Jair Bolsonaro dá “banana” a jornalistas no Palácio da Alvorada. Ele
escolheu esta imagem para divulgar o desmentido da informação, noticiada
inclusive por John Roberts, da insuspeita FoxNews (com Eduardo Bolsonaro como
fonte), de que ele havia testado positivo para COVID-19.
O que Bolsonaro
precisa é de uma guerra, ou ao menos algo que pareça uma guerra. Os
venezuelanos já sabem, Trump já sabe… Os brasileiros ainda não, mas saberão em
breve.
Por Mauro Luis Iasi.
“Ele se portava como
um gênio não reconhecido, que todo mundo tinha na conta de um simplório.”
Karl Marx, O 18 de brumário de Luís Bonaparte
A verdadeira meta do
presidente miliciano é um golpe clássico que lhe permita a centralização
política necessária, sob a espada militar, sem os incômodos parceiros no
Congresso e no STF. Ele expressou várias vezes tal intenção, em entrevistas,
declarações, posturas. Portanto, o espanto todo agora manifestado pelos
senhores parlamentares e juízes diante da convocação pelo Presidente de um ato
pelo fechamento do Congresso e do STF não passa de pura encenação, pura
pantomima de indignação.
O que se esconde por
trás da manobra diversionista é uma complexa relação de forças entre dois
segmentos – a direita e a extrema direita – que medem forças como pugilistas no
início de uma luta. Temos trabalhado com a hipótese que há um segmento das
classes dominantes que pensou em utilizar Bolsonaro como alternativa para
derrotar o petismo e implementar a agenda mais dura do capital em crise. Esse segmento
acreditava que podia controlar o miliciano, deixando-o com suas proezas
bizarras enquanto se ocupava do essencial: as reformas contra a classe
trabalhadora.
O problema é que não
se trata, como temos afirmado, de mera bizarrice. A profundidade da crise e as
características de nossa formação histórico-social atuam de maneira a dar
sustentação ao projeto bolsonarista. Em situação supostamente normal, o
retumbante fracasso das medidas econômicas do ultraliberalismo de Guedes
apontaria para a alternância como forma da ordem democrática manter-se como
capa protetora da ordem do capital sobre nova forma – assim como foi Itamar
substituído por FHC e este por Lula.
As próprias classes
dominantes interromperam de forma casuística a chamada normalidade, ao depor a
presidente sob o pretexto das pedaladas fiscais. Como o fracasso de Temer
apontava para a volta de Lula, logo apareceram mais casuísmos jurídicos para
tirá-lo do páreo, abrindo espaço para o protofascista vencer as eleições.
Tratava-se, portanto,
de um mero coadjuvante em um plano maior, um auxiliar para distrair o público
enquanto o mágico faria sua arte, um palhaço de rodeio. Entretanto, como diria
Chico Buarque, “quem brincava de princesa acostumou com a fantasia”. O
miliciano se crê um messias, um mito, um salvador, e diferente da
centro-esquerda, dispõe de meios para resistir às tentativas de derrubá-lo.
Quais seriam esses
recursos de que o miliciano dispõe? As aventuras da grande burguesia
monopolista lograram fraturar o país e forjaram a unidade da extrema-direita
fundada no irracionalismo e sua personificação no capitão. Tal fato lhe confere
um apoio de parte das massas que ultrapassa a fidelidade momentânea do bom ou
mal desempenho da economia, pois é precisamente esse nexo que se queria obliterar
– não pode ser medido por pesquisas de aceitação do governo, uma vez que se
trata de pura ideologia em funcionamento: uma cruzada contra a esquerda e os
inimigos da Pátria e da família realizada pela gente de bem contra o mal.
Evidente que o fundamentalismo religioso opera aqui de maneira decisiva.
O pragmatismo da
direita, que sempre funcionou tão bem (a ponto de chegar a ser copiado
acriticamente pela centro-esquerda), agora se defronta com algo que ele
desconhece e teme. Em situações normais, bastava um pretexto qualquer (que no
caso não precisaria nem ser inventado, pois estes existem em profusão), uma
campanha midiática para isolar a figura e um desfecho institucional que
afastasse o miliciano deslocando o eixo do poder para o Parlamento, com algum tipo
de parlamentarismo de ocasião ou algo do tipo, por exemplo, com Mourão.
