domingo, 31 de maio de 2020

Poderes em guerra


© GABRIELA BILO.
ISTO É - Edson Rossi


AUTOGOLPE - Sem capacidade para aceitar o jogo democrático, Bolsonaro achincalha o Poder Judiciário e começa a forçar uma ruptura institucional

O que tocou fundo na família presidencial e nas hostes bolsonaristas, que começam a sugerir um autogolpe de Estado, foi a deflagração de uma operação da Polícia Federal, na quarta-feira 27, ordenada pelo ministro do STF Alexandre de Moraes, no âmbito do inquérito das fake news, que, desde março de 2019, investiga ataques orquestrados contra membros do tribunal. 

A iniciativa de Moraes motivou 29 mandados de busca e apreensão em cinco estados e no Distrito Federal e atingiu 18 aliados do presidente, empresários e políticos, entre eles o próprio Allan dos Santos, o presidente nacional do PTB, Roberto Jefferson, o dono da rede de lojas Havan, Luciano Hang, o deputado Douglas Garcia (PSL) e a ativista de direita Sara Winter, que ameaçou o ministro de agressão. “O senhor me aguarde, Alexandre de Moraes, o senhor nunca mais vai ter paz na vida do senhor. A gente vai infernizar sua vida”, afirmou. Moraes já pediu à Procuradoria Geral da República (PGR) que tome providências sobre as ameaças de Sara.


A reação de Bolsonaro ao saber da deflagração das operação contra seus apoiadores foi descrita como “colérica”. Para o presidente, Moraes agiu com o objetivo de atingir o seu governo e o filho 02, o vereador Carlos (Republicanos-RJ). Tanto Carlos quanto Eduardo têm seus nomes atrelados à investigação das fake news. Bolsonaro também tratou a decisão de Moraes como um ataque à democracia. “Ver cidadãos de bem terem seus lares invadidos, por exercerem seu direito à liberdade de expressão, é um sinal que algo de muito grave está acontecendo com nossa democracia”, afirmou pelas redes sociais. 

Embora o presidente reivindique a liberdade de expressão, o inquérito que motivou a operação não tem nada a ver com isso, mas com ameaças pela internet e distribuição de notícias falsas. Além disso, Bolsonaro quer fazer crer que a democracia claudica, para “salvá-la”.  “As coisas têm limite. Ontem foi o último dia e peço a Deus que ilumine as poucas pessoas que ousam se julgar mais poderosas que outros que se coloquem no seu devido lugar, que respeitamos”, disse Bolsonaro em um pronunciamento em frente ao Palácio do Alvorada, um dia depois da operação da PF. “E dizer mais: não podemos falar em democracia sem judiciário independente, legislativo independente para que possam tomar decisões. Não monocraticamente, mas de modo que seja ouvido o colegiado. Acabou, porra”. 
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O ministro Luiz Fux, que assumiu o comando do STF durante o afastamento de Dias Toffoli, internado com suspeita de Covid-19, disse que a corte continua vigilante contra qualquer forma de agressão. Declarou também que ofender a instituição representa “notório desprezo pela democracia” e saiu em defesa do ministro Celso de Mello, decano do tribunal, a quem chamou de “líder incansável desta Corte na concretização de tantos direitos e garantias fundamentais dos cidadãos brasileiros”.

Crise sem precedentes

Os problemas entre o governo e o STF subiram de tom, justamente, na sexta-feira 22, com a liberação integral do vídeo da reunião ministerial que levou à demissão do ex-ministro Sérgio Moro, por Celso de Mello. O conteúdo do vídeo escancarou algumas das piores intenções do governo e abriu uma crise sem precedentes. Confirmou as denúncias de Moro de que Bolsonaro pretende interferir na PF e expôs alguns ministros, como Abraham Weintraub, da Educação. Weintraub chamou os membros do STF de “vagabundos” e disse que deveriam ir para a cadeia. 

Na sua decisão, Mello comparou o esforço de Bolsonaro para esconder fatos que colocariam sob suspeita sua eleição em 2018, com o do presidente americano Richard Nixon para evitar um escândalo político e a própria renúncia no chamado caso Watergate. O fato que o presidente escondeu foi uma investigação da PF do caso das “rachadinhas”, que atinge seu filho 01, o senador Flávio (Republicanos-RJ) e seu assessor Fabrício Queiroz. 

Mello se referiu ao Watergate como precedente jurídico para acabar com o sigilo do vídeo da reunião ministerial. “Aquela alta Corte (dos EUA) acentuou que o chefe de Estado não está acima da autoridade das leis da República”, disse Mello. Sua decisão “deixou assentado que o presidente não pode proteger-se contra a produção de processo criminal com fundamento na doutrina do privilégio executivo”.
© Divulgação 

RESISTÊNCIA - Os ministros Celso de Mello e Alexandre de Moraes tomaram medidas que encurralaram o presidente

Além de determinar a divulgação integral do vídeo, Celso de Mello encaminhou ao procurador-geral da República, Augusto Aras, um pedido de apreensão dos celulares de Bolsonaro e de Carlos, “o quanto antes, sob pena de que haja tempo suficiente para que as provas sejam apagadas ou adulteradas”. 

