Denunciada por violência abusiva, intervenção em presídios do Pará
estende-se por prazo indeterminado. Agora, Força Tarefa ministra formação para
agentes penitenciários — na equipe, há até oficial afastado por violar Direitos
Humanos.
OutrasMídias
Por Lucas Silva e
Luisa Cytrynowicz, da Pastoral Carcerária, para a Ponte Jornalismo
“A FTIP [Força-Tarefa
de Intervenção Penitenciária] não está para tratar de um fato isolado, ela está
aqui para exercer um papel determinante que é introduzir uma nova cultura
dentro do cárcere”, declarou Helder Barbalho, Governador do Pará.
O escândalo que tomou
as manchetes do país há poucas semanas, escancarando a tortura como prática da
FTIP nas unidades prisionais do Pará, traz o questionamento urgente sobre os
mecanismos de gestão e disciplina em expansão nos cárceres pelo país. A Ponte
divulgou resultados do relatório do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à
Tortura que detalhava a situação de penúria do sistema no Pará.
Antes da criação da
FTIP, em 2017, pelo então ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, a
ocorrência de “crises” em uma unidade prisional poderia ensejar o envio da
Força Nacional, que atuava somente na parte externa dos presídios. A
estruturação da Força de Intervenção autorizou que os governos estaduais –
responsáveis pela gestão dos presídios – solicitassem, em “situações
extraordinárias”, apoio do governo federal para a realização dos serviços de
guarda, vigilância e custódia de presos.
Desde então, diversas
portarias do Ministério da Justiça e Segurança Pública regulamentaram a forma
de atuação da FTIP, bem como o envio das tropas para os estados do Rio Grande
do Norte, Roraima, Ceará, Amazonas e Pará.
Apesar de não constar
na lista do site do Depen (Departamento Penitenciária Nacional), a estreia da
FTIP se deu no Rio Grande do Norte, em janeiro de 2017, apenas um dia depois da
publicação da Portaria que autorizou a sua formação. A FTIP iniciou a
intervenção na Penitenciária de Alcaçuz, local em que, dias antes, uma rebelião
havia levado à morte de ao menos 26 pessoas.
A portaria de envio
da Força-Tarefa estabeleceu o prazo de 30 dias, mas os agentes foram mantidos
no território potiguar até agosto de 2018, sendo necessária a edição de onze
portarias de prorrogação do prazo de atuação. A FTIP atuou, assim, por um
período 18 vezes maior do que o inicialmente previsto.
A primeira
experiência de operação da FTIP explicitou, desde logo, que o “caráter
episódico” e “excepcional” cederia espaço para uma atuação duradoura. Não à toa,
pouco mais de 2 meses depois de deixar o Rio Grande do Norte, a FTIP foi objeto
de nova portaria, que criou uma Coordenadoria Institucional, responsável por
“planejamento, articulação, gestão e ação”, para a qual as secretarias
estaduais de administração penitenciária poderiam “subdelegar a gestão das
unidades prisionais” alvo de intervenção.
A nova regulamentação
muda radicalmente a proposta inicialmente prevista, ampliando as atribuições
que seriam realizadas em apoio aos governos de Estado, para uma competência de
substituição do poder de gestão do governo estadual “pelo período que perdurar
a ação”.
Três semanas depois,
em novembro de 2018, a Força-Tarefa realizou sua primeira incursão na região
norte do país, sendo chamada a atuar na Penitenciária Agrícola de Monte Cristo
(PAMC), Roraima. Prevista para durar 60 dias, a operação foi objeto de três
prorrogações desde então. Passado quase um ano do início da operação, a FTIP
permanece no local.
Desde o início da
intervenção, foram seis meses até a retomada das visitas familiares. Quando
equipe da Pastoral Carcerária Nacional esteve em Boa Vista, em junho deste ano,
a presença na FTIP na Penitenciária Agrícola de Monte Cristo impediu a
realização da visita religiosa na unidade. O isolamento dos presídios sob
intervenção é marca da atuação da Força-Tarefa, que tende a restringir ou mesmo
bloquear a entrada de famílias e entidades religiosas.
