Por Marina Amaral,
da AGÊNCIA PÚBLICA
Vladimir Safatle é filósofo e professor livre-docente da Universidade de São Paulo (Caio Castor/Agência Pública)
O Estado brasileiro tem todas as
condições para lidar com a crise
do coronavírus, protegendo a população. Mas o Brasil não tem como
enfrentar a pandemia com Jair Bolsonaro na presidência do país.
Para o filósofo Vladimir Safatle, professor
livre-docente da Universidade de São Paulo, o presidente “potencializa a crise”
ao travar e desarticular as medidas de combate à epidemia e proteção às
pessoas, o que deve motivar a maioria da população a se mobilizar “de forma
horizontal” pelo impeachment do presidente.
“Uma coisa que poderia nascer dessa
experiência de uma luta coletiva contra a pandemia é um afeto político fundamental,
de solidariedade genérica: ‘minha vida depende de pessoas que eu nem sei quem
são’. Elas não parecem comigo, não fazem parte do meu grupo, e essas pessoas
são fundamentais; o que demonstra que nós temos um destino coletivo. Só que a
esquerda, de tão presa que ela está em outro tipo de pauta, não consegue
vocalizar uma pauta de solidariedade genérica universal”, diz o filósofo que
assinou uma proposição de três deputados do PSOL que obteve mais de 1 milhão de
assinaturas pelo impeachment do presidente. A direção do partido criticou
publicamente a iniciativa.
Confira a entrevista de Safatle, que
também falou sobre o trauma da sociedade diante da impossibilidade de enterrar
seus mortos e dos cenários que imagina no Brasil e no mundo depois da pandemia.
No caos em que estamos com a pandemia do
coronavírus se acelerando, o senhor tem defendido o impeachment do presidente
Bolsonaro. O senhor acha que temos condição de viver um processo como esse em
um momento em que estamos fechados em casa e o Congresso trabalha a distância,
ocupado com as medidas de combate à pandemia?
Acho que a única coisa sensata a
fazer nessa condição exatamente de pandemia é lutar pelo impeachment porque
ficou claro que o Brasil não tem condições de gerir duas crises ao mesmo tempo
– e o Bolsonaro é uma crise ambulante. Ele trava todas as medidas, desarticula
todas as medidas, mobiliza setores da população para que burlem as medidas que
são necessárias para contenções mínimas e ele aproveita essa situação para
criar um sistema de destruição de qualquer possibilidade de garantias da classe
trabalhadora, da classe mais desfavorecida.
Essa MP, a flexibilização de demissões em uma situação como essa, os trabalhadores terem até 70% do seu salário reduzido, isso mostra como ele potencializa a crise, ele multiplica a crise. O Brasil não tem a menor condição de suportar isso por mais tempo.
Essa MP, a flexibilização de demissões em uma situação como essa, os trabalhadores terem até 70% do seu salário reduzido, isso mostra como ele potencializa a crise, ele multiplica a crise. O Brasil não tem a menor condição de suportar isso por mais tempo.
Sobre mobilização: só uma ação feita
por três deputados do PSOL, completamente minoritários, foi capaz de levantar 1
milhão de assinaturas que foram entregues pela deputada Fernanda Melchionna
(PSOL-RS) ao presidente da Câmara, deputado Rodrigo Maia. As últimas pesquisas
que temos, do Atlas Político, dá que 47% são a favor do impeachment e isso sem
nenhuma mobilização. Você pode imaginar o que aconteceria se todos os setores
oposicionistas, ou pelo menos todos os setores de esquerda, tivessem uma
mobilização contínua? Esse grupo [a favor do impeachment] aumentaria substancialmente,
fazendo com que você tivesse uma força muito clara, por um lado.
E por outro, você pode não conseguir botar gente na rua mas há vários outros dispositivos pra pressionar o governo, pra mostrar pra um governo que ele não tem mais nenhuma legitimidade de cobrança. Greve geral, recusas em colaborar em diversos níveis, desobediência civil. O problema é que a esquerda não tem mais nenhuma gramática de combate.