Se o capitão contasse
apenas com o apoio de um segmento de massas, ele já teria caído. Neste ponto
intervém outro fator: as armas. Além das relações com milícias (que só não são
evidentes para as instituições estabelecidas e para o Ministro da Justiça),
temos o apoio das corporações militares – como ficou evidenciado no motim do
Ceará – e parte das Forças Armadas, evidenciado pela forte presença militar no
governo. Este é um ponto obscuro, isto é, até que ponto o capitão teria como
mover segmentos das forças armadas em sua defesa, mesmo que para enfrentar
outra parte que resistiria. No entanto, neste momento, não se trata de ter ou
não o apoio efetivamente; parecer ter é suficiente para o blefe.
Caso interrompêssemos
a análise neste ponto, teríamos praticamente um empate. Aqueles que querem
retirar o miliciano teriam posições institucionais, aparelhos midiáticos, um
segmento de massas e parte do aparato repressivo. O capitão, por sua vez, teria
a seu favor (blefando ou não), parte das massas, aparatos policiais e parte das
Forças Armadas. Se tivesse que apostar, acredito que nesse cenário ele já teria
caído. Por isso, sustento que aqui entra um fator diferenciador: parece-me que
ele ainda se sustenta e sobrevive porque as classes dominantes se encontram
divididas.
Há uma fração das
classes dominantes que, apesar de perceber o inconveniente da figura e seus
riscos, acredita que ele é um mal menor. Afinal, o fundamental são as reformas
e a retomada das taxas de lucro a patamares aceitáveis. Se o preço a pagar é a
destruição do país e uma aventura fascista, esses senhores estão dispostos a
pagá-lo – como já fizeram no passado, diga-se de passagem. Creio que aqui está
a chave do enigma da conjuntura: o miliciano ainda não caiu porque as classes
dominantes estão divididas quanto à necessidade de tirá-lo e as consequências
que daí viriam. A Rede Globo não está sendo contraditória ao denunciar
falcatruas e depois elogiar a política econômica, apenas expressa, com isso, a
divisão interna de seus verdadeiros mandantes.
Não devemos
menosprezar um fato. Não estamos falando de classes dominantes clássicas, que
ponderam, pensam, têm seus intelectuais orgânicos, fazem cálculos e pesam
riscos e oportunidades. A adesão da burguesia brasileira ao imperialismo e a
aceitação de sua existência subordinada e dependente produziu um subproduto que
tem um impacto não desprezível na conjuntura – a saber, aquilo que poderíamos
chamar de lumpenburguesia. Trata-se de uma fração da burguesia que lucra
diretamente com a contravenção e a corrupção (quando não diretamente com o
crime), desde pequenos esquemas até mamatas gigantescas. Ela abarca desde um
parlamentar que viu seu patrimônio aumentado em 450% em dois anos e que se
notabilizou por cortar um bloqueio às terras indígenas em Roraima, passando por
parlamentares que, depois de derrubar a presidente eleita em nome da família e
dos bons costumes, são presos por pedofilia, corrupção, assassinato e outros
delitos, até chegar em grandes empresários e suas relações perniciosas com o
Estado, envolvendo grandes obras, contratos vultuosos, verbas públicas,
licitações e outros expedientes pelos quais o fundo público é rapinado por
interesses privados.
Em um certo momento
da Revolução Cubana, Che avaliou que uma das dificuldades no enfrentamento às
forças de Batista era que, diferente de exércitos tradicionais, eles teriam que
enfrentar uma corporação que havia transformado desde o soldado até os
comandantes em sócios das contravenções, do tráfico, dos cassinos, etc. Em grau
e forma diversa, presenciamos esse fenômeno nas forças policiais e seu
desdobramento nas milícias. Não se trata de desvio de conduta de um ou outro
policial, mas de um sistema que envolve desde o comando até a base da
corporação, incluindo empresários, políticos, juízes e governantes. Essa fração
está mais preocupada em proteger seus negócios. Não liga para os crimes de
Bolsonaro, tampouco para as querelas parlamentares, mas teme que ao revelar os
crimes de um acabem por expor os seus.
