quarta-feira, 18 de março de 2020

Abaixo a pandemia, viva a guerra!

Foto de arquivo Créditos / Reddit




Blindados dos EUA, integrando as forças da OTAN, desfilam nas ruas de Narva, Estônia, junto à fronteira com a Rússia. 

José Goulão
ABRIL ABRIL
A Europa está fechada. Enquanto isso, 30 mil soldados norte-americanos invadem o continente até julho nas maiores manobras militares em 25 anos. O que acontece na altura em que o presidente dos Estados Unidos decide banir as entradas dos europeus no seu país. Em pleno combate à pandemia de coronavírus, prioridade à guerra.
Enquanto a Europa se vai imobilizando, minada pelo novo coronavírus, quase 40 mil efetivos da OTAN estão sendo distribuídos através do continente com o objetivo de testar a «mobilidade militar» e responder a «qualquer ameaça potencial» – russa, já se sabe.
Vinte mil soldados chegam dos Estados Unidos para se juntar aos 10 mil que já ocupam solo europeu e a mais sete mil de 18 países membros e parceiros da Aliança. Desde 20 de fevereiro e até julho o «maior movimento de tropas na Europa desde o fim da guerra fria», como anunciou o secretário-geral da OTAN, Jens Stoltenberg, estender-se-á através de quatro mil quilômetros de vias de comunicação continentais, espezinhando tudo quanto tem vindo a ser decidido pelos governos com a finalidade de combater a pandemia de coronavírus. Para celebrar os jogos de guerra batizados como Defender Europe (Defensor da Europa) 2020 a banda de rock do exército norte-americano dará concertos em vários países, todos eles com entradas livres, exatamente no período em que, de leste a oeste, estão a ser suspensas as atividades culturais. Deixem passar a guerra!
Escolas estão sendo fechadas, museus, auditórios, centros de convívio, organizações de índole social, ginásios, piscinas, pavilhões, estádios fecham as portas, companhias áreas cancelam dezenas de milhares de voos, as pessoas saúdam-se com os pés ou cotovelos. Os governos europeus vão anunciando medidas sucessivas que reduzem as atividades ao mínimo; um país inteiro, a Itália, entrou de quarentena e ameaça com prisão até cinco anos os cidadãos desobedientes. No entanto, nos últimos dias acolheu manobras de guerra eletrônica e transformou-se no cenário de exercícios com submarinos envolvendo militares de dez países – operações integradas nas manobras Defender Europe 2020 da OTAN.
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Os boys «estão com boa saúde»

«As nossas forças estão com boa saúde», garante o general Tod Wolters, comandante do Exército de Terra dos Estados Unidos na Europa. Sabe-se que talvez não seja bem assim: o Pentágono admitiu que o número de militares infectados é superior ao que revelam as estatísticas; e o general norte-americano Christopher Cavoli e parte dos seus companheiros de guarnição na base alemã de Wiesbaden entraram de quarentena depois de uma reunião da OTAN na qual participaram dois generais contaminados com coronavírus, o polonês Jaroslav Mika e o italiano Salvatore Farina. Reunião onde estiveram oficiais superiores de uma dezena de países da OTAN para abordar assuntos relacionados com as manobras em curso.

Seja como for os jogos de guerra vão para a frente, assegurou em Zagreb o secretário-geral da OTAN numa reunião de ministros da Defesa da União Europeia – e não da aliança guerreira – demonstrando como são tênues as fronteiras entre o «europeísmo» e o «atlantismo», com ou sem pandemias. «Certamente iremos monitorizar e acompanhar de muito perto a situação, porque tem consequências potenciais também para a OTAN», prometeu Stoltenberg enquanto anunciava a existência de planos de contingência para que as manobras militares não sejam perturbadas no caso de haver «muitos casos» de contaminação «nas estruturas de comando da aliança e nos seus quartéis generais». Pelo menos no quartel-general da organização, em Bruxelas, já foram noticiados.
Tudo pela «mobilidade militar»

As tropas norte-americanas desembarcam em seis portos e nove aeroportos de vários países europeus. Com elas entram no continente 33 mil peças de guerra, algumas das quais as infraestruturas europeias poderão não suportar como é o caso dos tanques Abrams, com as suas imponentes 70 toneladas. Porque, como lamenta o Parlamento Europeu num relatório já de fevereiro deste ano, «desde os anos noventa as infraestruturas europeias foram desenvolvidas unicamente com objetivos civis». Um inconveniente que a Comissão Europeia já identificara há dois anos quando decidiu tomar medidas para averiguar de que modo as vias de comunicação do continente terão de vir a adaptar-se à «mobilidade militar». As modificações e as construções que forem necessárias serão suportadas, é claro, pelos contribuintes europeus, podendo a União prever alocações financeiras num total de 30 mil milhões de euros.

