BBC NEWS.
Presidente afirmou que pessoa com HIV é 'uma
despesa para todos no Brasil'
Pessoas que vivem com HIV
utilizaram a hashtag #EuNãoSouDespesa para criticar declaração do presidente
Jair Bolsonaro sobre o tema.
Durante conversa com a
imprensa, na quarta-feira (05/02), enquanto defendia a abstinência sexual
proposta pela ministra Damares Alves (Mulher, Família e Direitos Humanos),
Bolsonaro citou um relato do jornalista Alexandre Garcia, apoiador declarado do
presidente.
"O próprio Alexandre
Garcia, ele fala que a esposa dele, que é obstetra, atendeu uma mulher que
começou com o primeiro filho com 12 anos. Outro com 15, e no terceiro, que a
esposa dele atendeu, ela já estava com HIV. Uma pessoa com HIV, além do
problema sério para ela, é uma despesa para todos aqui no Brasil",
declarou.
A afirmação do presidente
gerou repercussão em entidades que defendem pessoas que vivem com HIV.
Coletivos ligados ao tema a classificaram a declaração como
"desrespeitosa, superficial e preconceituosa".
A hashtag #EuNãoSouDespesa foi
usada diversas vezes nas redes no fim de quarta-feira e nesta quinta. A
campanha foi promovida pelo Conselho Nacional de Saúde (CNS), que afirma que a
iniciativa teve o apoio de ativistas, estudantes, aposentados, jornalistas,
assistentes sociais, advogados, médicos, atores e "diversos outros
cidadãos e cidadãs que defendem o Sistema Único de Saúde (SUS), contra o
estigma, o preconceito e a discriminação".
Por meio da hashtag, diversas
pessoas criticaram duramente a declaração de Bolsonaro. "Eu me senti
profundamente ofendido. Não bastasse ele ter dito anteriormente que o Estado
não deveria arcar com o tratamento de quem contrai o vírus 'na bandalheira',
agora ele nos taxa como meras despesas de governo", afirma Beto Volpe, de
58 anos, ativista e escritor.
A afirmação dele sobre uma
declaração anterior do presidente é em referência a uma entrevista que
Bolsonaro deu em 2010 ao programa CQC, na qual o então deputado
federal disse que "uma pessoa que vive na vida mundana depois vai querer
cobrar do poder público um tratamento que é caro".
Nas redes, Beto, que vive com
o HIV há mais de 30 anos, adotou a mensagem "eu não sou despesa" e
citou que paga impostos há 43 anos. "Será que ele pensa o mesmo das
pessoas com câncer, cardiopatias e outras patologias ou somente pensa assim das
pessoas que afrontam as ideias retrógradas dele?", questiona.
O HIV no Brasil
De acordo com o Ministério da
Saúde, em 2018 foram registrados 43,9 mil novos casos de HIV no Brasil — dado
mais recente. Naquele ano, a pasta estimava que 866 mil pessoas viviam com o
vírus no país. Além disso, o ministério estima que outras 135 mil pessoas vivem
com o vírus no Brasil, mas não sabem disso.
Segundo o boletim
epidemiológico HIV/Aids 2019, de 2007 a junho do ano passado foram notificados
300.496 novos casos de infecção pelo HIV no país. O Ministério da Saúde informa
que o número de mortes por aids, doença que o paciente com HIV pode
desenvolver, caiu em 22,8% nos últimos cinco anos — de 12,5 mil em 2014 para
10,9 mil em 2018.
Especialistas apontam que o
tratamento no Brasil é considerado um exemplo para todo o mundo, pois os
medicamentos são distribuídos pela rede pública e há acompanhamento específico
para esses pacientes.
Um estudo do Ministério da
Saúde, divulgado em 2019, apontou que o país mais que dobrou o tempo de
sobrevida das pessoas com o vírus, em razão do tratamento adequado.
