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ISTO É - Edson Rossi
AUTOGOLPE - Sem capacidade para
aceitar o jogo democrático, Bolsonaro achincalha o Poder Judiciário e começa a
forçar uma ruptura institucional
O que tocou fundo
na família presidencial e nas hostes bolsonaristas, que começam a sugerir um
autogolpe de Estado, foi a deflagração de uma operação da Polícia Federal, na
quarta-feira 27, ordenada pelo ministro do STF Alexandre de Moraes, no âmbito
do inquérito das fake news, que, desde março de 2019, investiga ataques
orquestrados contra membros do tribunal.
A iniciativa de Moraes motivou 29
mandados de busca e apreensão em cinco estados e no Distrito Federal e atingiu
18 aliados do presidente, empresários e políticos, entre eles o próprio Allan
dos Santos, o presidente nacional do PTB, Roberto Jefferson, o dono da rede de
lojas Havan, Luciano Hang, o deputado Douglas Garcia (PSL) e a ativista de
direita Sara Winter, que ameaçou o ministro de agressão. “O senhor me aguarde,
Alexandre de Moraes, o senhor nunca mais vai ter paz na vida do senhor. A gente
vai infernizar sua vida”, afirmou. Moraes já pediu à Procuradoria Geral da
República (PGR) que tome providências sobre as ameaças de Sara.
A reação de
Bolsonaro ao saber da deflagração das operação contra seus apoiadores foi
descrita como “colérica”. Para o presidente, Moraes agiu com o objetivo de
atingir o seu governo e o filho 02, o vereador Carlos (Republicanos-RJ). Tanto
Carlos quanto Eduardo têm seus nomes atrelados à investigação das fake news.
Bolsonaro também tratou a decisão de Moraes como um ataque à democracia. “Ver
cidadãos de bem terem seus lares invadidos, por exercerem seu direito à
liberdade de expressão, é um sinal que algo de muito grave está acontecendo com
nossa democracia”, afirmou pelas redes sociais.
Embora o presidente reivindique
a liberdade de expressão, o inquérito que motivou a operação não tem nada a ver
com isso, mas com ameaças pela internet e distribuição de notícias falsas. Além
disso, Bolsonaro quer fazer crer que a democracia claudica, para “salvá-la”. “As coisas têm limite. Ontem foi o último dia
e peço a Deus que ilumine as poucas pessoas que ousam se julgar mais poderosas
que outros que se coloquem no seu devido lugar, que respeitamos”, disse
Bolsonaro em um pronunciamento em frente ao Palácio do Alvorada, um dia depois
da operação da PF. “E dizer mais: não podemos falar em democracia sem
judiciário independente, legislativo independente para que possam tomar
decisões. Não monocraticamente, mas de modo que seja ouvido o colegiado.
Acabou, porra”.
O ministro Luiz Fux, que assumiu o comando do STF durante o
afastamento de Dias Toffoli, internado com suspeita de Covid-19, disse que a
corte continua vigilante contra qualquer forma de agressão. Declarou também que
ofender a instituição representa “notório desprezo pela democracia” e saiu em
defesa do ministro Celso de Mello, decano do tribunal, a quem chamou de “líder
incansável desta Corte na concretização de tantos direitos e garantias
fundamentais dos cidadãos brasileiros”.
Crise sem precedentes
Os problemas entre
o governo e o STF subiram de tom, justamente, na sexta-feira 22, com a
liberação integral do vídeo da reunião ministerial que levou à demissão do
ex-ministro Sérgio Moro, por Celso de Mello. O conteúdo do vídeo escancarou
algumas das piores intenções do governo e abriu uma crise sem precedentes.
Confirmou as denúncias de Moro de que Bolsonaro pretende interferir na PF e
expôs alguns ministros, como Abraham Weintraub, da Educação. Weintraub chamou
os membros do STF de “vagabundos” e disse que deveriam ir para a cadeia.
