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Apicultor
protesta em frente ao encontro anual de acionistas da Bayer em Bonn, na
Alemanha, em abril de 2019 (Foto: REUTERS/Wolfgang Rattay)
Até o século 18, os cientistas
acreditavam que, como “filhas de chocadeira”, as flores se fecundavam sozinhas.
Foi só em 1793 que o botânico alemão Christian Konrad Sprengel observou que as
abelhas carregavam pólen de uma flor para outra. Mas só observou mesmo, porque,
preso à ideia de autofecundação, ele não percebeu que esse transporte era
essencial para a variedade de padrões, cores, néctares e perfumes. Quem notou
isso foi um fã seu: Charles Darwin, quem entendeu que toda essa variedade das
plantas não passava de uma “artimanha” para atrair os insetos. Era a evolução a
serviço da fertilização cruzada.
Hoje, sabe-se que, além de inspirar
animações infantis e fantasias de carnaval, as abelhas são essenciais na
polinização da maioria dos ecossistemas do planeta. De acordo com a Organização
das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), esses insetos são
responsáveis por 75% dos cultivos destinados à alimentação humana no
mundo.
Assim, “o que antes era a imagem
pitoresca de insetos zumbindo em torno de flores multicoloridas
transformava-se, agora [com Darwin], num drama essencial da vida, cheio de
significado e profundidade biológica”, como escreveu o neurocientista Oliver
Sacks, no livro O Rio da Consciência.
Há meses, no entanto, esse “drama essencial
da vida” parece estar sendo dirigido por Quentin Tarantino: entre dezembro de
2018 e fevereiro de 2019, cerca de 500 milhões de abelhas foram
encontradas mortas nos estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, São Paulo e Mato Grosso do Sul.
Análises laboratoriais e laudos técnicos — como o do Laboratório Nacional
Agropecuário do Rio Grande do Sul (Lanagro-RS), do Ministério da Agricultura —
apontam para a presença de agrotóxicos nas abelhas mortas, no mel, nas crias e
nos favos.
Entre os inseticidas encontrados
estão aqueles à base de neonicotinóides e o Fipronil, produto proibido na
Europa por conta do risco aos insetos, e responsável por um escândalo alimentar
envolvendo seu uso ilegal e ovos de galinha contaminados, em 2017.
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Rio Grande do Sul é
o estado que mais matou abelhas desde 2018 (Infográfico: Renata Miwa)
O roteiro da história dos pesticidas
não é tão óbvio para movimentos como o Colmeia Viva, projeto liderado pelo
Sindicato Nacional das Indústrias de Produtos para Defesa Vegetal (Sindiveg) e
apoiado por empresas fabricantes de agroquímicos, como Bayer, Basf e Syngenta.
Segundo a entidade, “não há registro de mortalidade de abelhas criadas — nem as
nativas brasileiras, nem as exóticas — em culturas que utilizam o serviço
comercial de polinização”.
Em um comunicado, o grupo afirma que
a morte desses insetos está relacionada a uma espécie que não é nativa do
Brasil, a Apis mellifera (ou Abelha-europeia), um tipo criado por apicultores
para produção de mel e própolis; e que a principal causa do problema é a falta
de diálogo entre agricultores e apicultores, o que o projeto visa
reforçar.
Desde 2011, a Bayer, que fabrica
inseticidas neonicotinóides, também tem um programa global de cuidado com a
saúde das abelhas, o Bee Care. No Brasil, além de parcerias com pesquisadores
dedicados a entender o assunto, a empresa destaca o projeto de Hotel das
Abelhas, peças construída com materiais naturais que servem de abrigo para
polinizadores solitários que perderam seu habitat natural.
“O problema não é tão sério que
mereça denúncias em escala mundial. Ninguém comprovou esse número [de 500
milhões de abelhas mortas], precisamos questioná-lo para ver se não é
superestimado”, afirma o engenheiro agrônomo Decio Gazzoni, pesquisador da
Embrapa Soja e membro Comitê Científico da Associação Brasileira de Estudos das
Abelhas (A.B.E.L.H.A.), citando uma estimativa do site Poder 360, que afirma
que o número de mortes não passa de 0,2% das abelhas melíferas.
O dado de “500 milhões de abelhas
mortas” foi resultado de um levantamento feito pela Agência Pública e a ONG
Repórter Brasil, que usou como base pesquisas acadêmicas e estatísticas de
associações de apicultura e secretarias de agricultura, como a Câmara Setorial
de Apicultura da Secretaria de Agricultura, Pecuária e Desenvolvimento Rural do
Rio Grande do Sul — estado que é o maior produtor apícola do país e que,
sozinho, registrou a morte de 400 milhões de abelhas.
Mas esse é só o clímax do filme de
terror dos insetos. Através de notícias publicadas na imprensa e de
investigações do Ministério Público, os veículos identificaram ainda que, pelo
menos, dez estados brasileiros registram mortes recorrentes de polinizadores
desde 2005.
Um estudo de três anos realizado pelo
Colmeia Viva, em parceria com a Unesp e a UFSCar, mostrou que a maioria dos
casos envolvendo mortes de insetos por agrotóxicos foi resultado do uso
incorreto dos produtos, ou ao uso fora da lavoura. No entanto, uma pesquisa das
mesmas universidades, coordenada pela bióloga Elaine Zacarin e publicada neste
ano no periódico Scientific Reports, do grupo Nature, mostrou que, mesmo quando
usados em doses não letais, os agrotóxicos podem alterar o comportamento e
encurtar a vida das abelhas em até 50%.
