de re­pre­sentar isso”, re­sumiu, in­cluindo a re­lação com os Es­tados Unidos na lista do pre­juízo que con­si­dera ir­re­ver­sível.

Sobre a iné­dita crise com o alto co­mando das Forças Ar­madas, mar­cada pela de­missão de Fer­nando de Aze­vedo e Silva da De­fesa e a saída dos chefes de Exér­cito, Ma­rinha e Ae­ro­náu­tica horas de­pois, afirma que re­pre­senta in­su­cesso de Bol­so­naro em usar os mi­li­tares para seu pro­jeto po­lí­tico. No en­tanto, é exa­ta­mente este fator que o fez de­mitir Aze­vedo e Silva, a fim de mos­trar que ainda detém a ini­ci­a­tiva po­lí­tica e não se en­contra atado pelo Con­gresso.

“É tudo muito la­men­tável, in­clu­sive para as Forças Ar­madas. A per­cepção que se forma sobre o go­verno é ne­ga­tiva e tal per­cepção vai se es­tender, ine­vi­ta­vel­mente, às Forças Ar­madas e aos mi­li­tares. Havia um incô­modo em re­lação a Pa­zu­ello, e isso deve se es­tender a ou­tras áreas menos ób­vias das FA. É muito ruim e vai ser muito di­fícil evitar essa per­cepção de que eles também são res­pon­sá­veis pelo de­sastre”, afirmou.

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Ainda assim, Amorim com­pre­ende os di­lemas que se apre­sen­taram à frente das ins­ti­tui­ções mi­li­tares a partir da de­po­sição de Dilma e dos ar­ranjos que até agora a di­reita bra­si­leira busca con­so­lidar em sua go­ver­na­bi­li­dade pri­va­tista. 

“A ini­ci­a­tiva de en­trar no go­verno não foi deles, sin­ce­ra­mente. De toda forma, com o golpe contra a Dilma e o de­bi­li­ta­mento de nossa de­mo­cracia e dos par­tidos, sem exo­nerá-los de res­pon­sa­bi­li­dade, os ge­ne­rais foram pra­ti­ca­mente con­vi­dados pelo novo ‘sis­tema’ – mol­dado por Globo, Lava Jato... – a fazer parte da nova go­ver­na­bi­li­dade”.

Na con­versa, Amorim também co­menta os 30 anos do Mer­cosul e la­menta o en­fra­que­ci­mento do bloco. Apesar de clas­si­ficar tudo como ab­so­lu­ta­mente de­sas­troso no atual go­verno, con­si­dera “até in­de­cente” falar em elei­ções agora e pontua as prin­ci­pais ne­ces­si­dades do país, a des­peito de quem ca­pi­ta­lize po­li­ti­ca­mente.

“Pode acon­tecer o im­pe­a­ch­ment. Mas de­vemos de­fender ban­deiras con­cretas, não po­demos ficar fi­xados numa pos­si­bi­li­dade e nos re­duzir a torcer pra dar tudo er­rado e ele cair. Se houver um au­xílio, ele ganha fô­lego, mas não po­demos ser contra. Pelo con­trário, de­vemos pres­si­onar. Se o país va­cinar a po­pu­lação, di­minui a pressão sobre ele. Mas pre­ci­samos lutar pela va­cina”.

A en­tre­vista com­pleta com Celso Amorim pode ser lida a se­guir.

Cor­reio da Ci­da­dania: Como você re­cebeu a saída do mi­nistro Er­nesto Araújo do Mi­nis­tério das Re­la­ções Ex­te­ri­ores, ime­di­a­ta­mente se­guida pela de­missão do mi­nistro da De­fesa, por sua vez acom­pa­nhado em sua saída pelos três co­man­dantes das Forças Ar­madas (FA)?

Celso Amorim: A saída de Araújo era anun­ciada. A opo­sição a ele vinha cres­cendo muito, não só na es­querda, a exemplo da carta dos em­bai­xa­dores e per­so­na­li­dades li­gadas ao Ita­ma­raty. Era um des­gaste de mais de seis meses, pra não en­trar no mé­rito dos ab­surdos an­te­ri­ores que co­nhe­cemos na po­lí­tica ex­terna.