Na sua
decisão, Mello comparou o esforço de Bolsonaro para esconder fatos que
colocariam sob suspeita sua eleição em 2018, com o do presidente americano
Richard Nixon para evitar um escândalo político e a própria renúncia no chamado
caso Watergate. O fato que o presidente escondeu foi uma investigação da PF do
caso das “rachadinhas”, que atinge seu filho 01, o senador Flávio
(Republicanos-RJ) e seu assessor Fabrício Queiroz.
Mello se referiu ao
Watergate como precedente jurídico para acabar com o sigilo do vídeo da reunião
ministerial. “Aquela alta Corte (dos EUA) acentuou que o chefe de Estado não
está acima da autoridade das leis da República”, disse Mello. Sua decisão
“deixou assentado que o presidente não pode proteger-se contra a produção de
processo criminal com fundamento na doutrina do privilégio executivo”.
© Divulgação |
RESISTÊNCIA - Os ministros Celso de Mello e Alexandre
de Moraes tomaram medidas que encurralaram o presidente
Além de determinar
a divulgação integral do vídeo, Celso de Mello encaminhou ao procurador-geral
da República, Augusto Aras, um pedido de apreensão dos celulares de Bolsonaro e
de Carlos, “o quanto antes, sob pena de que haja tempo suficiente para que as
provas sejam apagadas ou adulteradas”.
O STF intimou o ministro Weintraub a dar
explicações sobre suas manifestações contra o tribunal. O pedido de apreensão
dos celulares foi recebido com fúria pelo ministro do Gabinete de Segurança
Institucional (GSI), general Augusto Heleno, que divulgou uma Nota à Nação
Brasileira no dia seguinte em que afirmou que a medida “poderá ter
consequências imprevisíveis para a estabilidade nacional”, em mais uma ameaça
de golpe.
Para Heleno, o pedido de Celso de Mello é “inconcebível e, até certo
ponto, inacreditável” e seria também “uma afronta à autoridade máxima do Poder
Executivo e uma interferência de outro Poder na privacidade do presidente da
República e na segurança institucional do País”. Caberá ao procurador Augusto
Aras analisar o pedido do STF e decidir se os celulares serão entregues.
A farra das fake news
Apesar da reação
raivosa do presidente e de seus aliados, Alexandre de Moraes, considerou, no
inquérito das fake news, que “as provas colhidas e os laudos técnicos
apresentados apontaram para a existência de uma associação criminosa
dedicada à disseminação de notícias falsas, ataques ofensivos a diversas
pessoas, às autoridades e às instituições, dentre elas o Supremo Tribunal
Federal, com flagrante conteúdo de ódio, subversão da ordem e incentivo à
quebra da normalidade institucional e democrática”.
Além de Luciano Hang,
outros empresários suspeitos de financiar a máquina bolsonarista de fake news e
atingidos pelo inquérito são Edgard Corona, dono da rede de academias Bio
Ritmo, o militar Winston Rodrigues Lima e o humorista Reynaldo Bianchi Júnior.
Os quatro foram identificados em relatórios de investigação “como financiadores
de publicações e vídeos com conteúdo difamante e ofensivo ao STF, bem como
mensagens defendendo a subversão da ordem e incentivando a quebra da
normalidade institucional e democrática”.
Os empresários arrolados no inquérito
fazem parte do grupo Brasil 200, que “impulsiona vídeos e materiais contendo
ofensas e notícias falsas com o objetivo de desestabilizar as instituições
democráticas”. Oito deputados bolsonaristas foram alvos da operação da PF.
“Repito, não teremos outro dia igual ontem”, disse Bolsonaro. “Chega! Chegamos
no limite. Estou com as armas da democracia na mão”.
