Por Airton Queiroz
O tiro que atingiu o
estudante paraense de 18 anos, Edson Luís, não veio do alto.
Eu era comensal do
Calabouço, pois, na época, já me tinha tornado um transposto político forçado,
sem dinheiro, recém fugido do Nordeste, de onde passara meses na
clandestinidade, por causa da perseguição da ditadura e motivado pela “queda”
de membros dos Comitês Estadual e Universitário do Partidão (PCB) em
Pernambuco, no segundo semestre de 1967. Eu era o Secretário Agitprop (Agitação
e Propaganda) do Comitê Universitário.
O Calabouço era um
complexo estadual de assistência estudantil, localizado em um velho prédio,
alongado por um grande galpão ao lado da Avenida Marechal Câmara, no centro do
Rio de Janeiro. Compreendia um verdadeiro universo de estudantes carentes de
todas as partes do país e reduto de todas as esquerdas universitárias e
secundaristas.
Havia, no seu
interior, oficinas de diferentes tipos de artesanato, de produção rústica de
livros de poesia, “salas” de aula de tudo quanto era matéria comum e esotérica,
cursinhos pré-vestibular, projeção rudimentar de filmes, grupos de teatro
popular, de dança, muito namoro e amor livre e, claro, comida barata, que era o
principal. No Calabouço, também existia o Instituto Cooperativo de Ensino, no
qual Edson Luís continuava seu curso secundário começado em sua Belém do Pará.
Comícios eram feitos
quase todos os dias e noites, dentro e fora, num descampado situado à frente do
galpão do Calabouço e delimitado pelo Edifício da Legião Brasileira de
Assistência (LBA) e por muros de prédios que voltavam suas frentes para a
Avenida General Justo.
Naquela fatídica
quinta feira, durante o jantar, no dia 28 de março de 1968, quando já passava
das 18 horas, os estudantes havíamos marcado um ato de protesto e estávamos
concentrados no descampado, no que seria seguido de uma passeata, contra o
preço das refeições, além das péssimas condições de higiene e a lentidão das
obras do Calabouço. Foi, então, que choques da Polícia Militar, de início com
cassetetes, cercaram o descampado, vindos pela galeria do Edifício da LBA e
pela Avenida Marechal Câmara e atacaram-nos em uma atitude bestial de
espancamentos com ordens de dispersão e abandono do local.
Como não queríamos
abandonar a área, corremos para o interior do galpão do Calabouço e, daquele
lugar, revidávamos com o varejamento de pedras da obra. A polícia reagiu com
rajadas de fuzis e metralhadoras para o alto, como forma de intimidação. Em
seguida, baixou a linha de disparos, que eram respondidos com mais pedradas
nossas, no que resultou em vários estudantes feridos e na tragédia da morte do
estudante Edson Luís Lima Souto, assassinado com um tiro no peito, de pistola
calibre 45, identificada depois, como do tenente Alcindo Costa, que comandava o
Batalhão Motorizado da PM no local.
Após os tiros que
atingiram o Edson, nós entramos em clamor, gritando que mataram um jovem,
chamando os policiais de assassinos. Perdermos o medo da morte e avançamos
contra eles, carregando o corpo do Edson Luís, quando, finalmente, a polícia,
receosa, retirou-se, depois de ter feito outras vítimas, dentre elas o
comerciário Telmo Henriques, com um tiro na boca, e um porteiro do INPS que
passava pelas imediações e que também tombou morto.
Com o Edson ainda com
vida e sangrando muito, eu tentei influenciar a turba, na confusão do
empurra-empurra, para que ele fosse levado, rapidamente, para ser atendido no
Hospital da Santa Casa, que fica próximo ao local. Todavia, só consegui meu
intento depois de passados alguns minutos preciosos. Ao lá adentrar, o médico,
Dr. Luis Fortes, declarou que o Edson já estava morto.
Seu corpo, então, foi retirado da Santa Casa, sob protestos dos funcionários do
hospital, e carregado aos brados de: “Abaixo a Ditadura Militar” e “Mataram um
estudante e se fosse filho seu?” No trajeto até a Cinelândia, o corpo do Edson,
ainda sangrava. Foi conduzido, deitado, no alto, sustentado por vários braços
que se revezavam, por uma multidão enfurecida de estudantes e populares que se
incorporaram, pela Rua Santa Luzia.
Quando, por volta das
21 horas, seu corpo chegou, foi depositado no saguão da Assembleia Legislativa
da Guanabara (hoje Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro), onde foi velado,
até o dia seguinte. Seu enterro, no dia 29 de março de 1968, foi acompanhado
por um cortejo gigantesco, até o Cemitério São João Batista. Deputados
estaduais encheram-se de coragem e, em sessão noturna da Assembleia,
extraordinariamente convocada, conclamavam o governador Negrão de Lima a tomar
medidas contra o ato infame e covarde.
Vários de nós ficamos
com nossas roupas tintas do sangue daquele jovem em plena flor da idade.
Durante todo o resto de noite do dia 28, na madrugada e em toda a manhã e tarde
do dia 29 de março, uma grande e crescente multidão se comprimia na Cinelândia.
Ouviram-se muitos oradores, com os mais candentes discursos a vituperar a
ditadura, exigir sua derrubada, reivindicar a volta das liberdades democráticas
e denunciar vários outros crimes cometidos pelos golpistas de abril de 64.
Notem que estávamos a
três dias do quarto aniversário da “gorilada” de 1° de abril, ou a dois dias
como entendiam eles, que se fixavam no dia 31 de março, a fugir do dia da
mentira de que o golpe fora desfechado para restabelecer a democracia no
Brasil.
DURANTE TODO ESSE
TEMPO, NEM UM SINAL DE POLÍCIA EM TODO O CENTRO DA CIDADE. Tínhamos a impressão
de que a ditadura começava a cair. Isso era afirmado em muitos discursos. Que
grande ilusão a nossa!
Irônica foi a
resposta do covarde general Oswaldo Niemeyer, Superintendente da Polícia
Executiva (depois demitido pelo Secretário de Segurança, general Dario Coelho,
a mando do governador Negrão de Lima), ao declarar ao Jornal do Brasil que a
polícia estava inferiorizada em potência de fogo, comparada à dos estudantes
(pedras).
Aquele foi um
crime-símbolo que fez tremer todo o país e abalou a política nacional.
Ofereceu-nos a liberdade, por um dia, de protestar sem a presença dos meganhas.
Entretanto, constituiu-se, também, em marco da escalada de uma ditadura que
marchava pela rota do endurecimento e da repressão crescentes. Dali a nove
meses se gestava mais um golpe profundo, o nefando Ato n° 5, parido em 13 de
dezembro.
Este texto
encontra-se na página 161 do livro “68 a geração que queria mudar o mundo
relatos”, organizado e editado por Eliete Ferrer e publicado no Projeto Marcas
de Memória, da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça em 2011, na
Presidência de Paulo Abrão.
Para ler ou gravar o livro em PDF, acesse aqui:
https://www.plural.jor.br/documentosrevelados/wp-content/uploads/2018/01/68-a-geracao-que-queria-mudar-o-mundo-relatos.pdf
ou
http://www.justica.gov.br/central-de-conteudo/anistia/anexos/livro_68-relatos.pdf
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