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© Reprodução. Para Rubens Ricupero, situação 'grotesca' do país hoje não tem paralelo no mundo
O diplomata Rubens
Ricupero diz não invejar o trabalho dos correspondentes de imprensa que têm de
explicar para o mundo o que acontece no Brasil hoje.
"A situação é
de tal maneira grotesca que um alemão, um inglês, um francês não vai ter
condição de compreender na sua dimensão real a tragédia que é aqui."
Para ele, a
dificuldade do Brasil para controlar a pandemia de covid-19 e a postura
negacionista do presidente Jair Bolsonaro diante da doença contribuem para
piorar a imagem do país, "que já não era boa".
As crises que
cercam Bolsonaro, em sua visão, alçaram-no à posição de "pior vilão
internacional", até algum tempo atrás ocupada pelo presidente das
Filipinas, Rodrigo Duterte, que ganhou as manchetes depois de assumir o poder,
em 2016, com uma controversa política antidrogas que resultou em milhares de
assassinatos.
Ricupero atuou como
diplomata por mais de 40 anos. Foi embaixador do Brasil em Washington entre
1991 e 1993 e ministro da Fazenda e do Meio Ambiente no governo Itamar Franco
(1992-1994).
Na quinta-feira
(18), ele divulgou uma carta aberta assinada com outros 8 ex-ministros do Meio
Ambiente em que expõe a "ação anticientífica do governo federal", que
transformou "o desafio da covid-19 na mais grave tragédia epidemiológica da
história recente do Brasil".
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"A
sustentabilidade socioambiental está sendo comprometida de forma irreversível
por aqueles que têm o dever constitucional de garanti-la", segue o
documento, que solicita ao Procurador-Geral da República "que adote as
medidas jurídicas cabíveis para barrar iniciativas de estímulo à degradação do
meio ambiente promovidas pelo governo federal" e que examine "com
imparcialidade e presteza as denúncias de crimes de responsabilidade
potencialmente cometidos pelo ministro do Meio Ambiente".
Leia, a seguir,
trechos da entrevista.
BBC News Brasil - A União Europeia já
sinalizou, por conta da situação da pandemia aqui, que deve barrar a entrada de
brasileiros quando começar a reabrir as fronteiras. O que o Brasil perde ao ser
visto como um país que não consegue controlar o avanço da covid-19?
Rubens Ricupero - Isso vai aprofundar o isolamento. Os EUA já
adotaram essa medida em relação aos voos provenientes do Brasil - e já há algum
tempo. Essa preocupação de que o Brasil perdeu o controle da doença e de que
pode contagiar outros países que estão de certa forma mais protegidos é
praticamente universal.
Os três presidentes
dos países do Mercosul - da Argentina, do Uruguai e do Paraguai -, já
manifestaram de público a preocupação com o descontrole da pandemia no Brasil e
adotaram medidas nas fronteiras.
Então, se amanhã a
União Europeia fizer isso, provocaria talvez não uma mudança de substância, mas
no plano psicológico acho que seria um golpe forte, dados os laços que o Brasil
tem com países europeus.
BBC News Brasil - A situação do país
hoje, na sua avaliação, muda de alguma forma a visão que o mundo tinha sobre a
gestão Jair Bolsonaro? A gente sabe que a imagem do Brasil foi um pouco
maculada por conta das queimadas na Amazônia…
Ricupero - Acho que "pouco" é um eufemismo... Muda
pra muito pior. E a imagem já era ruim, antes mesmo da pandemia.
Veja você, não se
trata apenas da questão ambiental. Antes da pandemia, todo mundo sabia que o
Brasil tinha um presidente que fazia apologia da tortura, apologia da ditadura
militar, que é apoiado por grupos de milícias violentas, que usam a mídia
social para destruir os outros, é um indivíduo misógino, inimigo entranhado dos
indígenas, que diz que não assinaria a concessão de um metro a mais de reserva
indígena, inimigo dos quilombolas.
Enfim, ele é aquilo
que, na Antiguidade, na época dos romanos e dos gregos, se dizia: "Ele é
inimigo do gênero humano".
É um indivíduo
extremamente odioso nas suas características. Tanto assim que, em pouco tempo,
ele desplantou como pior vilão internacional o Duterte, das Filipinas. Hoje em
dia ninguém fala do Duterte. Acho que o Duterte está até feliz que está
esquecido.
A situação do
Brasil é extremamente humilhante e triste. Eu não invejo a posição de alguém
como um correspondente internacional que tem que tentar explicar o Brasil ao
exterior. A situação aqui é de tal maneira grotesca que um alemão, um inglês,
um francês não vai ter condição de compreender na sua dimensão real a tragédia
que é aqui.
