sábado, 8 de agosto de 2020

Ex-integrantes do Ministério da Saúde citam lições contra novas crises

 

UTI lotada no Hospital Gilberto Novaes, em Manaus


Em.com.br - Guilherme Peixoto 

 

© MICHAEL DANTAS/AFP 

Para enfrentar um inimigo invisível e de passos imprevisíveis como o novo coronavírus, se antecipar às jogadas do rival é de suma importância. Na visão de ex-integrantes do Ministério da Saúde ouvidos pelo Estado de Minas, como o antigo chefe da pasta, Luiz Henrique Mandetta, fortalecer o sistema de vigilância epidemiológica e sanitária é a maneira mais eficaz de antever os “caminhos” seguidos por surtos de doenças e enfrentá-los mais adequadamente.

Descoordenado, o Brasil enfrenta a pandemia — responsável pela morte de mais de 100 mil pessoas — sem uma diretriz nacional, que diga claramente à população as medidas necessárias para barrar o vírus. Buscar a unificação é uma missão que se avizinha. Sem um “norte” definido, dizem especialistas, o “daqui para frente” reprisará a série de contradições e desmentidos que marcam a atuação do governo federal e de incontáveis gestões locais na luta contra a COVID-19.

Mandetta, que deixou o governo federal em abril deste ano, defende reforçar o monitoramento dos acessos ao país. “Aeroportos e fronteiras do Brasil são extremamente permeáveis, abertos. Há uma carência de técnicos, pois há muitos anos não são feitos concursos públicos para melhorar o controle”, sustenta.

A produção agropecuária também deve ser vistoriada. “(É preciso) aumentar muito a vigilância nos estados produtores de carne, aves e ovos. Normalmente, é da proximidade entre homem, granja e animal que surgem as trocas de vírus. Nada impede que, dentro do Brasil, haja uma mutação de vírus. O que aconteceu na China pode, em algum momento, acontecer aqui”, completa, em alusão ao país de “nascimento” da infecção.

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O infectologista Júlio Croda, também ex-integrante do Ministério da Saúde, pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e professor da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS), pede a inversão da lógica do monitoramento. No lugar da soma, a subtração: em vez de contar números, os técnicos devem agir para barrar a subida das estatísticas.

“Na resposta à pandemia, é necessário um serviço de vigilância epidemiológica forte, com capacidade técnica de analisar diferentes cenários, propor e executar intervenções. Nosso serviço de vigilância, na maioria dos municípios e estados, é muito passivo, de contar casos e mostrar gráficos, óbitos e internações”, explica o antigo diretor do Departamento de Imunizações e Doenças Transmissíveis da pasta.

Croda saiu do Planalto no fim de março, poucas semanas após a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarar pandemia em virtude do coronavírus. A decisão foi tomada ainda em 2019, mas ele queria permanecer até o fim da crise. A resistência do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) às medidas de distanciamento, contudo, mudou os planos.

“Precisamos passar por uma modernização que envolve, também, investimento. A ideia de que a gente pode ter um estado mínimo no controle de uma pandemia se foi. Precisamos de um estado forte para uma resposta coordenada”.

Encorpar a vigilância passa pelo fortalecimento dos laboratórios estaduais. O ex-ministro Mandetta pontua a importância de fornecer novos equipamentos e cursos aos funcionários desses espaços. O subsídio é essencial para formatar uma rede nacional capaz de compor, até mesmo, redes de cooperação internacional. Ele cita a necessidade de instalação de laboratórios com Nível 4 de Biossegurança (NB-4).

“Somente um laboratório de Nível 4 de Biossegurança permite que possamos manipular novos vírus e bactérias que cheguem ao nosso país ou que, eventualmente, sejam originados aqui”, salienta. Em Pedro Leopoldo, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, há segurança máxima no Laboratório Nacional Agropecuário de Minas Gerais (Lanagro/MG).

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Diego Xavier, epidemiologista e pesquisador do Instituto de Comunicação e Informação em Saúde (Icict), ligado à Fiocruz, lembra que o país tem sofrido por causa da demora na oficialização de estatísticas de casos e mortes.

“A gente precisa de sistemas que possibilitem o acompanhamento dos dados de saúde de maneira dinâmica, mais acelerada. Os sistemas de informação de saúde, no Brasil, geralmente funcionam com defasagem. Estamos sempre olhando para trás e, no caso da COVID-19, ficou bem evidente que precisamos olhar, pelo menos, ‘ao lado’ do problema. Não dá para ficar olhando dois ou três dias para trás para tentar analisar e corrigir”, ressalta.

Saúde pública ampliada

O antigo chefe da saúde federal reivindica mudanças na estrutura do Sistema Único de Saúde (SUS). “Temos uma rede muito voltada aos acidentes de carros e traumas. Precisamos de mais unidades para as doenças infecciosas e isolamento de pacientes”, observa, citando o Hospital Eduardo de Menezes, localizado em BH e ligado à Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais (Fhemig). Para lá foram mandados os primeiros casos graves no estado.

