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© AFP Moro pediu demissão após diretor-geral da PF
ser exonerado por Bolsonaro
O procurador-geral
da República, Augusto Aras, pediu nesta sexta-feira (24/04) autorização ao
Supremo Tribunal Federal (STF) para investigar as denúncias feitas pelo agora
ex-ministro da Justiça e da Segurança Pública, Sergio Moro, contra o presidente
Jair Bolsonaro. Ele quer aval da Corte para ouvir o ex-ministro e colher
possíveis provas. Nesta manhã, Moro
pediu demissão do cargo depois que Bolsonaro decidiu trocar o comando da
Polícia Federal. Ele justificou a saída do governo acusando o presidente de
estar intervindo politicamente no órgão. Segundo Moro, Bolsonaro quer um
diretor-geral na PF que lhe passe informações sobre investigações.
Ele disse ainda que
o presidente manifestou preocupação com a tramitação de inquéritos no Supremo
Tribunal Federal (STF). Há duas
investigações já em curso no STF com potencial de atingir a família
presidencial: uma investiga grupos que espalham notícias falsas nas redes
socias e outra apura a convocação dos atos antidemocráticos realizados no
domingo (19/04) pelo país.
Aras aponta na nova
solicitação ao STF a necessidade de investigar os possíveis crimes de
"falsidade ideológica, coação no curso do processo, advocacia
administrativa, prevaricação, obstrução de justiça, corrupção passiva
privilegiada, denunciação caluniosa e crime contra a honra", que podem ter
sido cometidos por Bolsonaro ou por Moro, caso a denúncia não se mostre
verdadeira. "A dimensão
dos episódios narrados revela a declaração de Ministro de Estado de atos que
revelariam a prática de ilícitos, imputando a sua prática ao Presidente da
República, o que, de outra sorte, poderia caracterizar igualmente o crime de
denunciação caluniosa", aponta o procurador-geral no pedido.
"Indica-se,
como diligência inicial, a oitiva de Sergio Fernando Moro, a fim de que
apresente manifestação detalhada sobre os termos do pronunciamento, com a
exibição de documentação idônea que eventualmente possua acerca dos eventos em
questão. Uma vez instaurado o inquérito, e na certeza da diligência policial
para o não perecimento de elementos probatórios, o procurador-geral da
República reserva-se para acompanhar o apuratório e, se for o caso, oferecer
denúncia", diz ainda Augusto Aras no documento.
Mais cedo, as
declarações de Moro foram consideradas "muito graves" pela OAB (Ordem
dos Advogados do Brasil), que está fazendo um estudo detalhado do
pronunciamento e de suas implicações jurídicas, inclusive de possíveis crimes,
segundo o presidente da entidade, Felipe Santa Cruz. Se ficar comprovado
que o presidente cometeu algum crime comum no exercício do cargo, ele poderá
ser denunciado ao STF por Aras. No entanto, a Constituição prevê que o Supremo
só pode dar andamento ao processo com autorização de dois terços da Câmara dos
Deputados. Caso isso ocorra e
o STF decida receber a denúncia, o presidente fica suspenso do cargo por até
180 dias enquanto é realizado o julgamento. Se for condenado, perde o cargo, da
mesma forma que ocorre ao fim de um processo de impeachment.
Possíveis crimes cometidos pelo
presidente
De acordo com
juristas ouvidos pela BBC News Brasil, caso as denúncias de Moro contra
Bolsonaro sejam comprovadas, as atitudes podem caracterizar crimes diferentes
dependendo das circunstâncias. Isso poderá ser esclarecido nessa investigação
solicitada por Aras. "Moro não deu
detalhes em seu discursos, sua declaração é cheia de lacunas, ainda há bastante
espaço para discussão sobre quais crimes seriam, mas estamos no campo dos
crimes contra a administração pública", explica Maurício Dieter, professor
de criminologia crítica da USP. "Uma coisa é certa: é preciso apurar os
fatos."
Um dos possíveis
crimes, segundo Dieter, poderia ser o de prevaricação, quando um agente público
deixa de praticar ou pratica, contra disposição expressa de lei, um ato de
ofício "para satisfazer interesse ou sentimento pessoal". Ou seja, se
Bolsonaro de fato interferiu na Polícia Federal com o objetivo de satisfazer um
interesse pessoal (como interferir nas investigações sobre seus filhos, por
exemplo), ele poderia estar praticando prevaricação.