BBC News Brasil - No âmbito das
relações internacionais, o Brasil se mantém alinhado às posições americanas.
Como o senhor avalia a diplomacia brasileira em relação aos EUA?
Ricupero - Ela é um desastre absoluto, porque, como diz meu
colega e amigo Celso Amorim, o ex-ministro do Exterior (do governo Lula), não se
trata, como se costuma afirmar, de um alinhamento automático - é uma submissão
automática, é uma subserviência automática.
O Brasil obedece às
diretrizes nas coisas mais inacreditáveis. Por exemplo: recentemente, o
presidente chegou a dizer que pretende sair também da Organização Mundial da
Saúde (alguns dias antes, o presidente Trump havia ameaçado retirar os EUA da
OMS). Até agora, não deu sequência a isso.
É uma situação
deplorável, porque nós temos essa submissão sem nenhuma explicação - porque nós
não precisamos dos americanos, nem para proteção, como é o caso de alguns
países, e nem no sentido econômico, comercial.
Talvez o único lado
positivo da crise brasileira é que nós não precisamos de socorro financeiro, o
Brasil tem reservas muito grandes e, em matéria de comércio, a China é hoje
nosso maior mercado.
Para o Brasil, a
China é vital. E um dos aspectos mais absurdos da atual política externa
brasileira é que ela é visceralmente hostil à China por razões ideológicas.
É um grupelho que
tomou conta do Itamaraty, que é ligado ao Olavo de Carvalho, que tem uma
concepção de Guerra Fria completamente anacrônica - só que em vez de ser União
Soviética, a China substituiu a União Soviética como grande polo do que eles
chamam de o maoísmo chinês. O Mao Tsé-Tung já morreu há 40 anos, e aqui eles
ainda acham que ele é que está dando as cartas.
É uma situação que
é difícil até de discutir racionalmente, porque não tem nenhuma racionalidade.
BBC News Brasil - A relação do Brasil
com a China pode ter sido prejudicada pelos comentários feitos por ministros
como Abraham Weintraub e pelos filhos de presidente? A China é conhecida por
ser bastante pragmática, mas episódios recentes suscitaram respostas enérgicas
da Embaixada do país no Brasil...
Ricupero - Acho que essas reações foram uma advertência. E não
é só o Abraham Weintraub, naquela reunião do dia 22 de abril (incluída no
inquérito que apura eventual interferência do presidente na PF), que foi depois
divulgada, a parte que não foi publicada continha pesadas ofensas à China da
parte do próprio presidente.
Os chineses tiveram
até uma atitude, eu acho, madura. Eles não se deixaram levar pela provocação.
Ao que eu saiba, não houve nenhuma retaliação no sentido de deixar de comprar
produtos brasileiros.
Mas, por outro
lado, isso tem um limite. Mesmo que não haja daqui por diante nenhuma agressão
adicional, a relação foi quebrada, a confiança não existe mais. O Brasil pode,
na melhor das hipóteses, manter o status quo, as vendas que faz - porque, como
vende alimentos, a China também tem interesse em comprar.
Mas não acredito
que nós possamos melhorar qualitativamente as relações. Não acredito que a
gente possa, por exemplo, obter atração de investimentos para infraestrutura -
que o Brasil vai precisar para sair da crise.
Duvido muito que a China vá fazer isso para favorecer o Brasil. Ela vai adotar uma atitude, como já está adotando, mais propícia à Argentina, que é um país que tem um relacionamento mais amistoso com a China.
Acho que o Brasil
está complicando muito o seu futuro, porque não tem alternativa, compreende? Se
você pudesse dizer: a China pode ficar zangada conosco, mas tudo o que nós
vendemos à China vamos vender aos americanos. Não vamos, porque eles são nossos
competidores.
Vai vender pra
quem? Ainda vende pra União Europeia, mas mesmo a União Europeia é um mercado
em perigo, por causa do meio ambiente.
Acho muito duvidoso
que esse acordo Mercosul-União Europeia vá adiante, porque não há condições
para que os Parlamentos o ratifiquem. Os Parlamentos irlandês e austríaco já
votaram moções contrárias ao acordo...
BBC News Brasil - O embaixador alemão
também comentou recentemente que nossos números do desmatamento não ajudam
nesse sentido.
Ricupero - Não ajudam. Eu tenho a impressão de que o
mais provável é que esse acordo vai ficar numa espécie de terra de ninguém, num
limbo.