Mas com a con­dução de­sas­trada da pan­demia, na qual a di­plo­macia ex­terna atra­pa­lhou em vez de ajudar, criou um clima ruim até entre os con­ser­va­dores e se­tores li­gados ao go­verno, o que levou a uma cons­ci­ência geral de que ele era parte do pro­blema, não a so­lução.

Isso cul­minou com o ce­nário iné­dito de pra­ti­ca­mente ter sido de­mi­tido pelo Se­nado, quando foi con­vo­cado a se pro­nun­ciar nesta casa le­gis­la­tiva, oca­sião em que quase todos os se­na­dores se po­si­ci­o­naram contra ele.

Assim, em­bora Bol­so­naro goste dele e acre­di­tasse que ele tinha uma função ide­o­ló­gica, o de­mitiu.

Cor­reio da Ci­da­dania: Você en­xerga uma mu­dança de perfil com a en­trada de Carlos Al­berto França no Mi­nis­tério das Re­la­ções Ex­te­ri­ores?

Celso Amorim: Mu­dança de perfil, cer­ta­mente. Mas mu­dança po­lí­tica é mais com­pli­cada. Nesse sen­tido, não con­si­dero a saída do Araújo re­la­ci­o­nada  a sua pessoa. Claro que seu es­tilo era um agra­vante, mas também é óbvio que suas po­si­ções eram sus­ten­tadas pelo pre­si­dente da Re­pú­blica.

Também penso que houve uma mu­dança na cor­re­lação de forças, mesmo entre as forças que apoiam e aceitam o pre­si­dente, no sen­tido de co­locar um pouco mais de prag­ma­tismo na po­lí­tica, a fim de con­se­guir va­cinas e me­di­ca­mentos. Um prag­ma­tismo que também se es­tende a ou­tras ques­tões, como o co­mércio com a China, in­ves­ti­mentos es­tran­geiros, Amazônia... Ele se tornou sím­bolo de todas essas ques­tões.

Em­bora re­pre­sen­tasse as po­si­ções pre­si­den­ciais, não era um fator de ate­nu­ação, mas de agra­va­mento. Evi­den­te­mente, o Se­nado não seria contra o pre­si­dente, por mo­tivos vá­rios, e acabou se co­lo­cando contra ele. Assim, Bol­so­naro se viu obri­gado a re­tirá-lo.

O novo mi­nistro pa­rece bem di­fe­rente, e a si­tu­ação também é bem di­fe­rente. Pelo visto, só falou com os chi­neses entre os in­ter­lo­cu­tores mais im­por­tantes, o que já mostra al­guma coisa. Pa­rece ter se de­no­tado um sen­tido mais prag­má­tico, mas ve­remos o de­sen­vol­vi­mento das coisas, pois apa­ren­te­mente mi­nis­tros mais prag­má­ticos se deram mal antes, a exemplo de Santos Cruz, que se in­dispôs com as redes do pre­si­dente.

A de­pen­dência de Bol­so­naro frente ao Con­gresso au­mentou, o cen­trão tem ins­tintos mais prag­má­ticos, de modo que a si­tu­ação mudou. Não ha­verá mu­danças de con­teúdo pro­fundo, mas a si­tu­ação é um pouco di­fe­rente. Talvez o mi­nistro França possa con­duzir a po­lí­tica de forma mais prag­má­tica e menos ide­o­ló­gica.

Cor­reio da Ci­da­dania: Você men­ci­onou as pre­ju­di­cadas re­la­ções co­mer­ciais com a China, a con­dução de­sas­trada na ob­tenção das va­cinas, entre ou­tras ati­tudes que mar­caram a tra­je­tória de Er­nesto Araujo – sob bênção pre­si­den­cial. Será que a essa al­tura, quando já su­pe­ramos 50% do pe­ríodo de man­dato pre­si­den­cial e a pan­demia atingiu o pa­tamar que temos visto, não se chegou a um ponto de não re­torno, isto é, uma im­pos­si­bi­li­dade de se re­verter o le­gado de Er­nesto Araújo e os pre­juízos acu­mu­lados?

