sábado, 9 de maio de 2020

‘Receio que no Brasil a crise sanitária caia em uma saída autoritária’, diz Lilia Schwarcz



Para a historiadora e antropóloga Lilia Schwarcz, pandemia cria condições para saídas autoritárias de governos populistas (Leonor Calasans/USP)

Por Nathan Fernandes
Para a historiadora e antropóloga Lilia Schwarcz, ao mesmo tempo que a pandemia do novo coronavírus tem a capacidade de expor as desigualdades sociais, ela também cria condições para saídas autoritárias de governos populistas. “Nosso presente está cheio de passado”, diz ela, lembrando que o Brasil sempre foi um país violento. 
Apesar do receio, a professora da Universidade de São Paulo e de Princeton, acredita que a crise também é uma oportunidade para mudar. Afinal, “toda crise fecha muitas portas, mas também abre algumas frestas”, como diz ela, nesta entrevista ao Yahoo!, em que escancara os vícios brasileiros que se repetem ao longo da história e reflete sobre os papéis de gênero durante a pandemia.

Percebemos que existem padrões que se repetem na história das epidemias do Brasil, como o negacionismo, por exemplo. Mas, na sua opinião, quais são os principais elementos que tornam a crise atual diferente das outras?
É verdade, o negacionismo sempre se repete. Todos queremos ter um corpo são, e temos essa ilusão de que o corpo não falha, que ele é perfeito. Por isso, acabamos negando a realidade, imagine quando essa realidade se coloca como um padrão coletivo. Isso aconteceu em várias pandemias no Brasil, inclusive na Gripe Espanhola, de 1918. Mas uma coisa específica neste momento é que o mundo está, de fato, globalizado. As pessoas têm acesso às informações de forma muito mais rápida, o que pode ser uma vantagem e uma desvantagem. É uma vantagem porque o acesso à informação foi democratizado, sem tantos intermediários. O lado negativo é que estamos expostos a muitas fake news. Inclusive, boa parte das fake no Brasil são negacionistas, negam a gravidade da situação e a importância do isolamento. 
A senhora acredita que a pandemia possa trazer mudanças reais ou é mais provável que retornemos a repetir os mesmos erros do passado? 
Bom, se a humanidade aprendesse com o passado, os historiadores seriam visionários. A gente não aprende com o passado. Toda vez que passamos por uma grande crise, a reação das pessoas é a mesma, a de pensar: “Agora nós aprendemos, nunca mais vamos fazer isso”. Mas as crises continuam a acontecer. A epidemia já vinha se anunciando e as nações não montaram um exército da saúde, como montam exércitos militares. Era preciso que as nações se antecipassem à pandemia, não que corressem atrás do atraso. Então, não sou partidária dessa ideia de que nós não repetimos o passado. Acho que a humanidade vem se repetindo em termos de violência, de intolerância, de racismo, xenofobia... Penso que a humanidade é teimosa. 
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Mas, já que é a primeira vez que essa geração vive algo do tipo, quem sabe algumas coisas não mudam? 
Fico pensando numa divisão de gênero. Temos vários relatos de maridos que dizem que não sabiam que os afazeres domésticos davam esse trabalho todo. Penso mais nesse espaço da domesticidade. Mas temos que entender que nem sempre lar quer dizer casa. Muita vezes, romantizamos esse espaço, enquanto os números de violência doméstica aumentam.
Talvez, possamos aprender com a experiência das várias mulheres dirigentes de nações, como é o caso da Nova Zelândia, Islândia, Finlândia, Taiwan, Cingapura e Alemanha, que estão inventando uma forma nova de fazer política: menos viril, menos normativa, menos dogmática. Uma forma mais atenta aos cuidados que a população precisa. Talvez aí resida uma novidade.
A pandemia já mostrou que a população negra é a mais afetada pelo vírus, menos por uma questão biológica, e mais por uma questão social. Acredita que essa crise possa perpetuar o racismo, ou acha que ela poderia ser uma forma de abrir caminho para reparações históricas?