Em Boa Vista, em
conversa com a mãe de um preso da PAMC que acabara de fazer a primeira visita
do ano, depois de meses impedida de ter contato com seu filho, ela relatou que,
entre doenças, escassez de comida, dedos quebrados e humilhações que ele havia
sofrido, ela não reconheceu o filho. Depois de meses, ele teve de convencer à
própria mãe que naquele corpo abatido ele ainda resistia em viver.
No dia 25 de janeiro
de 2019, no caldo da crise no estado do Ceará, foram editadas três novas
portarias pelo Ministério da Justiça e da Segurança Pública tratando da Força
Tarefa de Intervenção Penitenciária. A primeira ampliou as possibilidades de
formação da Força-Tarefa. Se a portaria inaugural, de 2017, previa a
autorização para “situações extraordinárias de grave crise no sistema
penitenciário”, a nova determinação incluiu, dentre as opções, a formação da
Força-Tarefa “para treinamento e sobreaviso”, distanciando da ocorrência de
“crises” ou “distúrbios episódicos” para convocar sua atuação.
Ademais, a portaria
ampliou as competências da FTIP, incluindo atividades de “inteligência de
segurança pública que tenham relação com o sistema prisional”. Em seguida,
outra portaria mobiliza a FTIP para treinamento e sobreaviso por 180 dias.
Nesse mesmo dia, por fim, uma terceira portaria determina o envio da
Força-Tarefa para o Ceará. A criação oficial da FTIP na véspera de seu envio ao
Rio Grande do Norte e as alterações na sua estrutura logo antes das missões em
Roraima e no Ceará parecem indicar que o instrumento foi criado e flexibilizado
sob medida para determinadas incursões já previstas.
Como amplamente
noticiado, o estado do Ceará viveu uma onda de ataques nas ruas no início do
ano, o que foi acompanhado por uma reformulação de sua política prisional,
levada a cabo por Luis Mauro Albuquerque, que, do seio da FTIP passou a
Secretário de Administração Penitenciária do Rio Grande Norte em 2017 e, em
2019, assumiu a pasta no Ceará.
A equipe da Pastoral
Carcerária Nacional realizou visitas nas unidades cearenses em julho e agosto
do ano corrente. Observaram uma uniformidade na gestão das prisões em
diferentes partes do estado, marcada por intenso rigor da disciplina na
custódia dos presos. Nessas unidades prisionais, reina um silêncio que atordoa.
Não é permitido conversar ou rezar em voz alta e durante parte considerável do
dia os presos são obrigados a ficar em posição de “procedimento”: agachados,
enfileirados, com as pernas cruzadas e as mãos atrás da cabeça, que deve se
manter baixa. Enquanto durar o “procedimento”, não são permitidos movimentos,
barulhos ou olhares para o lado, sob pena de castigo. Há um olhar de terror por
parte dos presos.
Os cárceres são
marcados também por extrema superlotação, ausência de colchões, realização de
transferências em massa de presos sem decisão judicial, falta de atividades de
estudo, trabalho ou lazer, restrição ao banho de sol e uso indiscriminado de
spray de pimenta. Foram diversos os presos que tiveram os dedos quebrados por
agentes integrantes da FTIP – técnica de tortura abertamente defendida por Luis
Mauro Albuquerque, ainda em 2017, em Natal.
Ao passo que a
Força-Tarefa pode ser encarregada da gestão das unidades prisionais por um
período de tempo, a FTIP assume parte, também, no processo de formação dos
agentes penitenciários estaduais. O Depen noticiou ocasiões em que agentes da
Força Tarefa realizaram treinamentos em conjunto com forças de segurança
estaduais, visando a uma padronização na atuação. No Pará, inclusive, o
coordenador da FTIP, Maycon Rottava, que chegou a ser afastado por decisão da
Justiça Federal por conta das denúncias de tortura, ministrou a aula inaugural
para 642 convocados do Curso de Formação para agentes penitenciários.
