terça-feira, 19 de novembro de 2019

Dossiê Agrotóxico: Morte de 500 milhões de abelhas reacende debate sobre riscos de saúde


                                                                                                                            Yahoo Finanças,
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Apicultor protesta em frente ao encontro anual de acionistas da Bayer em Bonn, na Alemanha, em abril de 2019 (Foto: REUTERS/Wolfgang Rattay)

Por Nathan Fernandes (@nathanef)
Até o século 18, os cientistas acreditavam que, como “filhas de chocadeira”, as flores se fecundavam sozinhas. Foi só em 1793 que o botânico alemão Christian Konrad Sprengel observou que as abelhas carregavam pólen de uma flor para outra. Mas só observou mesmo, porque, preso à ideia de autofecundação, ele não percebeu que esse transporte era essencial para a variedade de padrões, cores, néctares e perfumes. Quem notou isso foi um fã seu: Charles Darwin, quem entendeu que toda essa variedade das plantas não passava de uma “artimanha” para atrair os insetos. Era a evolução a serviço da fertilização cruzada. 
Hoje, sabe-se que, além de inspirar animações infantis e fantasias de carnaval, as abelhas são essenciais na polinização da maioria dos ecossistemas do planeta. De acordo com a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), esses insetos são responsáveis por 75% dos cultivos destinados à alimentação humana no mundo. 
Assim, “o que antes era a imagem pitoresca de insetos zumbindo em torno de flores multicoloridas transformava-se, agora [com Darwin], num drama essencial da vida, cheio de significado e profundidade biológica”, como escreveu o neurocientista Oliver Sacks, no livro O Rio da Consciência
Há meses, no entanto, esse “drama essencial da vida” parece estar sendo dirigido por Quentin Tarantino: entre dezembro de 2018 e fevereiro de 2019, cerca de 500 milhões de abelhas foram encontradas mortas nos estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, São Paulo e Mato Grosso do Sul. Análises laboratoriais e laudos técnicos — como o do Laboratório Nacional Agropecuário do Rio Grande do Sul (Lanagro-RS), do Ministério da Agricultura — apontam para a presença de agrotóxicos nas abelhas mortas, no mel, nas crias e nos favos. 
Entre os inseticidas encontrados estão aqueles à base de neonicotinóides e o Fipronil, produto proibido na Europa por conta do risco aos insetos, e responsável por um escândalo alimentar envolvendo seu uso ilegal e ovos de galinha contaminados, em 2017.

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Rio Grande do Sul é o estado que mais matou abelhas desde 2018 (Infográfico: Renata Miwa)

O roteiro da história dos pesticidas não é tão óbvio para movimentos como o Colmeia Viva, projeto liderado pelo Sindicato Nacional das Indústrias de Produtos para Defesa Vegetal (Sindiveg) e apoiado por empresas fabricantes de agroquímicos, como Bayer, Basf e Syngenta. Segundo a entidade, “não há registro de mortalidade de abelhas criadas — nem as nativas brasileiras, nem as exóticas — em culturas que utilizam o serviço comercial de polinização”. 
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Em um comunicado, o grupo afirma que a morte desses insetos está relacionada a uma espécie que não é nativa do Brasil, a Apis mellifera (ou Abelha-europeia), um tipo criado por apicultores para produção de mel e própolis; e que a principal causa do problema é a falta de diálogo entre agricultores e apicultores, o que o projeto visa reforçar. 
Desde 2011, a Bayer, que fabrica inseticidas neonicotinóides, também tem um programa global de cuidado com a saúde das abelhas, o Bee Care. No Brasil, além de parcerias com pesquisadores dedicados a entender o assunto, a empresa destaca o projeto de Hotel das Abelhas, peças construída com materiais naturais que servem de abrigo para polinizadores solitários que perderam seu habitat natural. 
“O problema não é tão sério que mereça denúncias em escala mundial. Ninguém comprovou esse número [de 500 milhões de abelhas mortas], precisamos questioná-lo para ver se não é superestimado”, afirma o engenheiro agrônomo Decio Gazzoni, pesquisador da Embrapa Soja e membro Comitê Científico da Associação Brasileira de Estudos das Abelhas (A.B.E.L.H.A.), citando uma estimativa do site Poder 360, que afirma que o número de mortes não passa de 0,2% das abelhas melíferas. 
O dado de “500 milhões de abelhas mortas” foi resultado de um levantamento feito pela Agência Pública e a ONG Repórter Brasil, que usou como base pesquisas acadêmicas e estatísticas de associações de apicultura e secretarias de agricultura, como a Câmara Setorial de Apicultura da Secretaria de Agricultura, Pecuária e Desenvolvimento Rural do Rio Grande do Sul — estado que é o maior produtor apícola do país e que, sozinho, registrou a morte de 400 milhões de abelhas. 
Mas esse é só o clímax do filme de terror dos insetos. Através de notícias publicadas na imprensa e de investigações do Ministério Público, os veículos identificaram ainda que, pelo menos, dez estados brasileiros registram mortes recorrentes de polinizadores desde 2005. 
Um estudo de três anos realizado pelo Colmeia Viva, em parceria com a Unesp e a UFSCar, mostrou que a maioria dos casos envolvendo mortes de insetos por agrotóxicos foi resultado do uso incorreto dos produtos, ou ao uso fora da lavoura. No entanto, uma pesquisa das mesmas universidades, coordenada pela bióloga Elaine Zacarin e publicada neste ano no periódico Scientific Reports, do grupo Nature, mostrou que, mesmo quando usados em doses não letais, os agrotóxicos podem alterar o comportamento e encurtar a vida das abelhas em até 50%. 
“Muitos dos argumentos utilizados para justificar o uso de agrotóxicos só levam em conta o uso em si, e não todo o universo que o produto afeta”, afirma Iran Magno, da campanha de Agricultura e Alimentação do Greenpeace. “Agrotóxico é veneno, faz mal à saúde e impacta o meio ambiente. Quando vemos justificativas do tipo [que apontam para o mau uso], o que percebemos é que os produtores rurais são afetados, sim, e que muitas vezes não tem nenhum serviço de apoio e fiscalização que o ajude a entender os perigos oferecidos pelos produtos.”
A briga científica sobre os males dos agrotóxicos
Quando se amplia a questão dos agrotóxicos, percebe-se que, de um filme de Tarantino, o tema passa a ser melhor comparado a uma estranha série de David Lynch, em que a realidade é algo questionável. Como lembra o agrônomo Luiz Cláudio Meirelles, pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz, existe ciência para defender agrotóxicos e também para atacá-los. “Tem ciência para todos os gostos. Mas essa ciência que diz que os produtos [agrotóxicos] não são um problema não tem elementos para fazer essa afirmação”, afirma Meirelles. 
Um dos principais agroquímicos que representam essa disputa acirrada pela verdade é o glisofato, o herbicida mais consumido no mundo, usado para matar ervas daninhas em plantações de soja, milho, trigo, algodão e café. Só no Brasil existem 110 produtos, de 29 empresas diferentes, que usam o glisofato em sua composição. Em 2017, foram 173 mil toneladas vendidas do herbicida — três vezes mais do que o 2,4-D, segundo agrotóxico mais vendido. 
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Glisofato e derivados são os mais utilizados entre agrotóxicos no Brasil (Infográfico: Renata Miwa)