E por outro, você pode não conseguir botar gente na rua mas há vários outros dispositivos pra pressionar o governo, pra mostrar pra um governo que ele não tem mais nenhuma legitimidade de cobrança. Greve geral, recusas em colaborar em diversos níveis, desobediência civil. O problema é que a esquerda não tem mais nenhuma gramática de combate.
Em seu artigo no El País o senhor
também disse: “os que falam que o momento é cedo para um pedido de impeachment,
que é necessário compor calmamente com todas as forças, diria que isto nunca
ocorrerá. A esquerda brasileira já se demonstrou, mais de uma vez, estar em uma
posição de paralisia e esquizofrenia.” Vimos a disputa dentro do próprio PSOL
por essa questão e não há progressos na ideia de uma frente ampla de esquerda.
Então quem lideraria este movimento pelo impeachment?
De fato, esse é um ponto central.
Aliás, eu não diria mais que a esquerda brasileira está paralisada, eu diria
que ela morreu. Nesse processo de combate aos descalabros do governo federal
quem tomou a frente nem foi a esquerda, quem tomou a frente da oposição foram
os governos de São Paulo e do Rio. O Dória e o Witzel. A política brasileira se
resume a uma luta entre a direita e a extrema direita. Não há mais esquerda
simplesmente. Acho que essa questão do coronavírus demonstrou isso de maneira
pedagógica. A esquerda é completamente irrelevante.
O que aconteceu no PSOL também acho um exemplo claríssimo disso. Um partido que vai à imprensa desautorizar deputados que tomam uma iniciativa pelo impeachment, que é popular – isso é uma espécie de atestado de óbito da esquerda no sentido mais forte do termo. Então, esse é o problema mais sério: não é só uma questão de quem vai liderar o impeachment, mas o que você faz com a oposição daqui pra frente.
O que aconteceu no PSOL também acho um exemplo claríssimo disso. Um partido que vai à imprensa desautorizar deputados que tomam uma iniciativa pelo impeachment, que é popular – isso é uma espécie de atestado de óbito da esquerda no sentido mais forte do termo. Então, esse é o problema mais sério: não é só uma questão de quem vai liderar o impeachment, mas o que você faz com a oposição daqui pra frente.
A esquerda foi a reboque de todas as
decisões, não teve capacidade de tensionar nenhum processo, de colocar uma
pauta ou algo parecido, e acho que tem coisas muito mais profundas aí, né?
Porque uma coisa que poderia nascer dessa experiência de uma luta coletiva
contra a pandemia era um afeto político fundamental de solidariedade genérica.
Uma solidariedade que demonstra muito claramente: ‘minha vida depende de
pessoas que eu nem sei quem são’. Que não parecem comigo, que não fazem parte
do meu grupo, que não têm minha identidade, e essas pessoas são fundamentais;
nós temos um destino coletivo.
Só que a esquerda, de tão presa que
ela está em outro tipo de pauta, não consegue vocalizar uma pauta de
solidariedade genérica universal. Ela tem medo até de falar uma coisa dessa.
Então, pelo menos no Brasil, essa capacidade da esquerda de reorientar as discussões
a partir da experiência coletiva de algo como essa epidemia é pequena.
Dentro do próprio governo, vemos divergências em
relação à gravidade da epidemia e à maneira correta de se conduzir. Hoje está
nos jornais mais uma vez o conflito entre Bolsonaro e o ministro Mandetta e
muitos analistas atribuíram aos militares a “domesticação” parcial do discurso
do presidente na terça. O senhor acha que essas rupturas internas podem
favorecer o impeachment
Então, é difícil saber, algumas
rupturas são mais evidentes; entre um setor um pouco mais técnico e o núcleo
ideológico do governo. Agora, entre o governo e as Forças Armadas é difícil
saber se tem algum tipo de tensão. A minha tendência é acreditar que, bem, o
Bolsonaro fez duas apostas, né? A primeira é de que ele é capaz de esconder os
corpos. O seu DNA de torturador, de porão da ditadura militar, de amante do
Ustra, faz com que ele acredite que ele pode fazer o que normalmente se faz no
Brasil que é desaparecer corpos, esconder mortes, fazer com essa pandemia passe
mais ou menos incólume, quer dizer, ele acha que é capaz de fazer isso.