O treinamento garante
que a prática de atuação e disciplinamento dos presos típica da FTIP se
mantenha mesmo que o período oficial de atuação da força seja encerrado, pois
já absorvido passa a ser reproduzido pelos agentes prisionais do Estado no
cotidiano das unidades prisionais. O Ceará é a demonstração clara desta
realização: a saída das tropas da Força de Intervenção do território cearense
não fez cessar esse modus operandi de atuação nos presídios, detalhadamente
descrito em relatório do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura e
em relatos de outras organizações.
Desde então, a FTIP
foi convocada a atuar nos estados do Amazonas e Pará, em maio e julho de 2019,
respectivamente, após os massacres ocorridos nas cidades de Manaus e Altamira.
Em Manaus, também, equipe da Pastoral Carcerária Nacional teve a autorização
para a realização de visita vetada durante a intervenção no Instituto Penal
Antônio Trindade (IPAT).
As narrativas
trazidas por presos que receberam o alvará de soltura ainda na vigência da
intervenção em Manaus foram gravíssimas. Relatos apontaram que os presos foram
forçados a raspar o cabelo, que ficaram dias sem banho de sol, com falta de
comida e ausência de água, obrigados a ficar constantemente em posição de
procedimento, “igual um feto no chão, acocorado, com as pernas encolhidas, a
mão no pescoço e a cabeça abaixada”.
Um integrante da
Pastoral ingressou na unidade acompanhando comitiva da Comissão de Direitos
Humanos e Minorias da Câmara Federal (CDHM). O relatório produzido pelo grupo
apontou que, mesmo em visita com os parlamentares, “a Pastoral Carcerária foi
impedida de conversar com os internos de forma reservada e com registro
fotográfico – o que, somado ao fato de que a Defensoria Pública e o Ministério
Público não visitaram os presos reservadamente após os massacres – agrava a
suspeita de tortura. Em resposta ao questionamento da Pastoral Carcerária, a
SEAP informou que a FTIP impossibilita esse tipo de fiscalização.”
Quanto ao Pará,
curioso notar que apesar da atuação da Força-Tarefa ter sido legitimada por
conta da ocorrência do massacre, os agentes não foram enviados à cidade de
Altamira, onde o conflito foi deflagrado, e sim ao Complexo Santa Izabel, a
centenas de quilômetros de distância. E os relatos de tortura, que ensejaram a
recomendação de apuração de tortura por parte do Ministério Público Federal são
de extrema gravidade.
Na Centro de
Reeducação Feminino de Ananindeua, de acordo com documento elaborado pela
OAB-PA (Ordem dos Advogados do Brasil – Pará) após vistoria na unidade, os
agentes da FTIP foram acusados de obrigar as mulheres a ficarem apenas com suas
roupas íntimas, algumas completamente nuas, atiraram bombas dentro das celas e
spray de pimenta.
Todas foram forçadas
a ficar em posição de “procedimento” por horas, sendo que algumas foram
colocadas sentadas em um formigueiro apenas de calcinha e sutiã. Consta que
foram sete dias sem fazer higiene pessoal, com a comida vindo azeda ou
estragada e água para beber somente da torneira.Ainda houve relatos de presas
que menstruavam nos uniformes, pois a FTIP não permitia a entrada de absorvente
na unidade.
A FTIP é composta por
agentes penitenciários federais, estaduais e do Distrito Federal, enviados
pelos estados por conta de acordos firmados com a Força Nacional de Segurança
Pública. Nas palavras de Mauro Albuquerque, ao tratar do envio de agentes
penitenciários cearenses à força de atuação no Pará: “Eles vão intervir,
reestruturar o sistema, treinar os agentes de lá, implantar procedimentos e
contribuir com os irmãos paraenses. Na nossa crise de janeiro tivemos ajuda de
vários entes da federação, então nada mais justo agora do que mandar nossos
agentes cearenses treinados e capacitados na nova doutrina para auxiliar nas
reconstruções de outros sistemas”.