Toda pandemia de alguma maneira escancara as nossas desigualdades sociais. Isso está acontecendo agora. A própria entrada da epidemia no Brasil é um exemplo. Ela veio de avião, através de pessoas da elite que estavam no estrangeiro e voltaram contaminadas. Tanto que os primeiros dados incidem sobre os bairros mais nobres. Mas o que está acontecendo agora é que a pandemia está chegando fortemente nas periferias, subúrbios, comunidades e favelas. Em São Paulo, ela já é muito maior na periferia do que nos bairros centrais, no Rio também e agora em Salvador parece que o perfil vem se repetindo. 
Se a pobreza é vulnerável, os negros estão sendo os mais atingidos. Essa notícia já veio dos Estados Unidos e agora se repete no Brasil, porque as populações negras são as mais afetadas há muito tempo. Temos um racismo estrutural desde o momento do pós-abolição, que teve data para começar mas não teve pra terminar. As populações negras vivem em bairros com menos equipamentos, como esgoto e água encanada, vivem em condições mais insalubres e também não conseguem recorrer à saúde pública.  
Penso que a pandemia tem a potencialidade de escancarar as desigualdades sociais, o racismo, preconceito contra idosos… Agora o que os brasileiros vão fazer com isso? Cabe a nós, à sociedade civil e ao governo aprender um pouco com essa nova realidade que não tem mais como ficar invisível ou silenciosa.  
Dado o contexto político atual do Brasil, acha que a crise pode abrir espaço para o autoritarismo?
Escrevi um livro com esse tema [“Sobre o Autoritarismo Brasileiro”, Ed. Companhia das Letras]. Nele, eu parto de duas hipóteses centrais: a primeira é a de que o nosso presente está cheio de passado; a segunda é a de que nós, brasileiros, sempre fomos violentos, seja pelo nosso passado escravocrata, ou pelo passado colonial. O Brasil criou hierarquias estruturais rígidas, processos de mandonismo, de patrimonialismo que fazem o país ter comportamentos autoritários. 
Repare no governo atual e na quantidade de vezes que as pessoas do governo mencionam elogiosamente o AI5. Quantas vezes esses dirigentes usam a linguagem bélica? Tenho receio desse tipo de jargão diante desse governo temos agora. É um governo populista, que acha que tem um contrato com o povo, e que, por isso, fala com desdém da imprensa, da ciência, das instituições... Sabemos pela história que, por não terem um compromisso democrático com a nação, os governos populistas são aqueles que promovem golpes de estado, decretam estado de sítio. De uma maneira geral, acabam com a democracia. Portanto, no Brasil, em particular, tenho muito receio que a crise — que é sanitária, mas que gera um estado de anomalia e emergência — caia numa saída autoritária. 
Podemos tirar algum saldo positivo de tudo isso?
Acredito que sempre seja possível fazer da crise uma oportunidade, é difícil mas é possível. No linguajar da medicina mais antiga, a crise era o momento de pico da doença, em que ou o paciente se curava ou falecia. Talvez, estejamos neste momento. Toda crise fecha muitas portas, mas também abre algumas frestas.
Vamos ver se a sociedade transforma a filantropia numa forma de vida, por exemplo. Que a gente consiga, de fato, proteger os mais vulneráveis, que a gente entenda que, ao proteger os mais vulneráveis, estamos protegendo a nós mesmos, que a defesa do SUS é quase uma defesa dos direitos humanos. 
Tenho dito que vivemos uma situação paradoxal, porque uma pandemia como essa pede de nós muita solidariedade, mas, ao mesmo tempo, aqueles que podem tem que demonstrar sua solidariedade, entre outras atitudes, ficando isolados. Então essa ideia de estarmos juntos e estarmos isolados há de gerar uma reflexão sobre os espaços que temos que preencher, os  espaços que ainda podemos conquistar, no sentido de nos tornarmos cidadãos mais amplos e mais plenos.  

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