UTI lotada no Hospital Gilberto Novaes, em Manaus |
Em.com.br - Guilherme Peixoto
© MICHAEL DANTAS/AFP
Para enfrentar um inimigo invisível e de passos imprevisíveis como o novo coronavírus, se antecipar às jogadas do rival é de suma importância. Na visão de ex-integrantes do Ministério da Saúde ouvidos pelo Estado de Minas, como o antigo chefe da pasta, Luiz Henrique Mandetta, fortalecer o sistema de vigilância epidemiológica e sanitária é a maneira mais eficaz de antever os “caminhos” seguidos por surtos de doenças e enfrentá-los mais adequadamente.
Descoordenado, o
Brasil enfrenta a pandemia — responsável pela morte de mais de 100 mil pessoas
— sem uma diretriz nacional, que diga claramente à população as medidas
necessárias para barrar o vírus. Buscar a unificação é uma missão que se
avizinha. Sem um “norte” definido, dizem especialistas, o “daqui para frente”
reprisará a série de contradições e desmentidos que marcam a atuação do governo
federal e de incontáveis gestões locais na luta contra a COVID-19.
Mandetta, que deixou o governo federal em abril
deste ano, defende reforçar o monitoramento dos acessos ao país.
“Aeroportos e fronteiras do Brasil são extremamente permeáveis, abertos. Há uma
carência de técnicos, pois há muitos anos não são feitos concursos públicos para
melhorar o controle”, sustenta.
A produção agropecuária também deve ser vistoriada. “(É preciso) aumentar muito a vigilância nos estados produtores de carne, aves e ovos. Normalmente, é da proximidade entre homem, granja e animal que surgem as trocas de vírus. Nada impede que, dentro do Brasil, haja uma mutação de vírus. O que aconteceu na China pode, em algum momento, acontecer aqui”, completa, em alusão ao país de “nascimento” da infecção.
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O
infectologista Júlio Croda,
também ex-integrante do Ministério da Saúde, pesquisador da Fundação Oswaldo
Cruz (Fiocruz) e professor da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul
(UFMS), pede a inversão da lógica do monitoramento. No lugar da soma, a
subtração: em vez de contar números, os técnicos devem agir para barrar a
subida das estatísticas.
“Na resposta à
pandemia, é necessário um serviço de vigilância epidemiológica forte, com
capacidade técnica de analisar diferentes cenários, propor e executar
intervenções. Nosso serviço de vigilância, na maioria dos municípios e estados,
é muito passivo, de contar casos e mostrar gráficos, óbitos e internações”,
explica o antigo diretor do Departamento de Imunizações e Doenças
Transmissíveis da pasta.
Croda saiu do Planalto no fim de
março, poucas semanas após a Organização Mundial da Saúde (OMS)
declarar pandemia em virtude do coronavírus. A decisão foi tomada ainda em
2019, mas ele queria permanecer até o fim da crise. A resistência do presidente
Jair Bolsonaro (sem partido) às medidas de distanciamento, contudo, mudou os
planos.
“Precisamos passar
por uma modernização que envolve, também, investimento. A ideia de que a gente
pode ter um estado mínimo no controle de uma pandemia se foi. Precisamos de um
estado forte para uma resposta coordenada”.
Encorpar a
vigilância passa pelo fortalecimento dos laboratórios estaduais. O ex-ministro
Mandetta pontua a importância de fornecer novos equipamentos e cursos aos
funcionários desses espaços. O subsídio é essencial para formatar uma rede
nacional capaz de compor, até mesmo, redes de cooperação internacional. Ele
cita a necessidade de instalação de laboratórios com Nível 4 de Biossegurança
(NB-4).
“Somente um
laboratório de Nível 4 de Biossegurança permite que possamos manipular novos
vírus e bactérias que cheguem ao nosso país ou que, eventualmente, sejam
originados aqui”, salienta. Em Pedro Leopoldo, na Região Metropolitana de Belo
Horizonte, há segurança máxima no Laboratório Nacional Agropecuário de Minas
Gerais (Lanagro/MG).
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Diego Xavier, epidemiologista e pesquisador do Instituto de
Comunicação e Informação em Saúde (Icict), ligado à Fiocruz, lembra que o país
tem sofrido por causa da demora na oficialização de estatísticas de casos e
mortes.
“A gente precisa de
sistemas que possibilitem o acompanhamento dos dados de saúde de maneira
dinâmica, mais acelerada. Os sistemas de informação de saúde, no Brasil,
geralmente funcionam com defasagem. Estamos sempre olhando para trás e, no caso
da COVID-19, ficou bem evidente que precisamos olhar, pelo menos, ‘ao lado’ do
problema. Não dá para ficar olhando dois ou três dias para trás para tentar
analisar e corrigir”, ressalta.
Saúde pública ampliada
O antigo chefe da
saúde federal reivindica mudanças na estrutura do Sistema Único de Saúde (SUS).
“Temos uma rede muito voltada aos acidentes de carros e traumas. Precisamos de
mais unidades para as doenças infecciosas e isolamento de pacientes”, observa,
citando o Hospital Eduardo de Menezes, localizado em BH e ligado à Fundação
Hospitalar do Estado de Minas Gerais (Fhemig). Para lá foram mandados os
primeiros casos graves no estado.