A gente vai ver se isso vai ser possível ou não. E quando vier a crise econômica ele coloca tudo nas costas dos governos estaduais, dizendo que ele insistiu pra não fazer isso, ou ele tenta minar de uma vez e dar ouvidos ao setor do empresariado que o apoia, um setor genocida, não tem outro nome pra descrever isso.
No mundo todo esse setor é execrado, eu diria mesmo, que eles são suicidas no sentido dos imperativos econômicos que eles dizem defender. Basta fazer um raciocínio simplório: se a gente suspender o confinamento, veja como vai ser daqui a cinco meses. A gente vai ter montanha de mortos pra todos os lados, o governo vai tentar esconder, vai ter censura a divulgação de mortes, mas a opinião pública internacional não é tonta, ela vai saber. E o que ela vai fazer? Com todos esses países saindo do confinamento depois de uma experiência dramática, a primeira coisa que eles vão fazer é colocar um cordão sanitário pro Brasil. Quem é que vai querer comprar carne brasileira em uma país totalmente contaminado?
A gente vai ver se isso vai ser possível ou não. E quando vier a crise econômica ele coloca tudo nas costas dos governos estaduais, dizendo que ele insistiu pra não fazer isso, ou ele tenta minar de uma vez e dar ouvidos ao setor do empresariado que o apoia, um setor genocida, não tem outro nome pra descrever isso.
No mundo todo esse setor é execrado, eu diria mesmo, que eles são suicidas no sentido dos imperativos econômicos que eles dizem defender. Basta fazer um raciocínio simplório: se a gente suspender o confinamento, veja como vai ser daqui a cinco meses. A gente vai ter montanha de mortos pra todos os lados, o governo vai tentar esconder, vai ter censura a divulgação de mortes, mas a opinião pública internacional não é tonta, ela vai saber. E o que ela vai fazer? Com todos esses países saindo do confinamento depois de uma experiência dramática, a primeira coisa que eles vão fazer é colocar um cordão sanitário pro Brasil. Quem é que vai querer comprar carne brasileira em uma país totalmente contaminado?
Isso é uma coisa completamente
primária, isso demonstra como o empresariado nacional é de uma estupidez
indescritível. Só justifica devido à sua matriz escravagista, que nunca foi
superada. Eles pensam como quem está gerenciando um engenho de escravos. Morre
dois ou três escravos? Não é por isso que o engenho vai parar.
Normalmente eles usavam essa lógica
pra submeter uma parte da população; a classe trabalhadora vulnerável, ligada à
raça negra, agora a diferença é que eles estão submetendo a população inteira a
essa lógica escravagista.
Incluindo os outros membros da elite?
O contágio é democrático, não vê
classe, não vê nada, por isso digo que é uma lógica completamente suicidária do
Estado brasileiro. Se eu estou entendendo bem, o setor que detém os meios de
produção ainda o apoia por causa desse DNA escravagista que nunca vai sair
deles, que vem de geração a geração. Agora, ao que parece mesmo na classe alta
você teve rupturas, né? Estava vendo uma pesquisa e 55% [dos entrevistados] que
ganha acima de 10 salários mínimos, que era a base de apoio dele, é contra as
medidas que o Bolsonaro está tomando. Isso produz efeitos.
Volto a insistir: você tem uma
situação perfeita pra depor o governo e pra salvar a população brasileira. Pra
criar uma política eficaz no combate a essa pandemia, que permita à classe
trabalhadora ficar em casa sem trabalhar nesses três meses, porque os empregos
estão garantidos, os salários estão garantidos, essa parte da população que
vive em grande densidade seria possível acomodar em hotel, tudo isso seria
possível. O Estado brasileiro tem condição de fazer isso desde que ele vá atrás
de quem pode realmente contribuir. A princípio só o cálculo de imposto sobre
grandes fortunas é pelo menos 80 bilhões de reais. Mas isso nem é pensado. A
gente teve 13 anos de governo de esquerda e uma questão como essa nem foi
colocada então as pessoas nem lembram que isso é possível.