O mesmo herbicida capaz de controlar mais de 150 espécies de plantas “não desejáveis” também é alvo de mais 18 mil processos nos Estados Unidos, por associação ao câncer. Quem responde pelos processos é a Bayer, que controla a Monsanto; e é a maior corporação agrícola do mundo, com um quarto do mercado de agrotóxicos, segundo o Atlas do Agronegócio, publicado pelas fundações Heinrich Böll e Rosa Luxemburgo. 
Para o toxicologista Flavio Zambrone, presidente do Instituto Brasileiro de Toxicologia (IBTox), esses 18 mil processos se devem a uma confusão entre o glisofato e o produto que traz a substância em sua composição, o Roundup. Já na primeira audiência, a Monsanto apresentou estudos toxicológicos que comprovam a falta de relação entre a molécula do herbicida e o linfoma não-Hodgkin — tipo de câncer apresentado pelo jardineiro que primeiro processou a empresa. 
A defesa do jardineiro, no entanto, afirmou que os estudos diziam respeito somente ao glisofato e não atestariam a segurança do Roundup (que inclui uma mistura de outras substâncias) e, assim, a relação entre o herbicida e o câncer ficou em aberto. “O júri popular se sensibilizou com o senhor doente e acabou condenando [a Monsanto]. Depois disso, vejo vários advogados no Facebook procurando clientes com o mesmo tipo de câncer para entrar com ações e obter indenizações. Daí esse grande número de processos”, explica Zambrone. “Como toxicologista, entendo que não há uma relação confirmada e extremamente consistente entre esse tipo de câncer e o glifosato.”
Várias agências reguladoras reforçam a afirmação de Zambrone. Baseado em centenas de estudos, tanto a EPA (Agência de Proteção Ambiental norte-americana) quanto a EFSA (Autoridade Europeia de Segurança Alimentar), a ECHA (Agência Europeia de Produtos Químicos) e a própria Anvisa concordam que o glisofato é seguro quando usado de forma correta. Além disso, em nota à reportagem, a Bayer afirmou que apoia seus produtos e que vai defendê-los vigorosamente.
O problema é que, desde 2015, a Agência Internacional para Pesquisa sobre Câncer (Iarc), braço da Organização Mundial de Saúde, reforça, com base em diversas pesquisas, que o glisofato é “provavelmente cancerígeno” para humanos. “Parece que a Iarc escolheu a dedo os estudos, muitos com problemas até de metodologia. Do ponto de vista científico, a agência fez uma avaliação pobre, rasa e discrepante de todo o restante da comunidade científica”, acredita Zambrone. 
Para o agrônomo Luiz Cláudio Meirelles, talvez, essa discrepância tenha se dado justamente por razões científicas. “As agências que contestam a Iarc são reguladoras. Essa é uma diferença importante, porque a Iarc não registra produtos, ela não tem esse papel, ela se baseia no conhecimento técnico sobre o assunto”, afirma o pesquisador da Fiocruz. “As agências reguladoras acabam tendo uma preocupação econômica relacionada ao produto. E, nesse caso, não é qualquer produto: é o mais consumido do mercado. Além disso, a Iarc é bastante conservadora, ela custa a fazer observações desse tipo.” 
No Brasil, em fevereiro de 2019, a Anvisa concluiu a reavaliação do glisofato, pendente desde 2008, e constatou que ele não causa dano à saúde. Antes de fechar a regulamentação sobre a questão, a agência abriu uma consulta pública de 90 dias (que ainda consta como em andamento). 
“Existem vários estudos que reforçam a suspeita de câncer. Mesmo que isso não fosse elemento suficiente para tomar uma decisão, deveríamos partir para medidas de redução de uso e maior controle”, acredita Meirelles. “Não conheço nada na história da humanidade que tenha sido apontado como problemático e depois tenha virado santo.” A única certeza é a de que não existe tédio neste drama alimentar, em que os espectadores são os próprios personagens principais e a comida no prato pode ser tanto a vilã quanto a mocinha. 


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