Croda, por seu
turno, nutre esperança nas unidades sentinela, abertas em virtude do avanço da
COVID-19. “Dobramos o número de locais que fazem vigilância sentinela de
síndrome gripal. Se, no futuro, um novo vírus respiratório circular, vamos
conseguir monitorar melhor. Houve uma importante abertura de leitos de UTI e,
muitos deles, principalmente onde não existiam (vagas), ficarão para atender à
população. Será muito difícil retirá-los quando acabar a pandemia”, projeta.
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“A reforma
tributária que vem pela frente seria uma grande oportunidade para a sociedade
cobrar, do Congresso, uma regra definitiva de financiamento para o nosso
sistema de saúde. Nesta epidemia, não fosse o SUS, teríamos uma mega tragédia
no Brasil”, sentencia Mandetta, em menção à forma como são repassados recursos
às entidades que compõem a rede pública.
“É preciso ampliar
a cobertura de imunização. A tarefa deve ser cumprida, inclusive, com vistas a
uma eventual vacina contra o coronavírus. Não adianta a gente ter vacina se ela
não chega à população. É preciso entender porque não chega. Não podemos ter uma
vigilância epidemiológica passiva, mas sim ativa”, diz Croda.
Defensor das
medidas restritivas, Mandetta enfrentou oposição dentro do próprio governo —
Bolsonaro é claramente favorável à retomada econômica. A indefinição fez com
que o Supremo Tribunal Federal (STF) decidisse, em abril, que estados e
municípios têm autonomia para ações de combate à doença. Para Diego Xavier,
futuras epidemias precisam ser pautadas por uma diretriz única. Sem isso, são
altas as chances de fracasso.
“Faltou o
Ministério fazer o seu dever, que é passar as diretrizes, protocolos e
centralizar a compra de materiais e recursos. Vivemos uma disputa entre estados
para comprar medicamentos e testes, mas o governo central poderia ter feito
isso, comprando mais barato e gerenciando os recursos”.
“Temos que investir
em saúde e em educação. Temos que ter governantes capazes de enfrentar uma
pandemia, o que não é o caso. Se isso se perpetuar, outras (pandemias) virão e
terão o mesmo impacto, serão a mesma tragédia. Mas o governante que está lá não
chegou lá sozinho. Nós, a população brasileira, temos que pensar, refletir
sobre o que fizemos, sobre nossas falhas”, opina o infectologista Unaí
Tupinambás, integrante do grupo que aconselha o prefeito de Belo Horizonte,
Alexandre Kalil (PSD).
Hábitos de prevenção
Por causa do
coronavírus, máscaras passaram a fazer parte do vestuário, o álcool gel virou
item obrigatório nas bolsas e a higienização das mãos ganhou mais frequência.
Luiz Henrique Mandetta acredita que os hábitos de prevenção precisam continuar
na agenda cotidiana.
“O brasileiro teve
que aprender a lavar as mãos, que é um hábito que praticamente não exercitava.
Tivemos que aprender o distanciamento entre as pessoas, sendo que temos hábitos
de proximidade e aglomerações absolutas. Precisamos entender que esse tipo de comportamento
social vai ser impactado pela geração do coronavírus, que está aprendendo sobre
o distanciamento e o uso de máscaras”, assegura.
Quem também
ressalta a importância da educação no processo de conscientização é Wanderson
de Oliveira, secretário de Vigilância em Saúde durante a passagem de Mandetta
pelo ministério. “A preparação sobre futuras pandemias requer a inclusão do
tema no currículo das escolas em todos os níveis. (É preciso) retornar a
disciplina de vigilância em saúde como parte do currículo, como era no passado,
e a elaboração de planos de emergência e contingência em todos os municípios”,
reforça o enfermeiro epidemiologista.
A pandemia pode
diminuir a onda negacionista e de rejeição à ciência que se abateu sobre o
Brasil, crê Júlio Croda. “Isso pode se refletir na melhora da percepção dos
brasileiros em relação à ciência. Quando impacta diretamente na vida do
cidadão, há luz sobre a importância da ciência em nossa sociedade. O cidadão
vai perceber que a ciência pode auxiliar no desenvolvimento nacional”.
O Brasil também
deve tirar lições da pandemia no que tange à indústria. Mandetta pensa que o
país pode recuperar o protagonismo na produção de insumos necessários aos
hospitais nacionais. “Quando a China teve um problema e fechou, o mundo inteiro
ficou sem máscaras. Há uma decisão, do planeta Terra, de diversificar
produtores. O Brasil tem tudo para, analisando o quadro, retomar o parque
industrial de remédios, soros, vacinas, seringas e agulhas, já que estamos
comprando da China por conta dos preços mais baixos, achando que isso é um bom
negócio, mas perdendo a soberania”, afirma. (Colaborou Gustavo Werneck)
EM TEMPO: Convém lembrar essa lição: que o Mandetta não era simpático ao SUS. Agora, mudou de idéia. Ainda bem.
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