Voltado àquela questão do desaparecimento dos
corpos que o senhor falou, eu lembrei que o Bolsonaro ficou muito irritado com
aquela foto no Washington Post do cemitério de Vila Formosa, com aquelas
fileiras e fileiras de covas recém-abertas. O senhor acha esse papel da
imprensa, de mostrar o que está acontecendo está sendo importante nesse
momento?
Sim, a imprensa subiu dois tons
contra o governo porque eles perceberam o caráter suicida do governo. E um cara
totalmente autoritário que se volta inclusive contra a própria imprensa. Isso é
um clássico na imprensa brasileira, eles apoiam a pior alternativa e depois
descobrem que fizeram uma péssima escolha. Como eles apoiaram a ditadura
militar, e a uma certa altura isso se volta contra a imprensa. Eu penso que,
aos poucos, a imprensa brasileira tenta um pouco dramatizar, no bom sentido,
dar uma narrativa na forma de drama para que as pessoas possam sentir e se
atentar para a realidade do processo. Ela está aprendendo a fazer isso porque
ela nunca fez.
Trump mudou de atitude nesta semana depois de confrontado
com a gravidade e a abrangência da epidemia nos EUA. Por que Bolsonaro continua
se comportando de maneira cega e destrutiva? Por que é tão difícil para ele
deixar de lado a luta ideológica e assumir a responsabilidade de combater a
doença e amparar a população com políticas sociais emergenciais?
São pessoas que vem de horizontes
completamente distintos, né? Trump é um empresário, uma pessoa de marketing, e
ele sabe que não pode esconder os corpos. Não é esse o histórico da gestão de
guerras nos Estados Unidos. E ele tem uma eleição em novembro então sabe que
tem que fazer alguma coisa.
O Bolsonaro vem dos porões da
ditadura militar. Ele está ligado a setores de tortura, ele está ligado a
milícias, ele está ligado a um poder paralelo. Ele é um ditador fascista, não
tem outro nome, vindo dos setores mais baixos do Exército. Ele vem dessa
formação, traz essa lógica de que é possível usar uma estrutura pra
descredenciar e desqualificar informações. Ele não tem interesse em governar
nada, ele nunca quis governar o Brasil, ele já fala que o Brasil é
ingovernável…A questão dele é fazer um processo de mobilização contínua então
ele faz esse cálculo: o que eu faço pra mobilizar? Mesmo que isso crie pilhas
de corpos. Pra ele isso não faz a menor diferença.
Pra uma pessoa que disse que deveriam ter matado 30 mil pessoas na ditadura, que mataram pouco, isso aí tanto faz, se são 40 mil, 50 mil. Lembra qual foi a reação dele quando rompeu a barragem de Brumadinho? Qualquer estudante de semiótica percebe isso claramente. A reação inicial dele foi: ‘não é responsabilidade do governo’. Ponto. Não foi uma reação nem de ter aquela hipocrisia clássica da classe política, de se mostrar sensibilizado com as mortes, de chorar com os parentes dos mortos, nem isso.
Pra uma pessoa que disse que deveriam ter matado 30 mil pessoas na ditadura, que mataram pouco, isso aí tanto faz, se são 40 mil, 50 mil. Lembra qual foi a reação dele quando rompeu a barragem de Brumadinho? Qualquer estudante de semiótica percebe isso claramente. A reação inicial dele foi: ‘não é responsabilidade do governo’. Ponto. Não foi uma reação nem de ter aquela hipocrisia clássica da classe política, de se mostrar sensibilizado com as mortes, de chorar com os parentes dos mortos, nem isso.
Imaginar que uma pessoa como essa vai
entender o que significa uma pandemia é um absurdo completo.
Li um artigo do senhor publicado no jornal GGN em
que o senhor diz: “O fascismo brasileiro e seu nome próprio, Bolsonaro,
encontraram enfim uma catástrofe para chamar de sua.” Como uma pandemia, uma
situação de crise, pode favorecer um governante? O que há de positivo pra ele
nisso?
