Para a historiadora e antropóloga Lilia Schwarcz,
pandemia cria condições para saídas autoritárias de governos populistas (Leonor
Calasans/USP)
Por
Nathan Fernandes
Para
a historiadora e antropóloga Lilia Schwarcz, ao mesmo tempo que a pandemia
do novo coronavírus tem a capacidade de expor as desigualdades
sociais, ela também cria condições para saídas autoritárias de governos
populistas. “Nosso presente está cheio de passado”, diz ela, lembrando que o
Brasil sempre foi um país violento.
Apesar
do receio, a professora da Universidade de São Paulo e de Princeton, acredita
que a crise também é uma oportunidade para mudar. Afinal, “toda crise fecha
muitas portas, mas também abre algumas frestas”, como diz ela, nesta entrevista
ao Yahoo!, em que escancara os vícios brasileiros que se repetem ao longo da história
e reflete sobre os papéis de gênero durante a pandemia.
Percebemos que existem padrões que se
repetem na história das epidemias do Brasil, como o negacionismo, por exemplo.
Mas, na sua opinião, quais são os principais elementos que tornam a crise atual
diferente das outras?
É
verdade, o negacionismo sempre se repete. Todos queremos ter um corpo são, e
temos essa ilusão de que o corpo não falha, que ele é perfeito. Por isso,
acabamos negando a realidade, imagine quando essa realidade se coloca como um
padrão coletivo. Isso aconteceu em várias pandemias no Brasil, inclusive na
Gripe Espanhola, de 1918. Mas uma coisa específica neste momento é que o mundo
está, de fato, globalizado. As pessoas têm acesso às informações de forma muito
mais rápida, o que pode ser uma vantagem e uma desvantagem. É uma vantagem
porque o acesso à informação foi democratizado, sem tantos intermediários. O
lado negativo é que estamos expostos a muitas fake news. Inclusive, boa parte
das fake no Brasil são negacionistas, negam a gravidade da situação e a importância
do isolamento.
A senhora acredita que a pandemia
possa trazer mudanças reais ou é mais provável que retornemos a repetir os
mesmos erros do passado?
Bom,
se a humanidade aprendesse com o passado, os historiadores seriam visionários.
A gente não aprende com o passado. Toda vez que passamos por uma grande crise,
a reação das pessoas é a mesma, a de pensar: “Agora nós aprendemos, nunca mais
vamos fazer isso”. Mas as crises continuam a acontecer. A epidemia já vinha se
anunciando e as nações não montaram um exército da saúde, como montam exércitos
militares. Era preciso que as nações se antecipassem à pandemia, não que
corressem atrás do atraso. Então, não sou partidária dessa ideia de que nós não
repetimos o passado. Acho que a humanidade vem se repetindo em termos de
violência, de intolerância, de racismo, xenofobia... Penso que a humanidade é
teimosa.
Mas, já que é a primeira vez que essa geração vive algo do tipo, quem
sabe algumas coisas não mudam?
Fico
pensando numa divisão de gênero. Temos vários relatos de maridos que dizem que
não sabiam que os afazeres domésticos davam esse trabalho todo. Penso mais
nesse espaço da domesticidade. Mas temos que entender que nem sempre lar quer
dizer casa. Muita vezes, romantizamos esse espaço, enquanto os números de
violência doméstica aumentam.
Talvez,
possamos aprender com a experiência das várias mulheres dirigentes de nações,
como é o caso da Nova Zelândia, Islândia, Finlândia, Taiwan, Cingapura e
Alemanha, que estão inventando uma forma nova de fazer política: menos viril,
menos normativa, menos dogmática. Uma forma mais atenta aos cuidados que a
população precisa. Talvez aí resida uma novidade.
A pandemia já mostrou que a população
negra é a mais afetada pelo vírus, menos por uma questão biológica, e mais por
uma questão social. Acredita que essa crise possa perpetuar o racismo, ou acha
que ela poderia ser uma forma de abrir caminho para reparações históricas?