Já segundo a
interpretação do professor Rogério Cury, da FGV (Fundação Getúlio Vargas), a
hipótese mais forte seria o crime de advocacia administrativa, quando alguém
"patrocina, direta ou indiretamente, interesse privado perante a
administração pública, valendo-se da qualidade de funcionário". Na interpretação de
Cury, esse crime seria, em tese, o praticado por Bolsonaro, segundo relato de
Moro, porque a nomeação do diretor da Polícia Federal era uma competência do
ministro, na qual Bolsonaro teria interferido — ou seja, Bolsonaro teria
tentado influir no ato praticado por outro agente público, não tentado obter
vantagem com um ato cometido por ele mesmo.
Outras hipóteses
levantadas pelos criminalistas são os crimes de tráfico de influência e de
atrapalhar uma investigação sobre crime organizado. "Se ele queria
atrapalhar uma investigação sobre o crime organizado, pode configurar crime de
atrapalhar a investigação, um crime que existe na lei sobre crime
organizado", explica Gustavo Badaró, professor de direito penal da USP. No ano passado,
veio a público que parentes de suspeitos de integrar a milícia de Rio das
Pedras, no Rio, trabalharam no gabinete da Assembleia Legislativa do Rio de
Janeiro do hoje senador Flávio Bolsonaro (sem partido) — ex-integrantes do
gabinete também eram alvo de investigação por suposto esquema de
"rachadinha" com os salários de funcionários.
Uso indevido da assinatura de Moro
Moro também disse,
em seu discurso, que foi surpreendido pela exoneração de Valeixo no Diário
Oficial — o documento foi publicado com a assinatura eletrônica do então
ministro, que diz não ter tido conhecimento do conteúdo antes da publicação. Além disso, segundo
relato de Moro, o texto não estaria correto: o documento diz que Valeixo foi
exonerado a pedido dele próprio, o que, segundo Moro, não ocorreu. Esses supostos atos
do presidente — usar uma assinatura digital do ministro sem sua autorização e
incluir uma informação falsa em documento publicado no Diário Oficial —
poderiam configurar crime de falsidade ideológica, segundo os criminalistas.
Falsidade
ideológica, diz o Código Penal, é "omitir, em documento público ou
particular, declaração que dele devia constar, ou nele inserir ou fazer inserir
declaração falsa ou diversa da que devia ser escrita, com o fim de prejudicar
direito, criar obrigação ou alterar a verdade sobre fato juridicamente
relevante".
Maurício Dieter
levanta a possibilidade Bolsonaro ter cometido um segundo crime, de
falsificação de documento público, definido como "falsificar, no todo ou
em parte, documento público, ou alterar documento público verdadeiro". Tudo isso
precisaria ser esclarecido por uma investigação e depende também da
interpretação do Ministério Público, responsável por apresentar processos
criminais à Justiça.
Crimes de responsabilidade
Além da
possibilidade de Bolsonaro ter cometido crimes comuns, segundo o relato de
Moro, há também a possibilidade de ter cometido crime de responsabilidade, pelo
qual poderia ser investigado e sofrer um impeachment. "(As ações)
deixam aberta a porta para caracterização de crime de responsabilidade,
primeiro passo para um processo de impeachment", afirma Dieter.
"Se comprovado
que ele agiu de modo incompatível com a dignidade, com a honra, e com o decoro
do cargo, ele poderia ter praticado um crime de responsabilidade", afirma
Cury. A opinião é
compartilhada por Badaró, para quem também é possível discutir a hipótese de
crime de responsabilidade.
Dieter explica que
a lei sobre crime de responsabilidade é muito vaga e aberta a interpretações, o
que torna difícil fazer afirmações mais contundentes sobre se os supostos atos
de Bolsonaro seriam ou não considerados crimes de responsabilidade.
"A lei dos
crimes de responsabilidade tem toda uma história hermenêutica (um histórico de
interpretações diferentes). Para caracterizar as pedaladas fiscais como crime
de responsabilidade (que levaram ao impeachment de Dilma Rousseff), por
exemplo, foi feita toda uma ginástica interpretativa", afirma Dieter.
Além disso, em
última instância, a abertura de impeachment é um processo mais político que
jurídico, e depende do quanto apoio o presidente tem no Congresso.
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