Primeiro, a possibilidade de
mobilização contínua de seus apoiadores; segundo, essa é uma tese que vem de
alguns teóricos do fascismo, como a Hanna Arendt, o Adorno, de que existe um
desejo de catástrofe no fascismo. Porque não é um governo, é um movimento
contínuo. Por exemplo, uma guerra fascista não é uma guerra de conquista, é uma
guerra feita pela guerra, que não pode parar em hipótese alguma; do ponto de
vista da lógica da conquista, é uma guerra irracional porque é uma mobilização
da população pela guerra, não uma guerra como forma de alcançar algo.
Então, você prende uma parte da população numa dinâmica onde esse movimento pode se voltar até contra as pessoas, ir no sentido da autodestruição. A Hannah Arendt tem uma colocação interessante, quando ela fala que nem mesmo quando o movimento nazista ia contra os seus apoiadores, esses apoiadores paravam de apoiá-lo.
Então, você prende uma parte da população numa dinâmica onde esse movimento pode se voltar até contra as pessoas, ir no sentido da autodestruição. A Hannah Arendt tem uma colocação interessante, quando ela fala que nem mesmo quando o movimento nazista ia contra os seus apoiadores, esses apoiadores paravam de apoiá-lo.
Como acontece agora quando as pessoas sabendo que
estão correndo risco…
Isso, isso. Tem uma lógica de certeza
delirante. Qualquer pessoa normalmente pensaria: ‘ok, essa pandemia é uma coisa
que ninguém nunca viu’, então há uma incerteza a respeito dela. O que significa
governar a partir da incerteza? Desde os gregos a gente sabe que numa situação
de incerteza, a virtude que se espera é a prudência. E o que é a prudência?
‘Bem, eu não sei se o pior cenário vai se realizar, mas se isso acontecer, não
tem volta’. As pessoas mortas não vão ressuscitar. Se o melhor cenário se
realiza, posso travar a economia por um tempo, mas ela se recupera.
Então, por prudência, você trabalha com o pior cenário. Isso é uma virtude de governo, quando você quer governar mesmo, você reconhece a incerteza de estar diante de um acontecimento difícil de ser previsto e desenvolve toda a sua estrutura para evitar o pior cenário. E o Bolsonaro faz exatamente o inverso. Ele usa um tipo de certeza arrogante delirante, e diz: ‘eu sei’, mas ninguém sabe o que vem.
Então, por prudência, você trabalha com o pior cenário. Isso é uma virtude de governo, quando você quer governar mesmo, você reconhece a incerteza de estar diante de um acontecimento difícil de ser previsto e desenvolve toda a sua estrutura para evitar o pior cenário. E o Bolsonaro faz exatamente o inverso. Ele usa um tipo de certeza arrogante delirante, e diz: ‘eu sei’, mas ninguém sabe o que vem.
A gente tem as projeções, que são
projeções, podem se realizar ou não. A ciência tem essa característica, a
ciência é o domínio da incerteza, não é o da segurança. Então a única coisa
racional a se fazer, como governante, é trabalhar com o pior cenário. E quando
o sujeito faz o que ele faz, o que demonstra? Demonstra que conseguiu colocar
uma parte da população em uma lógica de auto-imolação, de auto-sacrifício.
Em uma lógica sacrificial, ‘eu vou ter coragem e vou lá trabalhar ser submetido às piores condições do mundo’, como se isso fosse alguma expressão de coragem enquanto é pura idiotice. Voltando aos gregos, eles sabiam fazer a distinção entre a coragem e a temeridade. Coragem é uma virtude mas o excesso de coragem é simples estupidez. É se colocar em uma condição onde com certeza você vai sofrer as piores consequências.
Em uma lógica sacrificial, ‘eu vou ter coragem e vou lá trabalhar ser submetido às piores condições do mundo’, como se isso fosse alguma expressão de coragem enquanto é pura idiotice. Voltando aos gregos, eles sabiam fazer a distinção entre a coragem e a temeridade. Coragem é uma virtude mas o excesso de coragem é simples estupidez. É se colocar em uma condição onde com certeza você vai sofrer as piores consequências.
Por isso que eu digo: é uma lógica
suicidária, e isso é um dado novo. Não adianta falar ‘isso aí está bem
descrito, na situação do estado burguês’ ou coisa parecida. Isso não é verdade.