Confirmando a determinação da União Europeia em aplanar o continente para as dinâmicas castrenses exigidas por Washington, há uma semana, em Zagreb, os ministros da Defesa dos Estados membros juntaram-se para «identificar qualquer obstáculo à mobilidade militar que a Europa tenha de remover». Bruxelas sabe definir muito bem as prioridades.
Exatamente «testar a mobilidade militar» é um dos objetivos dos jogos de guerra Defender Europe 2020, de modo a que possa haver condições para «colocar rapidamente uma grande força de combate dos Estados Unidos na Europa. Para tal, a OTAN, o Comando Europeu dos Estados Unidos e a União Europeia têm se articulando para adaptar as infraestruturas ao deslocamento célere de comboios militares através de quatro mil quilômetros de vias de comunicação, sobretudo do Centro e Leste. Porque é no extremo Leste que está a «ameaça potencial» – nunca citada explicitamente, o que nem será necessário porque qualquer europeu sabe desde pequenino qual é.
O auge das manobras está previsto entre 20 de abril e 20 de maio. No entanto, asseguram os organizadores no website da OTAN, haverá movimentos de pessoal e equipamentos entre fevereiro e julho, meio ano de jogos de guerra num continente que praticamente abdica de tudo o resto.
O primeiro ato desta longa peça guerreira aconteceu em 21 de fevereiro quando a 1.ª Divisão de Cavalaria dos Estados Unidos – a chegada da cavalaria é sempre exaltante num bom roteiro de Hollywood – desembarcou em festa no aeroporto de Nuremberg, na Alemanha. Antes de seguir viagem para a Polônia e os Estados do Báltico foi acolhida por uma comitiva chefiada pelo ministro do Interior da Baviera, Joachim Herrmann. Reza a crônica mundana que houve animada confraternização, apertos de mão, beijos e abraços, não era o COVID-19 que iria estragar a festa. Nessa altura já a banda de rock e o coro do Exército dos Estados Unidos tinham iniciado a sua “tournée de boa vontade” em apoio do Defender Europe 2020 promovendo vários concertos na Polônia com entradas gratuitas. E não tarda chegará o tempo de paraquedistas norte-americanos e italianos, estacionados respectivamente na região de Veneza e na Toscânia – submetidas à quarentena italiana –, partirem para ir fazer artes de guerra em palcos do Mar Báltico.
Total submissão europeia

As gigantescas manobras Defender Europe 2020 traduzem um contexto de crescente submissão da Europa, como um todo, à pressão militar dos Estados Unidos. O contraste entre o rigor dos governos espelhado nas medidas que vão sendo adotadas para combater o surto de coronavírus e, simultaneamente, a sua submissão perante tudo o que é exigência militar de Washington torna-se significativo e gritante nestes dias de insegurança coletiva – que a componente militar não resolve e só pode agravar.

Os Estados Unidos pedem – isto é, exigem – uma espécie de «Schengen militar», ou seja a abolição de fronteiras para as operações militares e os transportes de mercadorias perigosas a utilizar em situações de guerra.
O episódio da realização de manobras militares de grande envergadura em simultâneo com uma operação fulcral de defesa da saúde pública demonstra que a União Europeia não tem voz perante as inamovíveis agendas norte-americanas, sobretudo as militares e, no fundo, geoestratégicas. O general Tod Wolters, que comanda o Exército de Terra na Europa e garante que os «boys» estão de boa saúde, é o mesmo que defende o uso da arma nuclear no âmbito de uma «resposta flexível» no continente.
Os Estados Unidos que invadem a Europa para praticar jogos de guerra – e vedam a entrada de cidadãos europeus em território norte-americano – não se coibiram de adiar as manobras militares conjuntas com a Coreia do Sul devido à pandemia de coronavírus.
Ao invés, do lado europeu o que se verifica é a negação das políticas assumidas em defesa da saúde dos cidadãos para que se cumpram objetivos bélicos. É a própria União Europeia quem, em vez de exigir o cancelamento das manobras militares de modo a que sejam cumpridas as medidas sanitárias, colabora com o Pentágono na estruturação e realização dos exercícios agressivos e contaminadores que se estendem por meio continente.
Os fatos expressos neste contraste são tão explícitos e violentos que não haverá elaborado esforço de propaganda sobre supostas ameaças alheias que lhes valha. Ameaça é a pandemia, a prioridade de quem nos governa é a guerra.
José Goulão, exclusivo O Lado Oculto/AbrilAbril

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