Anderson Tavares[1]
O coronavírus
agudizou tensões que já estavam em curso, adicionando um ingrediente
profundamente destrutivo no cenário político e econômico. O esgarçamento das
instituições burguesas ocorre, pelo menos, desde o golpe de 2016, quando as
classes dominantes resolveram pôr fim ao mandato constitucional de Dilma
Rousseff. Antes disso, a paralisia institucional fora imposta pelos derrotados
das eleições de 2014 e demais gângsteres da política, outrora aliados do petismo.
Nas campanhas pela destituição da presidente, um setor de extrema-direita
ganhou forma política, produziu líderes e se expressou politicamente na
candidatura de Jair Bolsonaro, em 2018.
A crise econômica,
agravada pela crise política, afundou o PIB do país em 2015 e 2016. Uma fraca
recuperação ocorreu entre 2017 e 2019, mas ainda longe de retomar o auge do
ciclo anterior à crise. As classes dominantes apresentaram as reformas como
ponto central para saída da crise, em especial a reforma trabalhista e da
previdência. A primeira entregue por Temer e a segunda por Bolsonaro.
Porém, já nos
primeiros meses de 2020, o cenário externo ruim (conflito comercial EUA/China,
guerra de preços do petróleo) não contribuía para melhora na atividade
econômica interna, ao contrário do anunciado por Paulo Guedes[2]. A acelerada
piora da economia mundial, já sob reflexo do efeito do coronavírus sobre Ásia,
Europa e EUA, e a necessidade de ampliação do orçamento federal para o combate
à pandemia levou à inédita suspensão dos controles da Lei de Responsabilidade
Fiscal desde a sua criação em 2000[3].
Nesse cenário, as
movimentações do governo, com medidas emergenciais em princípio, apontavam
apenas para o resgate do empresariado. As medidas de flexibilização trabalhista
se confirmaram com as MPs 927 e 936, permitindo a suspensão do contrato de
trabalho e redução de jornada e salário, em negociação individual, sem garantia
de participação dos sindicatos. Logo em seguida, a medida que criou o auxílio
aos informais fixada em R$ 200 e, depois das críticas, ampliada a R$ 600 e R$
1.200, dependendo do caso.
A cruzada de
Bolsonaro pela sua sobrevivência política, durante e depois da pandemia, define
o padrão político do cenário atual. Apesar das críticas de diferentes setores
às posições de Bolsonaro contra o isolamento social, na prática, ele está
sinalizando ao empresariado e a sua base social mais orgânica. Parece um
cálculo estreito, no qual cativa o apoio de setores fundamentais para sua
sobrevivência política. Nunca é demais lembrar que o impeachment contra Dilma
só decolou depois do apoio da FIESP e CNI. A oscilação entre o avanço e a
moderação, nas ações de Bolsonaro, remete a um constante jogo de forças frente
a militares, empresários e bolsonaristas mais orgânicos.
a) Apoio da grande
burguesia monopolista
Os diferentes
segmentos industriais têm pressionado o governo a garantir que suas atividades
não sofram com o isolamento social, sendo garantidas as condições de
funcionamento e de transportes para insumos e produção[4]. Em suma, cada
segmento da produção olhando para o seu próprio umbigo. A CNI defende a tese do
isolamento vertical e testagem em massa na indústria[5], algo que é difícil de
ser aplicado pela falta de testes e de capacidade de processamento dos mesmos.
A afinidade entre
empresariado e governo pôde ser observada na conferência virtual realizada no
dia 20 de março, entre o governo e um conjunto de grandes empresários, mediada
por Paulo Skaf (FIESP). Dentre as reivindicações, destacam-se as apresentadas
pelo presidente da General Motors na América do Sul, Carlos Zarlenga, que pediu
a garantia de liquidez e “muita flexibilidade no campo trabalhista”[6]. Não
coincidentemente, no dia 22 de março de 2020, foi baixada a MP 927[7] que,
dentre outras medidas, permite a suspensão do contrato de trabalho por até
quatro meses.
