Foto de arquivo Créditos / Reddit |
Blindados dos EUA, integrando as forças da OTAN, desfilam nas ruas de
Narva, Estônia, junto à fronteira com a Rússia.
José Goulão
ABRIL ABRIL
A Europa está
fechada. Enquanto isso, 30 mil soldados norte-americanos invadem o continente
até julho nas maiores manobras militares em 25 anos. O que acontece na altura
em que o presidente dos Estados Unidos decide banir as entradas dos europeus no
seu país. Em pleno combate à pandemia de coronavírus, prioridade à guerra.
Enquanto a Europa se
vai imobilizando, minada pelo novo coronavírus, quase 40 mil efetivos da OTAN
estão sendo distribuídos através do continente com o objetivo de testar a
«mobilidade militar» e responder a «qualquer ameaça potencial» – russa, já se
sabe.
Vinte mil soldados
chegam dos Estados Unidos para se juntar aos 10 mil que já ocupam solo europeu
e a mais sete mil de 18 países membros e parceiros da Aliança. Desde 20 de
fevereiro e até julho o «maior movimento de tropas na Europa desde o fim da
guerra fria», como anunciou o secretário-geral da OTAN, Jens Stoltenberg,
estender-se-á através de quatro mil quilômetros de vias de comunicação
continentais, espezinhando tudo quanto tem vindo a ser decidido pelos governos
com a finalidade de combater a pandemia de coronavírus. Para celebrar os jogos
de guerra batizados como Defender Europe (Defensor da Europa) 2020 a banda de
rock do exército norte-americano dará concertos em vários países, todos eles
com entradas livres, exatamente no período em que, de leste a oeste, estão a
ser suspensas as atividades culturais. Deixem passar a guerra!
Escolas estão sendo
fechadas, museus, auditórios, centros de convívio, organizações de índole
social, ginásios, piscinas, pavilhões, estádios fecham as portas, companhias
áreas cancelam dezenas de milhares de voos, as pessoas saúdam-se com os pés ou
cotovelos. Os governos europeus vão anunciando medidas sucessivas que reduzem
as atividades ao mínimo; um país inteiro, a Itália, entrou de quarentena e
ameaça com prisão até cinco anos os cidadãos desobedientes. No entanto, nos
últimos dias acolheu manobras de guerra eletrônica e transformou-se no cenário
de exercícios com submarinos envolvendo militares de dez países – operações
integradas nas manobras Defender Europe 2020 da OTAN.
Os boys «estão com
boa saúde»
«As nossas forças estão com boa saúde», garante o general Tod Wolters,
comandante do Exército de Terra dos Estados Unidos na Europa. Sabe-se que
talvez não seja bem assim: o Pentágono admitiu que o número de militares
infectados é superior ao que revelam as estatísticas; e o general
norte-americano Christopher Cavoli e parte dos seus companheiros de guarnição
na base alemã de Wiesbaden entraram de quarentena depois de uma reunião da OTAN
na qual participaram dois generais contaminados com coronavírus, o polonês
Jaroslav Mika e o italiano Salvatore Farina. Reunião onde estiveram oficiais
superiores de uma dezena de países da OTAN para abordar assuntos relacionados
com as manobras em curso.
Seja como for os jogos
de guerra vão para a frente, assegurou em Zagreb o secretário-geral da OTAN
numa reunião de ministros da Defesa da União Europeia – e não da aliança
guerreira – demonstrando como são tênues as fronteiras entre o «europeísmo» e o
«atlantismo», com ou sem pandemias. «Certamente iremos monitorizar e acompanhar
de muito perto a situação, porque tem consequências potenciais também para a
OTAN», prometeu Stoltenberg enquanto anunciava a existência de planos de
contingência para que as manobras militares não sejam perturbadas no caso de
haver «muitos casos» de contaminação «nas estruturas de comando da aliança e
nos seus quartéis generais». Pelo menos no quartel-general da organização, em
Bruxelas, já foram noticiados.
Tudo pela «mobilidade
militar»
As tropas norte-americanas desembarcam em seis portos e nove aeroportos de
vários países europeus. Com elas entram no continente 33 mil peças de guerra,
algumas das quais as infraestruturas europeias poderão não suportar como é o
caso dos tanques Abrams, com as suas imponentes 70 toneladas. Porque, como
lamenta o Parlamento Europeu num relatório já de fevereiro deste ano, «desde os
anos noventa as infraestruturas europeias foram desenvolvidas unicamente com
objetivos civis». Um inconveniente que a Comissão Europeia já identificara há
dois anos quando decidiu tomar medidas para averiguar de que modo as vias de
comunicação do continente terão de vir a adaptar-se à «mobilidade militar». As
modificações e as construções que forem necessárias serão suportadas, é claro,
pelos contribuintes europeus, podendo a União prever alocações financeiras num
total de 30 mil milhões de euros.