Isso é um dado novo que aparece raramente. A gente tem uma estrutura
necropolítica, que é uma gestão das mortes que vem de uma sociedade
escravagista, onde uma parte dos sujeitos são considerados coisas, não pessoas,
então, se eles morrem, não tem luto, não tem dor, não tem nada.
Isso sempre esteve presente na sociedade brasileira, dependendo de quem morre é um número, não é uma pessoa, não é uma história. Só que agora tem um dado diferente: o Estado, ele generaliza esse processo. E ele cria uma situação em que ele também vai em direção a uma catástrofe. O Estado brasileiro está indo em direção a uma catástrofe. O que vai acontecer se isso realmente se realiza? A pessoa vai pro trabalho e não sabe se vai voltar viva.
Isso sempre esteve presente na sociedade brasileira, dependendo de quem morre é um número, não é uma pessoa, não é uma história. Só que agora tem um dado diferente: o Estado, ele generaliza esse processo. E ele cria uma situação em que ele também vai em direção a uma catástrofe. O Estado brasileiro está indo em direção a uma catástrofe. O que vai acontecer se isso realmente se realiza? A pessoa vai pro trabalho e não sabe se vai voltar viva.
E o senhor acha que, mesmo assim, se não houver um
movimento forte pelo impeachment, o governo Bolsonaro pode sobreviver à
pandemia? Ou até se fortalecer?
Uma parte da população que entra
nessa lógica, ela não sai. Não tem como sair. Esse setor que chegou com ele até
esse ponto, não vai abandoná-lo. Ele vai morrer com ele, mas não vai
abandoná-lo. Não é à toa que vários desses estudiosos, quando eles falavam do
fascismo, eles tendiam a caracterizá-lo como uma lógica paranóica. E isso não
era uma metáfora, a analogia era frutífera porque você tinha essa mobilização
desse delírio de grandeza, perseguição, e você tinha essa certeza delirante que
é impossível de ser modificada pela experiência.
Não tem nada na experiência que possa abalá-la. Tem que entender isso de uma vez. Com esse setor não tem nenhuma possibilidade de diálogo. Qualquer tentativa de criar diálogo é um suicídio pro resto. E não tem uma estrutura de mobilização do resto, é isso que é necessário. Que é a maioria. Nós somos a verdadeira maioria. A gente não consegue nem assumir isso.
Não tem nada na experiência que possa abalá-la. Tem que entender isso de uma vez. Com esse setor não tem nenhuma possibilidade de diálogo. Qualquer tentativa de criar diálogo é um suicídio pro resto. E não tem uma estrutura de mobilização do resto, é isso que é necessário. Que é a maioria. Nós somos a verdadeira maioria. A gente não consegue nem assumir isso.
E o senhor acha que essa maioria é capaz de se
mobilizar mesmo sem uma liderança partidária?
É, ela vai ter que aprender a fazer
isso porque agora é uma questão de vida ou morte. E, diga-se de passagem, isso
seria salutar porque as estruturas partidárias brasileiras não se mostraram à
altura dos desafios do país. E não é só hoje. Então, que um tipo de estrutura
horizontal apareça, é absolutamente fundamental. Tudo isso que está acontecendo
agora, por exemplo, eu estou numa região onde tem panelaço há dez, onze dias,
tudo absolutamente espontâneo e não tem uma organização por trás. Isso
demonstra muito claramente que tem uma sociedade em resistência contra o
governo, sem que ninguém consiga vocalizar isso. Talvez não se tenha
consciência do nível do drama que o país se colocou. Hoje os únicos países que
têm esse tipo de situação são Brasil, Bielorrússia e Turcomenistão. Olha onde a
gente foi parar!
Fazendo uma pergunta mais geral, além do Brasil, a
gente tem visto que famílias do mundo todo não estão podendo se despedir de
seus mortos, sequer fazer as cerimônias fúnebres. Como filósofo, que peso
simbólico o senhor acredita que isso tem para a sociedade?
Uma sociedade se define a partir da
maneira com a que ela lida com os seus mortos. Esse é o verdadeiro fundamento
da vida social. Os gregos sabem desde Antígona. A sociedade que expulsa o
ritual de memória, dos seus mortos, ela não consegue mais sobreviver.