Celso Amorim: As pes­soas que mor­reram na pan­demia são um pre­juízo ir­re­cu­pe­rável. Talvez seja pos­sível mi­ni­mizar mortes daqui pra frente. Ti­vemos a crise dos in­sumos far­ma­cêu­ticos e da quebra de pa­tentes dos prin­cí­pios ativos das va­cinas, ques­tões de mer­cado global. Tais coisas podem ser ame­ni­zadas. Isso se o mi­nistro não for vi­o­len­ta­mente ata­cado pelas redes bol­so­na­ristas, como vimos acon­tecer com ou­tras fi­guras, que assim aca­baram tendo seu tra­balho in­vi­a­bi­li­zado.

Cor­reio da Ci­da­dania: Saindo das re­la­ções ex­te­ri­ores para as in­te­ri­ores, como você per­cebeu a pas­sagem de Araújo pelo Ita­ma­raty, em re­lação aos sen­ti­mentos des­per­tados na­queles que fazem parte da ins­ti­tuição, do pes­soal de car­reira?

Celso Amorim: Não sei de tudo, é claro, mas tanto entre jo­vens como apo­sen­tados a per­cepção é de de­sastre ab­so­luto, sem pa­ra­lelo na his­tória do Ita­ma­raty. Não é só que ele re­verteu po­lí­ticas da era Lula, o que pra mim é uma pena. Mas não se trata disso, até porque já vinha mu­dando no pe­ríodo Temer.   Araújo pra­ticou uma po­lí­tica to­tal­mente des­co­lada da re­a­li­dade bra­si­leira, des­co­lada dos nossos vi­zi­nhos, brigou com todos os nossos par­ceiros co­mer­ciais, usou lin­guagem ina­pro­priada para a di­plo­macia...  Sob qual­quer as­pecto, um de­sastre. Os di­plo­matas bra­si­leiros se en­ver­go­nhavam muito de re­pre­sentar isso.

Cor­reio da Ci­da­dania: Por­tanto, até com os Es­tados Unidos, país ao qual mos­tramos com­pleta sub­missão, a re­lação foi pre­ju­di­cial?

Celso Amorim: Não pre­ciso nem falar nada. O Er­nesto Araújo, se não elo­giou aber­ta­mente a in­vasão do Ca­pi­tólio, afirmou que as pes­soas que in­va­diram o local eram “pes­soas de bem”, bem in­ten­ci­o­nadas. Ex­ternou a po­sição, com­par­ti­lhada pelo pre­si­dente, de que era pos­sível ter ha­vido fraude nas elei­ções dos EUA...

Vai ser muito di­fícil re­compor uma re­lação com o país agora pre­si­dido por Joe Biden. É pos­sível que tentem, em es­pe­cial em re­lação ao meio am­bi­ente, um tema sen­sível fora do Brasil. Há ne­go­ci­a­ções entre o Mi­nis­tério do Meio Am­bi­ente, sem o Ita­ma­raty, e o es­cri­tório do John Kerry, res­pon­sável pelas ques­tões cli­má­ticas dos EUA (1)... É muito pre­o­cu­pante que isso corra em se­gredo, pois pode sair algo muito pre­ju­di­cial ao Brasil, uma visão des­co­lada do de­sen­vol­vi­mento sus­ten­tável, sem cla­reza sobre as ques­tões dos povos in­dí­genas, dos pa­ga­mentos em forma de in­cen­tivo...

Pode até ter uma apa­rência de me­lhora nas re­la­ções. Se ocorrer, pode ser usada por Kerry pra dizer que houve avanços em re­lação ao Brasil e sua flo­resta, mas di­fi­cil­mente te­remos algo vol­tado ao de­sen­vol­vi­mento sadio para a Amazônia.

Não vejo ne­nhuma pos­si­bi­li­dade de uma re­lação in­tensa e amis­tosa com os EUA. Vai ser muito di­fícil pra eles es­que­cerem que a pre­si­dência bra­si­leira en­dossou os dis­cursos de Trump sobre fraude elei­toral nos EUA. Não quer dizer que não vão mais querer saber de Brasil. Nosso país é muito grande e im­por­tante, não dá pra ig­norar.

De todo modo, não basta re­verter a re­lação, mas re­verter sa­bendo com qual tipo de pro­jeto con­ta­remos. Nos go­vernos em que es­tive, es­pe­ci­al­mente de Lula quando fui chan­celer, os pro­jetos pre­ci­savam ser apro­vados, e uma vez apro­vados aqui eram sub­me­tidos a países que se dis­pu­nham a fi­nan­ciar, a exemplo de Ale­manha e No­ruega. Agora não há nada disso, o que é pre­o­cu­pante.    Não vejo pos­si­bi­li­dade de qual­quer par­ceria in­te­res­sante com o go­verno Biden.