O STF intimou o ministro Weintraub a dar explicações sobre suas manifestações contra o tribunal. O pedido de apreensão dos celulares foi recebido com fúria pelo ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), general Augusto Heleno, que divulgou uma Nota à Nação Brasileira no dia seguinte em que afirmou que a medida “poderá ter consequências imprevisíveis para a estabilidade nacional”, em mais uma ameaça de golpe. 

Para Heleno, o pedido de Celso de Mello é “inconcebível e, até certo ponto, inacreditável” e seria também “uma afronta à autoridade máxima do Poder Executivo e uma interferência de outro Poder na privacidade do presidente da República e na segurança institucional do País”. Caberá ao procurador Augusto Aras analisar o pedido do STF e decidir se os celulares serão entregues.

A farra das fake news

Apesar da reação raivosa do presidente e de seus aliados, Alexandre de Moraes, considerou, no inquérito das fake news, que “as provas colhidas e os laudos técnicos apresentados apontaram para a existência de uma associação criminosa dedicada à disseminação de notícias falsas, ataques ofensivos a diversas pessoas, às autoridades e às instituições, dentre elas o Supremo Tribunal Federal, com flagrante conteúdo de ódio, subversão da ordem e incentivo à quebra da normalidade institucional e democrática”. 

Além de Luciano Hang, outros empresários suspeitos de financiar a máquina bolsonarista de fake news e atingidos pelo inquérito são Edgard Corona, dono da rede de academias Bio Ritmo, o militar Winston Rodrigues Lima e o humorista Reynaldo Bianchi Júnior. Os quatro foram identificados em relatórios de investigação “como financiadores de publicações e vídeos com conteúdo difamante e ofensivo ao STF, bem como mensagens defendendo a subversão da ordem e incentivando a quebra da normalidade institucional e democrática”. 

Os empresários arrolados no inquérito fazem parte do grupo Brasil 200, que “impulsiona vídeos e materiais contendo ofensas e notícias falsas com o objetivo de desestabilizar as instituições democráticas”. Oito deputados bolsonaristas foram alvos da operação da PF. “Repito, não teremos outro dia igual ontem”, disse Bolsonaro. “Chega! Chegamos no limite. Estou com as armas da democracia na mão”.
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Subversão - O empresário Luciano Hang é acusado de financiar publicações com conteúdo ofensivo aos juízes do tribunal

Além de espernear, o governo pensa em várias medidas para se contrapor às iniciativas dos ministros do STF. Bolsonaro acredita que a operação da PF teve o claro objetivo de atingi-lo e convocou seus ministros para uma reunião de emergência para planejar uma reação que envolve basicamente a desobediência às determinações judiciais e o questionamento do tribunal com base da lei de abuso de autoridade. Para Bolsonaro, seus familitares e os militares do governo, o STF está ultrapassando os limites de suas atribuições. 

Uma das orientações do presidente é impedir que Weintraub preste depoimento no STF. Ficou definido que a Advocacia-Geral da União (AGU) entrará com um pedido de habeas corpus para que isso não ocorra. Outra ideia é determinar que Augusto Heleno não realize diligências relacionadas ao pedido de impeachment do ministro que foi apresentado ao STF e tem Celso de Mello como relator. Além disso, integrantes do governo defendem que Bolsonaro insista na nomeação de Alexandre Ramagem para a superintendência da PF com o intuito de desafiar a decisão de tribunal. 

O governo avalia ainda entrar com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) contra a investigação das fake news e questionar Moraes e Mello por causa de excessos cometidos em ações recentes.

Vários aliados do governo questionaram a legalidade da operação contra as fake news. A iniciativa tem o aval da Advocacia-Geral da União (AGU), órgão do Executivo que atua na corte. Em um documento encaminhado ao STF em setembro do ano passado, a AGU defendeu a legalidade das investigações e se posicionou de maneira oposta a um pedido da Associação Nacional de Procuradores da República (ANPR) para suspender imediatamente o processo com a alegação de que o inquérito “não possui delimitações, sendo ilegalmente genérico e amplo”.

 “Esse não é aquele inquérito que a PGR Raquel Dodge pediu para arquivar, mas o ministro Alexandre de Moraes não permitiu e deu continuidade?”, questionou Eduardo Bolsonaro. “Achei que não existisse processo judicialiforme no Brasil. Não é o MP/PGR titular da ação penal?”. Processo judicialiforme é aquele em que uma mesma pessoa acusa e julga. Questiona-se o papel investigativo do STF, mas o tribunal alega que seu regimento permite a abertura de inquéritos para apurar crimes cometidos contra a instituição e autoriza, nesse caso, a designação de um juiz para conduzir a apuração.

O papel da PGR

Um elemento chave dessa crise entre os poderes é a PGR, que tem a incumbência de investigar o presidente, mas parece rendida aos seus interesses. No início da semana passada, Bolsonaro deu um jeito de comparecer, de improviso e de última hora, na posse do novo procurador federal dos Direitos do Cidadão, Carlos Alberto Vilhena. 