Independente de quem sejam os mortos. O que funda a universalidade é o direito
de memória; todos têm direito de memória. E você criar essa situação, de ser
obrigado a enterrar sem ritual, sem presença, sem nada, isso vai trazer um
trauma social enorme. A gente vai sentir o que isso significa. O que minora
essa situação é você saber que essa supressão não é em vão, que você faz isso
por solidariedade social. Você não quer se infectar, mas você não quer infectar
outros. Agora nos países em que você não tem nem isso, os infectados são losers,
é quase isso. Mas como assim você morreu disso? É uma gripezinha!
É, a gente fez uma reportagem sobre o linchamento
virtual dos que têm a Covid-19 e até a casa de uma pessoa que foi apedrejada…
São comportamentos medievais que são
potencializados por construção do governo. Claro, toda sociedade tem sua
dinâmica regressiva. Se você tivesse o discurso que temos aqui na Noruega,
teríamos comportamentos parecidos. Porque você libera a dimensão regressiva da
sociedade. Legitima essa dimensão. Por isso que eu digo: é impossível gerir
esse processo com esse governo.
O senhor acredita que um mundo diferente vai
emergir da pandemia?
Sim, a única questão é qual. Existem
vários cenários e é difícil saber para onde a coisa vai. Por exemplo, você tem
um cenário possível, que é o fortalecimento da extrema direita e do fascismo.
Mais em um modelo europeu, onde a extrema direita é antiliberal do ponto de
vista da economia; não é uma extrema direita ultraliberal como no Brasil. Então
lá pode haver um fortalecimento do Estado de proteção social, que deve circular
cada vez mais, e a extrema direita pode juntar a isso o fortalecimento das
fronteiras e das nacionalidades. Então, isso pode dar força pra extrema
direita.
Outro cenário: o modelo neoliberal
anglo-saxão, esse da Thatcher, do Reagan, da escola de Chicago, esse que é
implementado no Brasil, vai entrar em colapso. Isso é claro porque ele já está
em colapso; isso demonstra como uma pandemia como essa reconstitui a noção de
governo. Porque ela não vai ser a última, vão ter várias outras, isso é só a
primeira. Então você vai precisar de estruturas de governo para dar conta
desses processos. E essas estruturas exigem um tipo de coesão social e
intervenção estatal que o neoliberalismo no modelo de Chicago é incapaz de
lidar.
Só que aí vem uma outra coisa, porque o neoliberalismo tem três espaços de aplicação inicial: um, Estados Unidos, Inglaterra, no modelo Thatcher/Reagan; outro, o Chile de Pinochet, mas também o modelo alemão, dos liberais do final da 2a Guerra, que criaram a economia social de mercado. E essa ficou, e funcionou.
Só que aí vem uma outra coisa, porque o neoliberalismo tem três espaços de aplicação inicial: um, Estados Unidos, Inglaterra, no modelo Thatcher/Reagan; outro, o Chile de Pinochet, mas também o modelo alemão, dos liberais do final da 2a Guerra, que criaram a economia social de mercado. E essa ficou, e funcionou.
Tanto que a Alemanha, de todos os países europeus, foi
quem melhor conseguiu lidar com a situação; o índice de mortes é extremamente
baixo. Então é possível que o modelo alemão – que vem lá dos anos 1930 e
conjuga neoliberalismo e dinâmicas de intervenção e proteção – ganhe força. E
isso pode ocorrer no Brasil, uma parte da direita vai deslocando pra esse
modelo alemão, Armínio Fraga, esse pessoal, eles querem fazer um pouco isso.
Esse é o segundo cenário.
E você tem um terceiro cenário que é de fato o
Brasil entrar em uma dinâmica de transformação efetiva, levando em conta a
incapacidade completa do governo. E aí você sensibiliza mais as pessoas pro
processo de desigualdade, de injustiça social, e aí um processo de esquerda
pode ganhar força. Mas, nesse cenário brasileiro é possível também que em uma
situação como essa a gente tenha um golpe, a decretação de um estado de sítio.
É difícil saber, se isso acontecer, quanto vai durar, como vai ser, mas é um
cenário que está na mesa também.
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