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Subversão - O
empresário Luciano Hang é acusado de financiar publicações com conteúdo
ofensivo aos juízes do tribunal
Além de espernear,
o governo pensa em várias medidas para se contrapor às iniciativas dos
ministros do STF. Bolsonaro acredita que a operação da PF teve o claro objetivo
de atingi-lo e convocou seus ministros para uma reunião de emergência para
planejar uma reação que envolve basicamente a desobediência às determinações
judiciais e o questionamento do tribunal com base da lei de abuso de autoridade.
Para Bolsonaro, seus familitares e os militares do governo, o STF está
ultrapassando os limites de suas atribuições.
Uma das orientações do presidente
é impedir que Weintraub preste depoimento no STF. Ficou definido que a
Advocacia-Geral da União (AGU) entrará com um pedido de habeas corpus para que
isso não ocorra. Outra ideia é determinar que Augusto Heleno não realize
diligências relacionadas ao pedido de impeachment do ministro que foi
apresentado ao STF e tem Celso de Mello como relator. Além disso, integrantes
do governo defendem que Bolsonaro insista na nomeação de Alexandre Ramagem para
a superintendência da PF com o intuito de desafiar a decisão de tribunal.
O
governo avalia ainda entrar com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) contra
a investigação das fake news e questionar Moraes e Mello por causa de excessos
cometidos em ações recentes.
Vários aliados do
governo questionaram a legalidade da operação contra as fake news. A iniciativa
tem o aval da Advocacia-Geral da União (AGU), órgão do Executivo que atua na
corte. Em um documento encaminhado ao STF em setembro do ano passado, a AGU
defendeu a legalidade das investigações e se posicionou de maneira oposta a um
pedido da Associação Nacional de Procuradores da República (ANPR) para
suspender imediatamente o processo com a alegação de que o inquérito “não
possui delimitações, sendo ilegalmente genérico e amplo”.
“Esse não é aquele
inquérito que a PGR Raquel Dodge pediu para arquivar, mas o ministro Alexandre
de Moraes não permitiu e deu continuidade?”, questionou Eduardo Bolsonaro.
“Achei que não existisse processo judicialiforme no Brasil. Não é o MP/PGR
titular da ação penal?”. Processo judicialiforme é aquele em que uma mesma
pessoa acusa e julga. Questiona-se o papel investigativo do STF, mas o tribunal
alega que seu regimento permite a abertura de inquéritos para apurar crimes
cometidos contra a instituição e autoriza, nesse caso, a designação de um juiz
para conduzir a apuração.
O papel da PGR
Um elemento chave
dessa crise entre os poderes é a PGR, que tem a incumbência de investigar o
presidente, mas parece rendida aos seus interesses. No início da semana
passada, Bolsonaro deu um jeito de comparecer, de improviso e de última hora,
na posse do novo procurador federal dos Direitos do Cidadão, Carlos Alberto
Vilhena.
O presidente ficou poucos minutos no local, tirou fotos e aproveitou a
ocasião para mostrar afinidades com o procurador-geral Augusto Aras e elogiar o
Ministério Público. Antes de comparecer à cerimônia, pediu autorização para
Aras. “Se me permite a ousadia, se me convidar eu vou agora aí apertar a mão do
nosso novo integrante desse colegiado maravilhoso da Procuradoria-Geral da
República”, disse. Aras foi receptivo: “Estaremos esperando vossa excelência
com a alegria de sempre”.
Apesar da aparente
banalidade, o encontro, num momento em que PGR decide questões fundamentais
para o futuro do governo, é uma desfaçatez. O presidente é investigado em um
inquérito sob responsabilidade da PGR que apura a suspeita de interferência na
PF, com base nas acusações feitas por Moro. Há duas semanas, Celso de Mello
encaminhou a Aras três notícias-crime apresentadas no final de abril por
políticos e partidos de oposição sobre suposta interferência de Bolsonaro na
PF.