Confirmando a
determinação da União Europeia em aplanar o continente para as dinâmicas
castrenses exigidas por Washington, há uma semana, em Zagreb, os ministros da
Defesa dos Estados membros juntaram-se para «identificar qualquer obstáculo à
mobilidade militar que a Europa tenha de remover». Bruxelas sabe definir muito
bem as prioridades.
Exatamente «testar a
mobilidade militar» é um dos objetivos dos jogos de guerra Defender Europe
2020, de modo a que possa haver condições para «colocar rapidamente uma grande
força de combate dos Estados Unidos na Europa. Para tal, a OTAN, o Comando
Europeu dos Estados Unidos e a União Europeia têm se articulando para adaptar
as infraestruturas ao deslocamento célere de comboios militares através de
quatro mil quilômetros de vias de comunicação, sobretudo do Centro e Leste.
Porque é no extremo Leste que está a «ameaça potencial» – nunca citada
explicitamente, o que nem será necessário porque qualquer europeu sabe desde
pequenino qual é.
O auge das manobras
está previsto entre 20 de abril e 20 de maio. No entanto, asseguram os
organizadores no website da OTAN, haverá movimentos de pessoal e equipamentos
entre fevereiro e julho, meio ano de jogos de guerra num continente que
praticamente abdica de tudo o resto.
O primeiro ato desta
longa peça guerreira aconteceu em 21 de fevereiro quando a 1.ª Divisão de
Cavalaria dos Estados Unidos – a chegada da cavalaria é sempre exaltante num
bom roteiro de Hollywood – desembarcou em festa no aeroporto de Nuremberg, na
Alemanha. Antes de seguir viagem para a Polônia e os Estados do Báltico foi
acolhida por uma comitiva chefiada pelo ministro do Interior da Baviera,
Joachim Herrmann. Reza a crônica mundana que houve animada confraternização,
apertos de mão, beijos e abraços, não era o COVID-19 que iria estragar a festa.
Nessa altura já a banda de rock e o coro do Exército dos Estados Unidos tinham
iniciado a sua “tournée de boa vontade” em apoio do Defender Europe 2020
promovendo vários concertos na Polônia com entradas gratuitas. E não tarda
chegará o tempo de paraquedistas norte-americanos e italianos, estacionados
respectivamente na região de Veneza e na Toscânia – submetidas à quarentena
italiana –, partirem para ir fazer artes de guerra em palcos do Mar Báltico.
Total submissão
europeia
As gigantescas manobras Defender Europe 2020 traduzem um contexto de crescente
submissão da Europa, como um todo, à pressão militar dos Estados Unidos. O
contraste entre o rigor dos governos espelhado nas medidas que vão sendo
adotadas para combater o surto de coronavírus e, simultaneamente, a sua
submissão perante tudo o que é exigência militar de Washington torna-se
significativo e gritante nestes dias de insegurança coletiva – que a componente
militar não resolve e só pode agravar.
Os Estados Unidos
pedem – isto é, exigem – uma espécie de «Schengen militar», ou seja a abolição
de fronteiras para as operações militares e os transportes de mercadorias perigosas
a utilizar em situações de guerra.
O episódio da
realização de manobras militares de grande envergadura em simultâneo com uma
operação fulcral de defesa da saúde pública demonstra que a União Europeia não
tem voz perante as inamovíveis agendas norte-americanas, sobretudo as militares
e, no fundo, geoestratégicas. O general Tod Wolters, que comanda o Exército de
Terra na Europa e garante que os «boys» estão de boa saúde, é o mesmo que
defende o uso da arma nuclear no âmbito de uma «resposta flexível» no
continente.
Os Estados Unidos que
invadem a Europa para praticar jogos de guerra – e vedam a entrada de cidadãos
europeus em território norte-americano – não se coibiram de adiar as manobras
militares conjuntas com a Coreia do Sul devido à pandemia de coronavírus.
Ao invés, do lado
europeu o que se verifica é a negação das políticas assumidas em defesa da
saúde dos cidadãos para que se cumpram objetivos bélicos. É a própria União
Europeia quem, em vez de exigir o cancelamento das manobras militares de modo a
que sejam cumpridas as medidas sanitárias, colabora com o Pentágono na
estruturação e realização dos exercícios agressivos e contaminadores que se
estendem por meio continente.
Os fatos expressos
neste contraste são tão explícitos e violentos que não haverá elaborado esforço
de propaganda sobre supostas ameaças alheias que lhes valha. Ameaça é a
pandemia, a prioridade de quem nos governa é a guerra.
José Goulão,
exclusivo O Lado Oculto/AbrilAbril
Nenhum comentário:
Postar um comentário