Cor­reio da Ci­da­dania: O se­nhor também foi mi­nistro da De­fesa du­rante quatro anos. Que con­si­de­ra­ções faz sobre a saída do chefe da pasta, Fer­nando de Aze­vedo e Silva, se­guida da sur­pre­en­dente saída dos três chefes das Forças Ar­madas, no que se con­fi­gurou uma crise iné­dita?

Celso Amorim: Havia um des­con­forto de Bol­so­naro com o mi­nistro da De­fesa e os co­man­dantes, so­bre­tudo o do Exér­cito. Por dois mo­tivos: a pró­pria pan­demia, sobre a qual desde o início o pre­si­dente di­mi­nuiu a im­por­tância, en­quanto o co­man­dante do exér­cito afirmou que se tra­tava do maior de­safio da ge­ração deles. E as ques­tões de po­li­ti­zação, golpe mi­litar, AI-5... O alto co­mando buscou se dis­tan­ciar do go­verno. Não saíram do go­verno, mas se po­si­ci­o­naram de forma a evitar uma ma­ni­pu­lação os­ten­siva das Forças Ar­madas, a partir de ideias como Es­tado de Sítio, in­ter­venção nos es­tados contra go­ver­na­dores...

Não tenho in­for­ma­ções de co­cheira, mas apa­ren­te­mente Bol­so­naro também queria ma­ni­fes­ta­ções de en­dosso por parte desses co­man­dantes. Isso acu­mulou uma ir­ri­tação entre os lados. O ge­neral Fer­nando es­tava no meio e acabou dando apoio aos três co­man­dantes.

O mo­mento em que isso ocorreu tem a ver com a de­missão de Araújo. Uma de­missão pra­ti­ca­mente exi­gida pelo Se­nado, ou seja, uma der­rota para o go­verno em qual­quer ob­ser­vação pos­sível, uma perda de poder frente ao le­gis­la­tivo. Bol­so­naro quis mos­trar ca­pa­ci­dade de ini­ci­a­tiva, força po­lí­tica, e apro­veitou para tirar pes­soas das quais não gos­tava numa área sen­sível, pes­soas que não re­zaram a mesma car­tilha.

Não posso prever os des­do­bra­mentos, mas houve certo es­tre­me­ci­mento entre o pre­si­dente e o alto co­mando. Pode não ser tão evi­dente como foi em re­lação ao ge­neral Pujol, mas acho que vai ser muito di­fícil ma­ni­pular as Forças Ar­madas para quais­quer ou­tros pro­pó­sitos. Não sei, de re­pente apa­recem si­tu­a­ções que per­mitam isso, mas não dá pra saber.

Cor­reio da Ci­da­dania: Para além deste con­texto ime­diato, como você ob­serva a en­trada mas­siva dos mi­li­tares no go­verno, algo sem pa­ra­lelo nos go­vernos an­te­ri­ores da cha­mada Nova Re­pú­blica, e tendo em conta o perfil de Bol­so­naro e seu go­verno?

Celso Amorim: É la­men­tável, in­clu­sive para o país, pois as pes­soas en­tram em fun­ções a res­peito das quais não en­tendem. Até vejo que o novo mi­nistro da Saúde tem re­ti­rado mi­li­tares dos cargos... Claro, eles não têm ne­nhuma com­pe­tência. E nem era obri­gação deles, mas acon­tece que não de­ve­riam ter acei­tado os cargos. Tudo isso foi feito para se ter uma pos­si­bi­li­dade de en­vol­vi­mento das FA com o go­verno, ob­vi­a­mente. É um nú­mero tão grande de mi­li­tares que fica di­fícil se­parar os en­vol­vi­mentos pes­soais do en­vol­vi­mento de con­junto.

É tudo muito la­men­tável, in­clu­sive para as Forças Ar­madas. A per­cepção que se forma sobre o go­verno é ne­ga­tiva e tal per­cepção vai se es­tender, ine­vi­ta­vel­mente, às Forças Ar­madas e aos mi­li­tares. Havia um incô­modo em re­lação a Pa­zu­ello, e isso deve se es­tender a ou­tras áreas menos ób­vias das FA.