O atendimento da
solicitação pelo governo funciona como combustível de sustentação do governo
junto à grande burguesia monopolista. Não se trata apenas de segmentos menores
da burguesia, mas da conversão de partes de seu núcleo hegemônico, o grande
capital monopolista, à defesa aberta de aspectos da política da barbárie, de
defesa de seus lucros a qualquer custo contra a saúde da população. Isso se
reflete na posição ambígua quanto à adesão ao isolamento social, com uma parte
significativa se posicionando contrária e defendendo o isolamento vertical,
como demonstrado por Bortone e Hoeveler[8]. Bolsonaro tem uma base nada pequena
no conjunto do empresariado e diante da necessidade que o Estado atue tais segmentos
reforçam seu apoio mediante o atendimento de suas demandas. Por outro lado,
ainda há o segmento mais reacionário de empresários bolsonaristas que continuam
promovendo as “carreatas da morte”[9].
b) As divisões no
campo da direita
O bloco protofascista
(igrejas, milícias, forças armadas/polícias, setores empresariais
bolsonaristas), principal base social do atual governo, não está atuando
unificado em relação ao coronavírus. No Rio, por exemplo, o governador Wilson
Witzel disputa as mesmas bases e tem uma política deliberada de adesão aos
protocolos de isolamento, assim como João Dória em São Paulo.
O Congresso, sob a
liderança de Rodrigo Maia, atua como contraponto a Bolsonaro. Nesse sentido, é
a alternativa de poder institucional de curto prazo diante das irrupções do
presidente. Mantendo a aparência de estabilidade, Rodrigo Maia é projetado como
liderança consequente em meio à crise institucional. O papel de Maia aumenta
diante do virtual “governo por decreto”, via Medidas Provisórias, a que estamos
submetidos.
A crítica da mídia
corporativa ao governo e as frequentes manifestações pela saída de Bolsonaro
devem ser vistas pela ótica de que este setor perdeu recursos significativos
com esse governo em termos de propaganda oficial[10] e tem se constituído como
polo pensante das classes dominantes.
c) Militares: Golpe
ou Autogolpe?
O mês de março foi
marcado pelas insinuações golpistas do campo político de Bolsonaro: o motim da
PM do Ceará, as manifestações convocadas no 15 de março, a aproximação do 31/3
(tragicamente comemorados por militares saudosistas dos anos de chumbo) com
convocação para a porta dos quartéis. Havia, até então, o cenário para uma
aventura golpista de Bolsonaro, como bem analisado por Mauro Iasi[11].
Porém, a chegada da
pandemia do coronavírus no ocidente e no Brasil promoveu um fracionamento do
cenário com a possibilidade do impeachment do presidente em favor de seu vice
General Mourão[12] e a mais recente tutela militar sobre seu governo[13]. Essa
última movimentação promoveu uma mudança no cenário que foi o reposicionamento
das figuras ligadas às Forças Armadas. A notícia de que o General Braga Netto
assumiu o “Estado Maior do Planalto”, endossada por alguns[14] e contestada por
outros[15], admite observar com cuidado as movimentações recentes do Planalto a
partir das suas próprias demonstrações públicas. O formato da entrevista
coletiva diária passou a contar com o conjunto da equipe ministerial envolvida,
sendo mediada pelo General Braga Netto. Ex-chefe do Comando Militar do Leste,
esteve à frente da mais importante ação do Exército nos últimos anos, a
intervenção militar no Rio de Janeiro.
O tom moderado do
pronunciamento presidencial do dia 31/3 também é uma indicação que vai no mesmo
sentido das movimentações internas que envolvem as Forças Armadas. O uso dos
mesmos termos utilizados pelo Comandante do Exército, General Edson Pujol,
considerando o coronavírus um dos “maiores desafios da nossa geração”, sinaliza
esse arranjo. De quebra ganha a sinalização positiva do editorial de O Globo,
de 02/04/2020.
Considerando que a
eleição de Bolsonaro não foi um resultado apenas de sua própria iniciativa, mas
da coordenação de importantes figuras das Forças Armadas como o General Villas
Bôas, por exemplo, o predomínio desse segmento sobre o governo pode, ou não,
passar pela manutenção de Bolsonaro no governo. Ainda que Mourão possa ser
alternativa a médio prazo para certos segmentos das classes dominantes
incomodadas com as ações de Bolsonaro, as movimentações recentes reposicionam
as peças de apoio militar em torno da presidência e, mais que isso, defendendo
certa estabilidade, pois não parece haver disposição entre militares para uma
aventura golpista.