A forma de atuação da
Força-Tarefa de Intervenção Penitenciária tende a se espalhar, exportando as
condições torturantes observadas nos presídios do Ceará e do Pará para outros
cantos do país. As transferências de presos sem determinação judicial, as
restrições ao banho de sol – que em diversos locais não alcança nem as duas
horas diárias garantidas até no regime mais gravoso de cumprimento de pena -, a
utilização rotineira de spray de pimenta e a prática degradante do
“procedimento” impregnaram o dia a dia de presídios em tantos outros estados.
Diante deste cenário,
a Pastoral Carcerária, a Associação para a Prevenção da Tortura (APT) o
Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, o Mecanismo Estadual de
Prevenção e Combate à Tortura do Rio de Janeiro e outras organizações
alertaram, em audiência frente a Comissão Interamericana de Direitos Humanos,
para a necessidade de extinção da Força-Tarefa de Intervenção Penitenciária.
Há poucas semanas,
Sérgio Moro, ministro da Justiça e Segurança Pública, externou o desejo de
aprofundar a utilização da Força de Intervenção, empregando-a “para uma atuação
até mais preventiva”. Sob responsabilidade direta do Ministério da Justiça,
mais do que uma força de intervenção, a FTIP se mostra cada vez mais como linha
de frente de um novo modelo de gestão dos presídios brasileiros marcado de
ponta a ponta por violações à integridade física e psíquica da população
encarcerada.
Outro lado
A Ponte procurou o Ministério da Justiça e Segurança Pública para comentar os
itens criticados pela Pastoral Carcerária e, em nota, a pasta reiterou o
discurso oficial de que a FTIP – que é chamada de força de cooperação – tem
caráter episódico, planejado para exercer coordenação de atividades de guarda,
vigilância, custódia de presos, com “objetivo principal de humanizar a pena,
garantindo o cumprimento da Lei de Execução Penal, bem como atuar na redução
brusca da criminalidade extramuros”.
Na sequência da nota,
o órgão cita exemplos da atuação da FTIP. “No Pará, após 90 dias de atuação,
além da garantia da segurança para mais de 53 mil atendimentos de saúde, 17 mil
atendimentos jurídicos, aplicação de provas do Exame Nacional para Certificação
de Competências de Jovens e Adultos (Encceja), cursos profissionalizantes,
houve redução de 54,86% e 66,31% dos índices da criminalidade nos meses de
agosto e setembro, respectivamente. Houve também impacto nos índices de agentes
públicos assassinados. Nenhum homicídio de policial foi registrado de agosto
até hoje, em Belém e região Metropolitana, segundo a Secretaria de Segurança
Pública (Segup)”.
Por fim, o Ministério
da Justiça e Segurança Pública informa que, “nos casos que haja suspeitas de
possíveis irregularidades na atuação da FTIP, são instauradas sindicâncias a
fim de apurar as supostas denúncias. Caso sejam comprovados eventuais desvios
de conduta, os agentes serão devidamente afastados de suas funções e
responderão na forma da lei”, conclui.
EM TEMPO: O Sistema Carcerário Brasileiro deixa muito a desejar, pois não há uma política de ressocialização dos presos e que evite a superlotação dos presídios, além da morosidade dos julgamentos dos processos judiciais. É um país à deriva.
EM TEMPO: O Sistema Carcerário Brasileiro deixa muito a desejar, pois não há uma política de ressocialização dos presos e que evite a superlotação dos presídios, além da morosidade dos julgamentos dos processos judiciais. É um país à deriva.
Nenhum comentário:
Postar um comentário