Não é bom para elas uma in­serção tão grande no go­verno. Um ou outro mi­litar po­deria ser usado, no go­verno Dilma ti­vemos al­guns ge­ne­rais nos cargos de go­verno; ti­vemos um ge­neral na De­fesa Civil, o pró­prio ge­neral Fer­nando foi Au­to­ri­dade Olím­pica... Mas são casos pon­tuais, não mi­lhares de mi­li­tares em cargos co­mis­si­o­nados, dez mi­nis­té­rios etc.

É muito ruim e vai ser muito di­fícil evitar essa per­cepção de que eles também são res­pon­sá­veis pelo de­sastre.

Cor­reio da Ci­da­dania: É muito di­fícil não per­ceber as Forças Ar­madas como ins­ti­tui­ções mar­cadas pela ide­o­logia an­ti­es­querda, an­ti­co­mu­nista. E o se­nhor é uma pessoa iden­ti­fi­cada à es­querda que foi mi­nistro da De­fesa de um go­verno de es­querda. Como era sua re­lação com as ins­ti­tui­ções mi­li­tares, você sentia ten­sões que iam além da ro­tina de go­verno?

Celso Amorim: Minha re­lação era boa. O que não era ta­refa sim­ples na época foi a Co­missão Na­ci­onal da Ver­dade (CNV). Mas ti­vemos al­guma con­dução da questão, diá­logos, al­moços, reu­niões entre os pes­qui­sa­dores e o alto co­man­dante. Este as­sunto era sen­sível, in­co­mo­dava mesmo. Minha im­pressão, não posso falar por eles, é que os co­man­dantes até en­ten­diam a CNV como uma evo­lução da nossa de­mo­cracia. O incô­modo, me pa­rece, era maior na re­serva e al­gumas ca­madas mais baixas.

Se olharmos o re­la­tório final da CNV, a apre­sen­tação feita pelo co­or­de­nador Pedro Dal­lari é muito po­si­tiva sobre a co­o­pe­ração que teve dos co­man­dantes das Forças Ar­madas. Essa foi a questão mais di­fícil.

Em ou­tros temas, como in­ves­ti­mentos e equi­pa­mentos, deu sequência no in­ves­ti­mento do sub­ma­rino de pro­pulsão nu­clear, de­cidiu pela questão dos caças, fi­na­lizou uma etapa im­por­tante do avião CASSEN-390 (de trans­porte de tropas), teve o pro­jeto do blin­dado Gua­rani... Tudo isso foi nos nossos go­vernos, de modo que a re­lação era boa.

Posso estar sendo in­gênuo, mas de­pois de mim ainda ti­vemos Jac­ques Wagner (ex-go­ver­nador da Bahia pelo PT) e Aldo Re­belo, então do PC do B. Pro­gres­si­va­mente, se não ti­vesse acon­te­cido o que acon­teceu... A ini­ci­a­tiva de en­trar no go­verno não foi deles, sin­ce­ra­mente. Podem ter achado bom, mas os co­man­dantes da época eram le­ga­listas, que cum­priam a lei. Podia haver certo “es­forço” em temas como a CNV. De toda forma, com o golpe contra a Dilma e o de­bi­li­ta­mento de nossa de­mo­cracia e dos par­tidos, sem exo­nerá-los de res­pon­sa­bi­li­dade, os ge­ne­rais foram pra­ti­ca­mente con­vi­dados pelo novo “sis­tema” – mol­dado por Globo, Lava Jato... – a fazer parte da nova go­ver­na­bi­li­dade.

Po­demos des­tacar a im­por­tante ma­téria do Le Monde sobre a Ope­ração Lava Jato, que é a alma do golpe contra o Brasil. Ela não fala em mo­mento algum das Forças Ar­madas. Fala de juízes e pro­mo­tores ar­mados com o FBI, com amplo apoio mi­diá­tico e po­lí­tico. Os mi­li­tares en­traram nessa. Está er­rado? Sim, está er­rado. Mas também está er­rado as­sociá-los a este pro­cesso e ao bol­so­na­rismo. O bol­so­na­rismo não é ide­o­logia dos mi­li­tares. Nem há uma ide­o­logia única, co­nheci vá­rios mi­li­tares e não há uni­for­mi­dade total. Há uma ten­dência con­ser­va­dora, como em quase todo o mundo, e um pas­sado de longo pe­ríodo de di­ta­dura mi­litar, o que con­fere certos sig­ni­fi­cados.