“Muitos dos argumentos utilizados
para justificar o uso de agrotóxicos só levam em conta o uso em si, e não todo
o universo que o produto afeta”, afirma Iran Magno, da campanha de Agricultura
e Alimentação do Greenpeace. “Agrotóxico é veneno, faz mal à saúde e impacta o
meio ambiente. Quando vemos justificativas do tipo [que apontam para o mau
uso], o que percebemos é que os produtores rurais são afetados, sim, e que
muitas vezes não tem nenhum serviço de apoio e fiscalização que o ajude a
entender os perigos oferecidos pelos produtos.”
A briga científica
sobre os males dos agrotóxicos
Quando se amplia a questão dos
agrotóxicos, percebe-se que, de um filme de Tarantino, o tema passa a ser
melhor comparado a uma estranha série de David Lynch, em que a realidade é algo
questionável. Como lembra o agrônomo Luiz Cláudio Meirelles, pesquisador da
Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz, existe ciência para defender
agrotóxicos e também para atacá-los. “Tem ciência para todos os gostos. Mas
essa ciência que diz que os produtos [agrotóxicos] não são um problema não tem
elementos para fazer essa afirmação”, afirma Meirelles.
Um dos principais agroquímicos que
representam essa disputa acirrada pela verdade é o glisofato, o herbicida mais
consumido no mundo, usado para matar ervas daninhas em plantações de soja,
milho, trigo, algodão e café. Só no Brasil existem 110 produtos, de 29 empresas
diferentes, que usam o glisofato em sua composição. Em 2017, foram 173 mil
toneladas vendidas do herbicida — três vezes mais do que o 2,4-D, segundo
agrotóxico mais vendido.
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Glisofato e derivados
são os mais utilizados entre agrotóxicos no Brasil (Infográfico: Renata Miwa)
O mesmo herbicida capaz de controlar
mais de 150 espécies de plantas “não desejáveis” também é alvo de mais 18 mil
processos nos Estados Unidos, por associação ao câncer. Quem responde pelos
processos é a Bayer, que controla a Monsanto; e é a maior corporação agrícola
do mundo, com um quarto do mercado de agrotóxicos, segundo o Atlas do
Agronegócio, publicado pelas fundações Heinrich Böll e Rosa Luxemburgo.
Para o toxicologista Flavio Zambrone,
presidente do Instituto Brasileiro de Toxicologia (IBTox), esses 18 mil
processos se devem a uma confusão entre o glisofato e o produto que traz a
substância em sua composição, o Roundup. Já na primeira audiência, a Monsanto
apresentou estudos toxicológicos que comprovam a falta de relação entre a
molécula do herbicida e o linfoma não-Hodgkin — tipo de câncer apresentado pelo
jardineiro que primeiro processou a empresa.
A defesa do jardineiro, no entanto,
afirmou que os estudos diziam respeito somente ao glisofato e não atestariam a
segurança do Roundup (que inclui uma mistura de outras substâncias) e, assim, a
relação entre o herbicida e o câncer ficou em aberto. “O júri popular se
sensibilizou com o senhor doente e acabou condenando [a Monsanto]. Depois
disso, vejo vários advogados no Facebook procurando clientes com o mesmo tipo
de câncer para entrar com ações e obter indenizações. Daí esse grande número de
processos”, explica Zambrone. “Como toxicologista, entendo que não há uma
relação confirmada e extremamente consistente entre esse tipo de câncer e o
glifosato.”
Várias agências reguladoras reforçam
a afirmação de Zambrone. Baseado em centenas de estudos, tanto a EPA (Agência
de Proteção Ambiental norte-americana) quanto a EFSA (Autoridade Europeia de
Segurança Alimentar), a ECHA (Agência Europeia de Produtos Químicos) e a
própria Anvisa concordam que o glisofato é seguro quando usado de forma
correta. Além disso, em nota à reportagem, a Bayer afirmou que apoia seus
produtos e que vai defendê-los vigorosamente.
O problema é que, desde 2015, a
Agência Internacional para Pesquisa sobre Câncer (Iarc), braço da Organização
Mundial de Saúde, reforça, com base em diversas pesquisas, que o glisofato é
“provavelmente cancerígeno” para humanos. “Parece que a Iarc escolheu a dedo os
estudos, muitos com problemas até de metodologia. Do ponto de vista científico,
a agência fez uma avaliação pobre, rasa e discrepante de todo o restante da
comunidade científica”, acredita Zambrone.
Para o agrônomo Luiz Cláudio
Meirelles, talvez, essa discrepância tenha se dado justamente por razões
científicas. “As agências que contestam a Iarc são reguladoras. Essa é uma
diferença importante, porque a Iarc não registra produtos, ela não tem esse
papel, ela se baseia no conhecimento técnico sobre o assunto”, afirma o
pesquisador da Fiocruz. “As agências reguladoras acabam tendo uma preocupação
econômica relacionada ao produto. E, nesse caso, não é qualquer produto: é o
mais consumido do mercado. Além disso, a Iarc é bastante conservadora, ela
custa a fazer observações desse tipo.”
No Brasil, em fevereiro de 2019, a
Anvisa concluiu a reavaliação do glisofato, pendente desde 2008, e constatou
que ele não causa dano à saúde. Antes de fechar a regulamentação sobre a
questão, a agência abriu uma consulta pública de 90 dias (que ainda consta como
em andamento).
“Existem vários estudos que reforçam a suspeita de
câncer. Mesmo que isso não fosse elemento suficiente para tomar uma decisão,
deveríamos partir para medidas de redução de uso e maior controle”, acredita
Meirelles. “Não conheço nada na história da humanidade que tenha sido apontado
como problemático e depois tenha virado santo.” A única certeza é a de que não
existe tédio neste drama alimentar, em que os espectadores são os próprios
personagens principais e a comida no prato pode ser tanto a vilã quanto a
mocinha.
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