O golpe de 2016 foi
perpetrado sob o pretexto de manter a estabilidade contra o desassossego que
impedia as reformas, mas o regime parlamentar com o capitão à frente é tudo
menos estável. A burguesia estava pronta para um grande acordo, “com Supremo,
com tudo”, mas o capitão move peças heterodoxas contra as quais o parlamento
pode pouco. Derrotado o petismo (perdão aos otimistas, mas o petismo caiu da
mesa do jogo, pois sua única carta é uma eleição “limpa”, por isso permanece à
espera de 2022), o miliciano abre suas baterias contra seus aliados: o STF e o
Congresso. Mas por quê? Ora, porque o genial plano econômico não vingou e a
milagrosa retomada do crescimento não veio. E alguém terá que ser
responsabilizado. O capitão é tosco, mas não é burro (bem, talvez seja, mas
certamente sabe jogar) e sabe que ele está escalado para esse papel – e que as
consequências de não cumpri-lo não são apenas sair e voltar para a
churrasqueira na bela casa em um condomínio mal frequentado na Barra, mas ir
parar na cadeia junto com seus filhos. Por isso, ele vai reagir – ou, pior, vai
tomar a iniciativa –, e tem recursos para tanto.
O inimigo é o mesmo:
o socialismo! Marx, em seu magistral O 18 de brumário de Luís Bonaparte,
comenta o um momento em que Luís Napoleão se choca com os interesses
parlamentares, passando a acusá-los de socialistas. Nas palavras dele:
“Declara-se como socialista o liberalismo burguês, o Iluminismo burguês e até a
reforma financeira burguesa” (p. 80). Entre nós, sob o signo da farsa, já tem
gente falando que a Regina Duarte é um plano da esquerda para sabotar o governo
Bolsonaro, a Rede Globo é esquerdista, o STF é uma instituição a serviço do
comunismo internacional, comandado desde a Venezuela.
O paiol está cheio de
explosivos, mas falta a faísca que fará tudo explodir. Para os dois lados, o
que falta é mobilizar o pretexto. No caso do parlamento e da fração que quer a
saída da peça incômoda para seguir o essencial do plano, pretexto já existe (o
presidente já cometeu, segundo analistas insuspeitos, pelo menos dez crimes de
responsabilidade), mas se depararam com uma correlação de forças que abre a
possibilidade de confronto e eles são, fundamentalmente, covardes. O miliciano,
ao convocar os atos, colocou as instituições nas cordas, uma vez que estas se
viram obrigadas a responder ou aceitar seu destino de viver sob a ameaça de um
irresponsável. Agora, por conta da pandemia do coronavírus, os atos foram
desmarcados. Fica a impressão de que o vírus acabou sendo uma saída honrosa para
o golpista e o Congresso. No entanto, parece só adiar o problema.
Segue o plano de
interromper o processo com um ato de força, mas, para tanto, o capitão
miliciano precisa de uma situação que justifique o ato de força para fechar o
Congresso e estabelecer sua ditadura. E, evidentemente, esta não podem ser as
emendas parlamentares que engessam o orçamento ou professores universitários
pelados, fumando maconha e dando aula de marxismo nos cursos de engenharia.
A viagem do miliciano
aos EUA nos dá a pista. O que Bolsonaro precisa é de uma guerra, ou ao menos
algo que pareça uma guerra. Os venezuelanos já sabem, Trump já sabe… Os
brasileiros ainda não, mas saberão em breve.
***
Mauro Iasi é
professor adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ, pesquisador do NEPEM
(Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas), do NEP 13 de Maio e membro do Comitê
Central do PCB. É autor do livro O dilema de Hamlet: o ser e o não ser da
consciência (Boitempo, 2002) e colabora com os livros Cidades rebeldes: Passe
Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil e György Lukács e a
emancipação humana (Boitempo, 2013), organizado por Marcos Del Roio. Colabora
para o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas. Na TV Boitempo, apresenta o
Café Bolchevique, um encontro mensal para discutir conceitos-chave da tradição
marxista a partir de reflexões sobre a conjuntura.
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