Mas, por exemplo, fa­lando de po­lí­tica ex­terna, o go­verno Geisel foi bem avan­çado. Mesmo em re­lação a Cuba, com o qual o país tinha cor­tado re­la­ções, seu go­verno passou a uma po­sição de abs­tenção. Re­co­nheceu o go­verno de An­gola, pro­cla­ma­da­mente mar­xista-le­ni­nista, res­ta­be­leceu re­la­ções com a China, per­mitiu a ins­ta­lação do Co­mitê pela Li­ber­tação da Pa­les­tina no país... E rompeu o Acordo Mi­litar com os Es­tados Unidos! Di­fícil elencar quatro ati­tudes tão fortes como essas, em qual­quer go­verno, mesmo civil.

É di­fícil dizer que há uma ide­o­logia. Na po­lí­tica in­terna, sim, eu mesmo fui ví­tima disso, de­mi­tido da pre­si­dência da Em­bra­filme por causa do filme Pra frente, Brasil, obra que tra­tava da tor­tura... Mas não dá pra ge­ne­ra­lizar.

Ob­vi­a­mente, eles têm um papel no atual go­verno, de certa ma­neira isso pode di­fi­cultar certas ações no plano civil e legal contra o go­verno, o que pode ins­pirar temor – e Bol­so­naro joga com isso. Mas não diria que eles, so­bre­tudo o alto co­mando, são res­pon­sá­veis pelos grandes de­sa­tinos da nossa po­lí­tica, em es­pe­cial da po­lí­tica ex­terna.

Cor­reio da Ci­da­dania: Dessa ma­neira, é de se con­cluir que uma even­tual aven­tura gol­pista de Bol­so­naro ele ha­veria de contar mais com as ca­madas su­bal­ternas das FA e po­li­ciais.

Celso Amorim: Acho muito di­fícil que as ca­madas su­bal­ternas se re­belem frente ao co­mando. Não quero ficar es­pe­cu­lando, mas ima­gino que ele con­taria com ou­tras forças. Enfim, es­pero que nada disso ocorra.

Penso que Bol­so­naro faz muito jogo com certo nível de ame­aças, e não fatos. As ame­aças ele pode re­tirar, os fatos são di­fí­ceis de re­verter se con­su­mados e têm con­sequên­cias muito graves. Até agora, no plano ins­ti­tu­ci­onal, são mais ame­aças do que ini­ci­a­tivas reais.

Cor­reio da Ci­da­dania: Mu­dando de tema, neste ano com­ple­tamos 30 anos de his­tória do Mer­cosul, em con­texto de pro­funda crise econô­mica, já afir­mada na con­jun­tura geral do con­ti­nente anos antes da pan­demia. Que apre­ci­ação você faz das três dé­cadas de his­tória do bloco sul-ame­ri­cano?

Celso Amorim: O Mer­cosul foi res­pon­sável por um cres­ci­mento ex­tra­or­di­nário. Em pri­meiro lugar, não se trata só de co­mércio. Con­tri­buiu muito para o cres­ci­mento da re­gião, através de re­la­ções e con­ver­gência es­tru­tural, com in­ves­ti­mentos di­versos.

Se pe­garmos o co­mércio em si, num pe­ríodo de 20 anos, em es­pe­cial num es­paço de cerca de 20 anos que vai até 2015, o co­mércio entre os países do bloco cresceu 14 vezes, en­quanto o do resto do mundo au­mentou 4 vezes. Caiu muito nos úl­timos anos, em parte pela com­pe­tição da China, em parte porque não sou­bemos tomar as me­didas ade­quadas, como es­ta­be­lecer uma ta­rifa comum pra valer, de­finir com­pen­sa­ções em even­tuais pro­blemas nas re­la­ções entre países...