O presidente ficou poucos minutos no local, tirou fotos e aproveitou a ocasião para mostrar afinidades com o procurador-geral Augusto Aras e elogiar o Ministério Público. Antes de comparecer à cerimônia, pediu autorização para Aras. “Se me permite a ousadia, se me convidar eu vou agora aí apertar a mão do nosso novo integrante desse colegiado maravilhoso da Procuradoria-Geral da República”, disse. Aras foi receptivo: “Estaremos esperando vossa excelência com a alegria de sempre”.

Apesar da aparente banalidade, o encontro, num momento em que PGR decide questões fundamentais para o futuro do governo, é uma desfaçatez. O presidente é investigado em um inquérito sob responsabilidade da PGR que apura a suspeita de interferência na PF, com base nas acusações feitas por Moro. Há duas semanas, Celso de Mello encaminhou a Aras três notícias-crime apresentadas no final de abril por políticos e partidos de oposição sobre suposta interferência de Bolsonaro na PF. 

Os pedidos foram feitos pelos deputados federais Gleisi Hoffman (PR) e Rui Falcão (SP), do PT, e pelas bancadas do PDT, PSB e PV. Aras, porém, não parece disposto a ceder ao pedido. Na sua avaliação não cabe a terceiros pedir a abertura de inquéritos ou medidas de investigação. Aras também deve preservar Weintraub de depor no STF e vetar a entrega dos celulares de Bolsonaro e Carlos para o tribunal.

Investigação das fake news revelou a existência de uma associação criminosa dedicada à disseminação de notícias falsas, ataques ofensivos a diversas pessoas, a autoridades e a instituições, com flagrante conteúdo de ódio

O encontro de Bolsonaro com Aras mostrou que o presidente perdeu qualquer escrúpulo para tentar se safar das investigações que afetam a ele e seus filhos. Como declarou na reunião ministerial, ele não vai deixar ninguém prejudicar sua família, ainda que isso custe a continuidade da democracia brasileira. No dia da operação das fake news, Aras deu uma nova demonstração de alinhamento total com Bolsonaro fazendo um pedido de suspensão do inquérito. 

O pedido foi encaminhado ao ministro Edson Fachin e cita, como argumento para suspensão, a ausência do Ministério Público na investigação. “Neste dia 27 de maio, a PGR viu-se surpreendida por notícias na grande mídia de terem sido determinadas dezenas de buscas e apreensões e outras diligências contra ao menos 29 pessoas, sem a participação, supervisão ou anuência prévia do órgão de persecução penal”, disse Aras. E prosseguiu: “Isso reforça a necessidade de se conferir segurança jurídica ao inquérito com a preservação das prerrogativas institucionais do Ministério Público de garantias fundamentais, evitando-se diligências desnecessárias que possam eventualmente trazer constrangimentos desproporcionais”.

Tanto a exposição do vídeo da reunião quanto a operação contra as fake news mostram que o STF está atento aos desmandos do governo e trata de conter avanços autoritários do presidente. Enquanto Bolsonaro tenta aparelhar o Estado brasileiro, em particular a PF, e defende a selvageria nas mídias sociais, o tribunal procura impor limites para suas vontades. Está claro que a democracia está em jogo e, nessa altura, o STF se apresenta com um campo de resistência e vira um antídoto para a vontade do mandatário, que tenta a todo custo defender seus filhos de participações em esquemas ilegais para se manter no cargo. 

Um dia antes da operação contra as fake news, a PF havia deflagrado outra operação, batizada de Placebo, contra o governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, cujo objetivo é desvendar um suposto esquema de mau uso de recursos públicos destinados ao combate do coronavírus. Houve buscas no Palácio Guanabara, numa casa usada pelo governador e no escritório de sua mulher, Helena Witzel. 

A operação contra Witzel, opositor do governo, teve ares de retaliação e buscou mostrar que agora quem manda na PF é Bolsonaro: seus adversários correm o risco de terem sua vida devassada a qualquer momento por uma investigação policial. Moraes mostrou, porém que a PF atende outras demandas e que a impunidade da família presidencial não está assegurada. Seja como for, a intenção de ruptura democrática segue firme na cabeça de Bolsonaro e de seus filhos.

A lição de Watergate

O caso Watergate, lembrado pelo ministro Celso de Mello na sua decisão de liberar os vídeos da reunião de Bolsonaro, foi uma das maiores crises políticas da história dos Estados Unidos. Ficou provado que o presidente Richard Nixon, do Partido Republicano, mandou invadir e espionar a sede do Partido Democrata, em Washington. Na ocasião, a Suprema Corte americana determinou que Nixon entregasse gravações em fita e outros materiais de natureza probatória no âmbito da investigação criminal da invasão. A espionagem foi revelada por dois jornalistas do Washington Post, Bob Woodward e Carl Berstein. O escândalo em torno do caso levou à renúncia do presidente em 1974.

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