Eles não vão
rejeitar, mas também não vão aprovar, esperando que o Brasil dê mostras de que
fala sério quando anuncia esse "ambientalismo de resultados".
As perspectivas não
são boas. Veja você se as eleições americanas produzirem um resultado da
vitória dos democratas.
BBC News Brasil - O que isso
significaria pro Brasil?
Ricupero - O Brasil vai ficar sozinho. O Joe Biden (candidato
democrata) já deu declarações de crítica ao desmatamento da Amazônia, ele tem
um compromisso muito grande com a ideia da agenda da economia verde, muito mais
do que o Obama (de quem foi vice-presidente).
Se ele for eleito,
vai mudar. Aliás, já está mudando: você viu que há poucos dias os democratas
que dominam a comissão de Ways and Means (Orçamentos e Tributos) da Câmara -
que é poderosíssima, é a comissão da qual depende todo o comércio exterior -
mandaram uma carta ao USTR (United States Trade Representative, representante
comercial da Casa Branca) dizendo que se opunham a qualquer negociação de
melhora comercial com o Brasil, porque o Brasil viola, eles dizem, não só o
meio ambiente.
Então, com quem o
Brasil vai comerciar?
BBC News Brasil - O senhor comentou
sobre a influência de Olavo de Carvalho no governo. O chanceler Ernesto Araújo
é um dos seus ditos "discípulos", assim como Filipe Martins, assessor
da Presidência para Assuntos Internacionais. Como o senhor avalia o impacto do
"olavismo" nas relações exteriores brasileiras?
Ricupero - É uma pena que justamente seja no Ministério do
Exterior que essa influência talvez seja mais forte. O Abraham Weintraub... na
verdade o próprio Olavo de Carvalho tem maltratado o Weintraub. Ele o trata com
muito desprezo, porque ele não tem expressão, é um homem, como se sabe,
inteiramente ignaro.
A pobre da Damares
(Alves, ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos) então, essa nem se
fala, nem entra nisso. O homem do Meio Ambiente (Ricardo Salles) é um indivíduo
nefasto, mas mais porque ele é aliado aos ruralistas, não é por ideologia, é
mais por interesses.
Portanto, o que
sobra mesmo de núcleo ideológico é na área internacional. No ministério e na
assessoria internacional - que é justamente onde isso não deveria acontecer,
porque é nas relações internacionais que se deve ter objetividade, se deve ter
aquele tipo de atitude em que o que conta é o interesse nacional.
E não se deve,
sobretudo, ceder a teorias que são completamente conspiratórias.
Eu costumo dizer
sempre que essas ideias do (chanceler) Ernesto Araújo e dos seus sequazes nos
EUA fazem parte do que os americanos chamam o "lunatic fringe", que
são aqueles loucos que você tem, assim, no interior do Colorado, que vivem
dentro de uma floresta... são uns doidos que vivem na periferia de tudo.
E se alguém acha
que eu estou exagerando, basta que entre na internet e acompanhe os seminários
da Fundação Alexandre de Gusmão, que é a fundação oficial do Itamaraty, que
todo dia tem um doido desse tipo.
Ontem, por exemplo,
tinha um, que é diretor da Biblioteca Nacional (Rafael Nogueira), que dizia com
veemência que o nacionalismo não teve nada que ver com o desencadeamento da
Segunda Guerra Mundial. Você vê, eu que sou professor de História, se um
sujeito dissesse uma coisa dessas eu seria obrigado a reprovar in
limine.
BBC News Brasil - Alguns embaixadores
têm feito defesas calorosas do governo. Houve o caso do embaixador em Paris,
que escreveu ao Le Monde defendendo o combate à pandemia, o embaixador em
Luanda, que chegou a entrar em conflito com um ex-ministro angolano pelos
jornais. Quais notícias o senhor tem de como está o clima no Itamaraty?
Ricupero - O ambiente é péssimo. Eu direi a você, sem muito
medo de exagerar, que a imensa maioria dos diplomatas, talvez mais de 90%, não
acredita nessas teorias.
Mesmo aqueles que
são sem caráter - e são consideráveis -, eles são suficientemente cínicos para
verem que isso é um amontoado de asneiras.
Só que há um grupo
que é sem caráter e é carreirista, que quer manter o seu posto, quer estar bem
com o governo. Esses fazem qualquer negócio, até matam a própria mãe se for
necessário. Mas isso é como em toda profissão, tem gente assim. Tem gente que
não tem nenhum respeito próprio e está disposto a lamber as botas dos
poderosos, de fazer essas cartas que nós vimos.