A in­te­gração é uma coisa com­pli­cada, pre­cisa ser sempre le­vada a sério, é pre­ciso re­solver cada pro­blema, ter muita de­di­cação. Lembro do tempo que eu e o pre­si­dente Lula le­vamos pra re­solver um pro­blema sobre a im­por­tação de agua mi­neral do Uru­guai. Tinha uma por­taria que tor­nava pra­ti­ca­mente im­pos­sível. O Uru­guai ex­por­tava água pra Eu­ropa, mas não para o Brasil. São ques­tões assim do dia a dia que criam a in­te­gração. Sem falar das ma­cro­ques­tões, de­se­qui­lí­brios co­mer­ciais, como lidar com tais coisas etc. Isso re­quer atenção per­ma­nente e já há algum tempo deixou de existir.

De Temer pra cá, aban­donou-se tal con­cepção, pre­va­le­cendo a visão de certa parte do em­pre­sa­riado, que con­si­dera o Mer­cosul pouco útil, acha me­lhor ter acordos se­pa­rados com ou­tros países. É um erro, que abalou muito o Mer­cosul. O bloco não acabou, pelo menos até agora, e ha­verá muito tra­balho pra re­compô-lo.

No mo­mento eu diria ser pre­ciso pre­servar a ta­rifa ex­terna comum, mas para manter o bloco vivo pre­ci­sa­remos de uma ver­da­deira união. Área de livre co­mércio é im­por­tante, mas não cria uma união entre os países. Fa­ci­lita, mas não é tudo. Pode-se ter área de livre co­mércio com qual­quer país do outro lado do mundo, mas isso não quer dizer in­te­gração. O Mer­cosul é uma ideia de in­te­gração, pro­je­tada para in­te­grar todos os países da Amé­rica do Sul.

É uma pena o que acon­tece, e se es­tende a toda a Amé­rica do Sul. Para dar um exemplo, anos atrás 80, 90% das ex­por­ta­ções do Brasil aos países do bloco eram ma­nu­fa­tura. A Ar­gen­tina chegou a ser o ter­ceiro par­ceiro co­mer­cial do Brasil, abaixo apenas de China e EUA. O Mer­cosul no con­junto chegou a ser mais im­por­tante que os EUA nas nossas ex­por­ta­ções. De­pois caiu, porque não houve cui­dado. Não é um pro­cesso fácil, olhe para a Eu­ropa e como está seu bloco in­terno. É pre­ciso en­vol­vi­mento per­ma­nente, mas in­fe­liz­mente deixou de ser pri­o­ri­dade.

In­te­gração é ação afir­ma­tiva. Quando não se pri­o­riza, cada um pro­cura seu in­te­resse em algum lado, cada um ar­ruma seus par­ceiros, na China, na União Eu­ro­peia. Busca-se um ganho ime­diato e deixa-se a in­te­gração de lado.

Cor­reio da Ci­da­dania: De volta ao plano in­terno, como você en­xerga o Brasil em seu se­gundo ano pan­dê­mico, mar­cado por crises so­cial, po­lí­tica e econô­mica ainda mais pro­fundas do que em 2020, com grande so­fri­mento da po­pu­lação e, pro­va­vel­mente, muitas mortes pela frente. Como co­meçar a sair disso, por onde o país po­deria co­meçar a se re­en­con­trar?

Celso Amorim: Pre­ci­samos pres­si­onar pelas ne­ces­si­dades do mo­mento. No ce­nário po­lí­tico, a pre­sença de Lula já mudou muita coisa. Não havia pressão su­fi­ci­en­te­mente grande, agora há pre­o­cu­pação nos par­la­men­tares, no grande ca­pital. As mu­danças mi­nis­te­riais não foram por acaso.

No mo­mento o im­por­tante é salvar vidas e dar con­di­ções ade­quadas para as pes­soas que não podem tra­ba­lhar, através de um au­xilio emer­gen­cial real, porque o au­xílio deste ano não dá. Além disso, pre­cisa parar com as pri­va­ti­za­ções, um crime. Falar em pri­va­tizar para ga­rantir o au­xilio é uma lou­cura, é vender um apar­ta­mento pra com­prar um saco de feijão e um de arroz.