Numa sociedade de
classes, na qual o Estado possui autonomia relativa, não é possível compreender
as instituições estatais apenas pelos conflitos entre os “Poderes” ou entre as
diferentes agências de Estado. O elemento decisivo nesses momentos em que a
crise econômica se instala é a luta de classes. As disputas no seio das classes
dominantes, às quais se acrescenta o papel da burocracia militar, garantem o
equilíbrio momentâneo de forças. O governo conta com o apoio da grande
burguesia monopolista que, apesar de reticente, não abandonou o barco e segue
atendida pelas principais medidas de resgate do setor financeiro e de
flexibilização das leis trabalhistas.
Bibliografia
consultada:
– JOÃO ROBERTO
MARTINS FILHO. ORDEM DESUNIDA: Militares e política no governo Bolsonaro. v. 6,
2010.
– Mauro Iasi.
“Análise de Conjuntura”. <https://www.youtube.com/watch?v=eIsXM7Y-blg>
– Demian Melo.
“Militares na política bolsonarista: profissionalismo, golpismo e mitologia
liberal”.
<https://esquerdaonline.com.br/2020/03/28/militares-na-politica-bolsonarista/>
– Pedro Bado. “Quem
poderá dar o golpe no Brasil?”.
<https://pcb.org.br/portal2/25267/quem-podera-dar-o-golpe-no-brasil/>
[1] Professor de
história, militante do PCB e da Unidade Classista. Doutorando em História pelo
PPGH-UFF, participa do Grupo de Trabalho e Orientado coordenado pela Professora
Virgínia Fontes, grupo que vem desenvolvendo um conjunto de reflexões sobre o
contexto atual.
[2] “Crise surgiu
quando economia estava decolando.” Disponível em:
<https://valor.globo.com/brasil/noticia/2020/03/13/crise-surgiu-quando-economia-estava-decolando-diz-guedes.ghtml>
[3] Disponível em:
<https://g1.globo.com/economia/noticia/2020/03/29/guedes-defende-aprovacao-de-lei-de-emergencia-para-flexibilizar-lei-de-responsabilidade-fiscal.ghtml>
[4] Ver a posição do
setor siderúrgico em: <https://institutoacobrasil.net.br/site/noticia/posicionamento-da-industria-brasileira-do-aco-e-a-pandemia-de-covid-19novo-coronavirus/>
[5] Disponível em:
<https://noticias.portaldaindustria.com.br/noticias/economia/industria-propoe-isolamento-vertical/>
[6] Vídeo da
conferência disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=HjI8BX86r04>.
A fala de Carlos Zarlenga começa em 49:45.
[7] A medida permite
a suspensão do contrato de trabalho sem a garantia de manutenção do salário aos
trabalhadores ou obrigação de manutenção do emprego. Sofreu fortes criticas,
inclusive de Rodrigo Maia, presidente da Câmara. Apesar da sinalização de que
iria retirar a medida, ela ainda continua em vigor. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/Mpv/mpv927.htm>
Acesso em: 10/04/2020.
[8] Disponível em:
<https://esquerdaonline.com.br/2020/04/07/mercadores-da-morte-a-acao-empresarial-contra-o-isolamento-social/>
[9] Ver:
<https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2020/04/11/bolsonaristas-fazem-carreata-contra-doria-globo-e-china-nas-ruas-de-sp.htm>
[10] Ver:
<https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/04/gasto-do-governo-federal-com-publicidade-cresce-e-record-supera-globo.shtml>
[11] Disponível em:
<https://blogdaboitempo.com.br/2020/03/13/o-31-de-marco-de-jair-bolsonaro/>
[12] Ver:
<https://www.infomoney.com.br/politica/sete-pedidos-de-impeachment-de-jair-bolsonaro-foram-protocolados-na-camara-nesta-semana/>
[13] O artigo que
reforçou essa hipótese foi: “Braga Neto assume Estado-Maior do Planalto” Disponível
em:
<http://www.defesanet.com.br/ncd/noticia/36301/Exclusivo—Gen-Braga-Neto-Assume-o-Estado-Maior-do-Planalto/?fbclid=IwAR3tGTJQ5nm5KOXeLwMUnRrh8EQeOhPAEroqMS8WqSlcBO-p1VA2E7NqR6o>
Quem também aponta a hipótese de “tutela militar” é Demiam Melo, em “Militares
na política bolsonarista: profissionalismo, golpismo e mitologia liberal”.
[14] Ver:
<https://www.brasil247.com/blog/temos-talvez-um-presidente-operacional>
[15]
https://www.sociedademilitar.com.br/wp/2020/04/braga-neto-e-sua-nova-funcao-de-presidente-operacional-interpretacoes-grotescas.html
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