A maioria tenta se
manter calada, tenta sobreviver. Muitos estão agindo sob coação, e procuram, na
medida do possível, preservar a sua consciência tentando não se acumpliciar com
isso.
Mas às vezes eles
recebem ordens como essas, de mandar cartas. O que eu sei é que, quando eles
recebem ordens de mandar as cartas, a carta tem que ser submetida ao gabinete
do ministro, porque o gabinete do ministro ainda agrava os termos, para tornar
ainda mais humilhante a coisa.
Faz parte desse
momento de degradação que o Brasil e o Itamaraty estão vivendo.
BBC News Brasil - Como pesquisador,
professor de História, o senhor enxerga algum paralelo entre o momento atual e
a trajetória da diplomacia brasileira?
Ricupero - Não, nunca. Eu acabei de publicar, em 2017, um
livro que chama Diplomacia na Construção do Brasil, que é a
história desde a época colonial. Nós nunca tivemos, mesmo na época colonial,
(um momento) em que a diplomacia brasileira era gerida por Portugal... Portugal
sempre teve uma diplomacia de grande qualidade, a escola diplomática brasileira
é herdada da portuguesa.
O Brasil nunca
teve, no passado, atos dos quais se poderia envergonhar. É a primeira vez. Nós
não temos nada semelhante, nem nos piores momentos.
Por exemplo, no
período da Regência, depois da abdicação do primeiro Imperador, em que a situação
interna brasileira ficou quase que uma situação de caos; no começo da
República, que houve a Revolta da Armada... mas mesmo nessa época sempre havia
uma continuidade, havia quadros que mantinham a tradição do Itamaraty. Dessa
vez se perdeu inteiramente.
E é triste ver que
isso se faz pelas mãos de um funcionário de carreira, não é nem um interventor
de fora, é um Quisling (Vidkun Quisling, político norueguês que colaborou com o
regime nazista quando Hitler invadiu a Noruega), é um colaboracionista de dentro.
É um indivíduo que se presta a esse papel.
BBC News Brasil - Como o senhor vê a
autonomia e o posicionamento do chanceler, colocando em perspectiva a
influência que um dos filhos do presidente, Eduardo Bolsonaro, tem sobre a
política externa brasileira?
Ricupero - Entre o Ernesto Araújo, o Eduardo Bolsonaro, o
Filipe (Martins), os outros, não há diferença. Eles são todos fanáticos da
mesma seita.
É possível até que,
se houvesse uma divergência entre eles, o Ernesto teria que se submeter, mas
acredito até que espontaneamente ele já é submisso. Porque é farinha do mesmo
saco. Não vejo muitas diferenças entre eles, nem que alguns deles esteja com
consciência de manter um espaço autônomo.
BBC News Brasil - Como o senhor
definiria a política externa do Brasil hoje?
Ricupero - É uma política totalmente alienada da realidade
internacional e brasileira.
Porque a base de
toda política externa é uma visão da realidade, do meio em que você vai agir.
Uma interpretação correta desse mundo, de quais são seus problemas, suas
ameaças, mas também suas oportunidades.
Esse é o primeiro
ponto. O segundo é: dentro desse quadro internacional da realidade, essa
política externa tem que definir os objetivos nacionais. O Brasil não está
ameaçado por ninguém. Ele não tem problemas de segurança, não tem porque se
preparar para uma guerra.
Qual problema do
Brasil? É o subdesenvolvimento, o crescimento econômico, a inclusão social.
Para isso, ele precisa crescer na sua economia. E pra isso ele precisa de
mercados, de investimentos.
BBC News Brasil - A gente deveria
estar mais focado em atrair investimentos, então?
Ricupero - Atrair investimentos que permitam aumentar as
exportações, conquistar novos mercados.
Ora, o Brasil faz
exatamente o contrário. Esse pessoal que tá no governo, eles têm uma visão, que
é uma realidade virtual, de que o mundo é uma conspiração contra a cultura
judaico-cristã, uma conspiração de certas forças obscuras, como o globalismo
das Nações Unidas, que querem impor as políticas de gênero, querem impor o
casamento gay, o aborto... querem destruir a família. Eles acham que o mundo é
isso.
Eles não veem que o
mundo é outra coisa, muito mais complexa, em que há o problema da competição
China-EUA, mas uma competição na qual o Brasil não tem por que escolher um lado
ou outro, porque o nosso interesse é ter boa relação com ambos.
É uma política externa
alienada do mundo, porque tem uma visão distorcida, de um mundo que não existe
- a não ser na fantasia do Olavo de Carvalho e de outros.
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