Essa é a pre­o­cu­pação ime­diata. Olhem o exemplo dos EUA. Po­demos, dentro da nossa pro­porção, se­guir neste ca­minho: po­lí­ticas de dis­tri­buição de renda, in­ves­ti­mento em saúde... Aqui é o con­trário: di­mi­nuem a verba para saúde, para ci­ência e tec­no­logia... Um de­sastre per­ma­nente. Todas as forças po­lí­ticas que qui­serem con­tri­buir pra isso pre­cisam atuar junto. Talvez al­gumas até apoi­assem por opor­tu­nismo, como no caso da saída do Er­nesto Araújo e no Mi­nis­tério da Saúde, mas é ne­ces­sário.

Também de­vemos nos pre­parar para o ho­ri­zonte. Falar de elei­ções hoje é até in­de­cente. Mas de­vemos pensar em pro­gramas co­muns, vi­sões de médio e longo prazo, de­vemos falar disso. É muito di­fícil re­verter as pri­va­ti­za­ções feitas no go­verno FHC. Assim como as pri­va­ti­za­ções em massa que fazem a preço de ba­nana. Podem vender es­ta­tais até pra China, não sei.

De­vemos, sim, pres­si­onar o atual go­verno. Seria pos­sível uma frente ampla em al­guns temas como so­be­rania e de­mo­cracia. Na eco­nomia já acho que não daria, pois es­tamos fa­lando de se­tores pri­va­ti­zantes. Aí cabe aos par­tidos pro­gres­sistas fa­zerem seu tra­balho, o que pode atrair até apoio de par­tidos sem tanta fir­meza ide­o­ló­gica. Es­pero que a partir daí se abra ca­minho para uma frente pro­gres­sista dis­putar a eleição.

Cor­reio da Ci­da­dania: Mas é pos­sível salvar vidas sem a re­moção de Bol­so­naro? Você é a favor do im­pe­a­ch­ment do pre­si­dente?

Celso Amorim: Não adi­anta eu dizer se sou a favor ou contra. Pode acon­tecer o im­pe­a­ch­ment. Mas de­vemos de­fender ban­deiras con­cretas, não po­demos ficar fi­xados numa pos­si­bi­li­dade e nos re­duzir a torcer pra dar tudo er­rado e ele cair. Se houver um au­xílio, ele ganha fô­lego, mas não po­demos ser contra. Pelo con­trário, de­vemos pres­si­onar. Se o país va­cinar a po­pu­lação, di­minui a pressão sobre ele. Mas pre­ci­samos lutar pela va­cina.

A pri­o­ri­dade é sobre esses as­suntos. As coisas tendem a ocorrer na­tu­ral­mente, como com Er­nesto Araújo. Claro que a pre­si­dência é di­fe­rente. Vol­tando ao ponto ini­cial, ele quis mos­trar nessas de­mis­sões re­centes que tem o con­trole e a ini­ci­a­tiva, uma vez que se criou a im­pressão de es­tarmos ca­mi­nhando para um par­la­men­ta­rismo in­formal, com as de­ci­sões de peso sendo to­madas pelo Con­gresso.

Mas Bol­so­naro vem sendo der­ro­tado em ques­tões como a das armas, às vezes na Câ­mara, às vezes no Su­premo. Claro, algum mal é feito, só a in­cer­teza que ele joga na po­pu­lação sobre a pan­demia faz um mal enorme. Mesmo com o es­forço de iso­la­mento dos go­ver­na­dores, o ins­tinto na­tural das pes­soas é sair, tra­ba­lhar, cuidar da vida. O que já é di­fícil fica mais com­pli­cado ainda quando o pre­si­dente dá si­nais con­trá­rios às re­co­men­da­ções sa­ni­tá­rias.

Se eu pu­desse votar, pro­va­vel­mente seria a favor do im­pe­a­ch­ment. Mas não sou con­gres­sista e isso não está em vo­tação. De­vemos nos con­cen­trar na de­fesa da vida, do em­prego, de uma renda bá­sica que per­mita a so­bre­vi­vência das pes­soas.

Nota

1) Na quinta, 15 de abril, o Mi­nis­tério Pú­blico Fe­deral pediu afas­ta­mento de Ri­cardo Salles do Mi­nis­tério do Meio Am­bi­ente por im­pro­bi­dade ad­mi­nis­tra­tiva, sob acu­sação de des­man­telar a po­lí­tica de pro­teção am­bi­ental.   -   Ga­briel Brito é jor­na­lista e editor do Cor­reio da Ci­da­dania.

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