Toda
pandemia de alguma maneira escancara as nossas desigualdades sociais. Isso está
acontecendo agora. A própria entrada da epidemia no Brasil é um exemplo. Ela
veio de avião, através de pessoas da elite que estavam no estrangeiro e
voltaram contaminadas. Tanto que os primeiros dados incidem sobre os bairros
mais nobres. Mas o que está acontecendo agora é que a pandemia está chegando
fortemente nas periferias, subúrbios, comunidades e favelas. Em São Paulo, ela
já é muito maior na periferia do que nos bairros centrais, no Rio também e
agora em Salvador parece que o perfil vem se repetindo.
Se
a pobreza é vulnerável, os negros estão sendo os mais atingidos. Essa notícia
já veio dos Estados Unidos e agora se repete no Brasil, porque as populações
negras são as mais afetadas há muito tempo. Temos um racismo estrutural desde o
momento do pós-abolição, que teve data para começar mas não teve pra terminar.
As populações negras vivem em bairros com menos equipamentos, como esgoto e
água encanada, vivem em condições mais insalubres e também não conseguem
recorrer à saúde pública.
Penso
que a pandemia tem a potencialidade de escancarar as desigualdades sociais, o
racismo, preconceito contra idosos… Agora o que os brasileiros vão fazer com
isso? Cabe a nós, à sociedade civil e ao governo aprender um pouco com essa nova
realidade que não tem mais como ficar invisível ou silenciosa.
Dado o contexto político atual do
Brasil, acha que a crise pode abrir espaço para o autoritarismo?
Escrevi
um livro com esse tema [“Sobre o Autoritarismo Brasileiro”, Ed. Companhia das Letras].
Nele, eu parto de duas hipóteses centrais: a primeira é a de que o nosso
presente está cheio de passado; a segunda é a de que nós, brasileiros, sempre
fomos violentos, seja pelo nosso passado escravocrata, ou pelo passado
colonial. O Brasil criou hierarquias estruturais rígidas, processos de
mandonismo, de patrimonialismo que fazem o país ter comportamentos
autoritários.
Repare
no governo atual e na quantidade de vezes que as pessoas do governo mencionam
elogiosamente o AI5. Quantas vezes esses dirigentes usam a linguagem bélica?
Tenho receio desse tipo de jargão diante desse governo temos agora. É um
governo populista, que acha que tem um contrato com o povo, e que, por isso,
fala com desdém da imprensa, da ciência, das instituições... Sabemos pela
história que, por não terem um compromisso democrático com a nação, os governos
populistas são aqueles que promovem golpes de estado, decretam estado de sítio.
De uma maneira geral, acabam com a democracia. Portanto, no Brasil, em
particular, tenho muito receio que a crise — que é sanitária, mas que gera um
estado de anomalia e emergência — caia numa saída autoritária.
Podemos tirar algum saldo positivo de
tudo isso?
Acredito
que sempre seja possível fazer da crise uma oportunidade, é difícil mas é
possível. No linguajar da medicina mais antiga, a crise era o momento de pico
da doença, em que ou o paciente se curava ou falecia. Talvez, estejamos neste
momento. Toda crise fecha muitas portas, mas também abre algumas frestas.
Vamos
ver se a sociedade transforma a filantropia numa forma de vida, por exemplo.
Que a gente consiga, de fato, proteger os mais vulneráveis, que a gente entenda
que, ao proteger os mais vulneráveis, estamos protegendo a nós mesmos, que a
defesa do SUS é quase uma defesa dos direitos humanos.
Tenho dito que
vivemos uma situação paradoxal, porque uma pandemia como essa pede de nós muita
solidariedade, mas, ao mesmo tempo, aqueles que podem tem que demonstrar sua
solidariedade, entre outras atitudes, ficando isolados. Então essa ideia de estarmos
juntos e estarmos isolados há de gerar uma reflexão sobre os espaços que temos
que preencher, os espaços que ainda podemos conquistar, no sentido de nos
tornarmos cidadãos mais amplos e mais plenos.
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