Os pedidos foram feitos pelos deputados federais Gleisi Hoffman (PR) e Rui
Falcão (SP), do PT, e pelas bancadas do PDT, PSB e PV. Aras, porém, não parece
disposto a ceder ao pedido. Na sua avaliação não cabe a terceiros pedir a
abertura de inquéritos ou medidas de investigação. Aras também deve preservar
Weintraub de depor no STF e vetar a entrega dos celulares de Bolsonaro e Carlos
para o tribunal.
Investigação das fake news
revelou a existência de uma associação criminosa dedicada à
disseminação de notícias falsas, ataques ofensivos a diversas
pessoas, a autoridades e a instituições, com
flagrante conteúdo de ódio
O encontro de
Bolsonaro com Aras mostrou que o presidente perdeu qualquer escrúpulo para
tentar se safar das investigações que afetam a ele e seus filhos. Como declarou
na reunião ministerial, ele não vai deixar ninguém prejudicar sua família,
ainda que isso custe a continuidade da democracia brasileira. No dia da
operação das fake news, Aras deu uma nova demonstração de alinhamento total com
Bolsonaro fazendo um pedido de suspensão do inquérito.
O pedido foi encaminhado
ao ministro Edson Fachin e cita, como argumento para suspensão, a ausência do
Ministério Público na investigação. “Neste dia 27 de maio, a PGR viu-se
surpreendida por notícias na grande mídia de terem sido determinadas dezenas de
buscas e apreensões e outras diligências contra ao menos 29 pessoas, sem a
participação, supervisão ou anuência prévia do órgão de persecução penal”,
disse Aras. E prosseguiu: “Isso reforça a necessidade de se conferir segurança
jurídica ao inquérito com a preservação das prerrogativas institucionais do
Ministério Público de garantias fundamentais, evitando-se diligências
desnecessárias que possam eventualmente trazer constrangimentos
desproporcionais”.
Tanto a exposição
do vídeo da reunião quanto a operação contra as fake news mostram que o STF
está atento aos desmandos do governo e trata de conter avanços autoritários do
presidente. Enquanto Bolsonaro tenta aparelhar o Estado brasileiro, em
particular a PF, e defende a selvageria nas mídias sociais, o tribunal procura
impor limites para suas vontades. Está claro que a democracia está em jogo e,
nessa altura, o STF se apresenta com um campo de resistência e vira um antídoto
para a vontade do mandatário, que tenta a todo custo defender seus filhos de
participações em esquemas ilegais para se manter no cargo.
Um dia antes da
operação contra as fake news, a PF havia deflagrado outra operação, batizada de
Placebo, contra o governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, cujo objetivo é
desvendar um suposto esquema de mau uso de recursos públicos destinados ao
combate do coronavírus. Houve buscas no Palácio Guanabara, numa casa usada pelo
governador e no escritório de sua mulher, Helena Witzel.
A operação contra
Witzel, opositor do governo, teve ares de retaliação e buscou mostrar que agora
quem manda na PF é Bolsonaro: seus adversários correm o risco de terem sua vida
devassada a qualquer momento por uma investigação policial. Moraes mostrou,
porém que a PF atende outras demandas e que a impunidade da família
presidencial não está assegurada. Seja como for, a intenção de ruptura
democrática segue firme na cabeça de Bolsonaro e de seus filhos.
A lição de Watergate
O caso Watergate,
lembrado pelo ministro Celso de Mello na sua decisão de liberar os vídeos da
reunião de Bolsonaro, foi uma das maiores crises políticas da história dos
Estados Unidos. Ficou provado que o presidente Richard Nixon, do Partido
Republicano, mandou invadir e espionar a sede do Partido Democrata, em
Washington. Na ocasião, a Suprema Corte americana determinou que Nixon
entregasse gravações em fita e outros materiais de natureza probatória no
âmbito da investigação criminal da invasão. A espionagem foi revelada por dois
jornalistas do Washington Post, Bob Woodward e Carl Berstein. O escândalo em
torno do caso levou à renúncia do presidente em 1974.
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