O levantamento, intitulado
Estudo de Abrangência Nacional de Sobrevida e Mortalidade de Pacientes com Aids
no Brasil, apontou que 70% dos adultos e 87% das crianças diagnosticadas entre
2003 e 2007 tiveram sobrevida superior a 12 anos — um estudo feito em 1996
apontou que a sobrevida era de, em média, cinco anos.
Desde 1996, o país garante o
tratamento universal e gratuito por meio do Sistema Único de Saúde (SUS). No
ano passado, segundo o portal da Transparência, o governo utilizou R$ 1,8
bilhão na compra de remédios para pacientes com HIV — segundo o portal, o valor
representa 0,06% dos gastos públicos do ano.
Em 2017, por exemplo, segundo
um estudo da Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa (Interfarma), o
SUS utilizou R$ 4,5 bilhões para tratamentos contra o câncer.
Os coletivos ligados a pessoas
que vivem com HIV frisam que o direito à saúde é universal e é dever do Estado
auxiliar as pessoas que precisam de medicamentos, incluindo aquelas que vivem
com o HIV.
'Tratamento não é esmola'
Secretária Nacional de Informação
e comunicação da Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV e Aids, Vanessa
Campos também usou a hashtag para criticar o presidente. "A saúde das
pessoas que vivem com HIV/Aids é um direito garantido pela Constituição.
"Dizer que somos despesas
é distorcer informações e manipular a opinião pública. Com indignação que vemos
esse retrocesso e discriminação. Investir em saúde é investir na vida",
escreveu a ativista, que também vive com o HIV há três décadas.
"A
Saúde das pessoas que vivem com HIV/Aids é um direito garantido pela CF. Dizer que somos despesa é distorcer informações e manipular a opinião pública. Com
indignação que vemos esse retrocesso e discriminação.
A declaração de Bolsonaro foi
repudiada pela Frente Parlamentar Mista de Enfrentamento às Infecções
Sexualmente Transmissíveis (ISTs), do HIV/AIDS e Hepatites Virais no Congresso
Nacional. Os parlamentares avaliaram que a fala do presidente foi extremamente
desrespeitosa.
Movimentos nacionais
relacionados a pessoas que vivem com o HIV emitiram um comunicado contra as
falas de Bolsonaro.
"As declarações ofendem e
rotulam quase um milhão de cidadãos e cidadãs nesta situação, além de seus
familiares, amigos e entorno social. Não podemos tolerar que depois de décadas
de conquistas e de luta contra a discriminação, discursos ancorados em
preceitos equivocados e preconceituosos, potencializem estigmas e processos de
exclusão sociais ainda presentes no cotidiano das pessoas que vivem com
HIV/Aids no Brasil", diz trecho de nota divulgada pelos movimentos
nacionais Articulação de Luta Contra a Aids, Rede de Pessoas Vivendo com HIV e
Aids, Movimento das Cidadãs Posithivas e Rede de Mulheres Travestis e Transexuais
e Homens Trans vivendo e convivendo com HIV/Aids.
Representante da Articulação
Nacional de Luta Contra a Aids (Anaids), Moyses Toniolo também aderiu ao
movimento nas redes sociais. "Os direitos sociais são cláusulas pétreas e,
portanto, não se pode retirar ou retroceder por interesses pessoais ou do
governo, pois são políticas sociais, cujo financiamento provém dos impostos
pagos por todos os cidadão brasileiros", declara Moyses à BBC News Brasil.
"O tratamento não é um
favor ou uma esmola que o Estado pode ou não deixar de conceder. É um dever,
que deve ser dado para zelar pela saúde de seu povo", completa Moyses, que
há décadas vive com o HIV.
Os coletivos que defendem
pessoas que vivem com HIV afirmam que, após as falas de Bolsonaro, ampliarão a
"mobilização pela garantia de direitos e de políticas públicas inclusivas,
plurais, fundamentadas em evidências científicas e construídas com participação
social".
EM TEMPO: Não é à toa que o presidente Bolsonaro quer acabar com o SUS, privatizando ainda mais a saúde e debochando do povo brasileiro.
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