Croda, por seu turno, nutre esperança nas unidades sentinela, abertas em virtude do avanço da COVID-19. “Dobramos o número de locais que fazem vigilância sentinela de síndrome gripal. Se, no futuro, um novo vírus respiratório circular, vamos conseguir monitorar melhor. Houve uma importante abertura de leitos de UTI e, muitos deles, principalmente onde não existiam (vagas), ficarão para atender à população. Será muito difícil retirá-los quando acabar a pandemia”, projeta.

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“A reforma tributária que vem pela frente seria uma grande oportunidade para a sociedade cobrar, do Congresso, uma regra definitiva de financiamento para o nosso sistema de saúde. Nesta epidemia, não fosse o SUS, teríamos uma mega tragédia no Brasil”, sentencia Mandetta, em menção à forma como são repassados recursos às entidades que compõem a rede pública.

“É preciso ampliar a cobertura de imunização. A tarefa deve ser cumprida, inclusive, com vistas a uma eventual vacina contra o coronavírus. Não adianta a gente ter vacina se ela não chega à população. É preciso entender porque não chega. Não podemos ter uma vigilância epidemiológica passiva, mas sim ativa”, diz Croda.

Defensor das medidas restritivas, Mandetta enfrentou oposição dentro do próprio governo — Bolsonaro é claramente favorável à retomada econômica. A indefinição fez com que o Supremo Tribunal Federal (STF) decidisse, em abril, que estados e municípios têm autonomia para ações de combate à doença. Para Diego Xavier, futuras epidemias precisam ser pautadas por uma diretriz única. Sem isso, são altas as chances de fracasso.

“Faltou o Ministério fazer o seu dever, que é passar as diretrizes, protocolos e centralizar a compra de materiais e recursos. Vivemos uma disputa entre estados para comprar medicamentos e testes, mas o governo central poderia ter feito isso, comprando mais barato e gerenciando os recursos”.

“Temos que investir em saúde e em educação. Temos que ter governantes capazes de enfrentar uma pandemia, o que não é o caso. Se isso se perpetuar, outras (pandemias) virão e terão o mesmo impacto, serão a mesma tragédia. Mas o governante que está lá não chegou lá sozinho. Nós, a população brasileira, temos que pensar, refletir sobre o que fizemos, sobre nossas falhas”, opina o infectologista Unaí Tupinambás, integrante do grupo que aconselha o prefeito de Belo Horizonte, Alexandre Kalil (PSD).

Hábitos de prevenção

 Por causa do coronavírus, máscaras passaram a fazer parte do vestuário, o álcool gel virou item obrigatório nas bolsas e a higienização das mãos ganhou mais frequência. Luiz Henrique Mandetta acredita que os hábitos de prevenção precisam continuar na agenda cotidiana.

“O brasileiro teve que aprender a lavar as mãos, que é um hábito que praticamente não exercitava. Tivemos que aprender o distanciamento entre as pessoas, sendo que temos hábitos de proximidade e aglomerações absolutas. Precisamos entender que esse tipo de comportamento social vai ser impactado pela geração do coronavírus, que está aprendendo sobre o distanciamento e o uso de máscaras”, assegura.

Quem também ressalta a importância da educação no processo de conscientização é Wanderson de Oliveira, secretário de Vigilância em Saúde durante a passagem de Mandetta pelo ministério. “A preparação sobre futuras pandemias requer a inclusão do tema no currículo das escolas em todos os níveis. (É preciso) retornar a disciplina de vigilância em saúde como parte do currículo, como era no passado, e a elaboração de planos de emergência e contingência em todos os municípios”, reforça o enfermeiro epidemiologista.

A pandemia pode diminuir a onda negacionista e de rejeição à ciência que se abateu sobre o Brasil, crê Júlio Croda. “Isso pode se refletir na melhora da percepção dos brasileiros em relação à ciência. Quando impacta diretamente na vida do cidadão, há luz sobre a importância da ciência em nossa sociedade. O cidadão vai perceber que a ciência pode auxiliar no desenvolvimento nacional”.

O Brasil também deve tirar lições da pandemia no que tange à indústria. Mandetta pensa que o país pode recuperar o protagonismo na produção de insumos necessários aos hospitais nacionais. “Quando a China teve um problema e fechou, o mundo inteiro ficou sem máscaras. Há uma decisão, do planeta Terra, de diversificar produtores. O Brasil tem tudo para, analisando o quadro, retomar o parque industrial de remédios, soros, vacinas, seringas e agulhas, já que estamos comprando da China por conta dos preços mais baixos, achando que isso é um bom negócio, mas perdendo a soberania”, afirma. (Colaborou Gustavo Werneck)

EM TEMPO: Convém lembrar essa lição: que o Mandetta   não era simpático ao SUS. Agora, mudou de idéia.  Ainda bem. 

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