“Pobres e ricas todas abortam” – mas as pobres morrem.
Luiza Tonon –
militante do PCB e dirigente do Coletivo Feminista Classista Ana Montenegro
Jandira, 27 anos, foi
queimada e abandonada, após ser vítima fatal de um aborto de uma clínica
clandestina no Rio de Janeiro. Mãe de uma menina, foi sozinha à clínica por se
sentir envergonhada, e suas últimas palavras ao marido foram: “Amor, mandaram
desligar o telefone, tô em pânico, ore por mim!”.
Elizângela, 32 anos, teve seu
corpo encontrado em uma estrada de Niterói/RJ após avisar a família que iria a
uma clínica ao ter tomado a nada fácil decisão de interromper uma gestação
indesejada. No mesmo Estado, Ingriane, de 31 anos, faleceu no hospital, com uma
infecção generalizada, após procurar uma pessoa que realizaria um aborto nela
com um talo de mamona, planta altamente tóxica. Em Itapema/SC, Caroline, de 23
anos, foi encontrada morta em seu banheiro, após ter uma hemorragia causada por
remédios com o fim de aborto.
Já em Porto Velho/RO, uma outra mulher de 23 anos
também utilizou comprimidos para terminar uma gravidez que não poderia
prosseguir e, por necessitar de ajuda médica para não morrer, acabou recebendo
voz de prisão no hospital. Em Birigui/SP, a prisão também foi o destino de uma
mulher de 25 anos, denunciada pelo médico que deveria ajudá-la num momento em
que precisou de socorros para não se tornar mais uma vítima fatal da
criminalização do aborto no Brasil.
Elizângela, Jandira,
Caroline. Anônimas, milhares, mortas ou presas. Mulheres, mulheres como nós,
brasileiras. Acreanas, catarinenses, goianas, baianas, cariocas, mineiras ou
pernambucanas. Difícil quem não conheça nem tenha ouvido falar de uma amiga,
vizinha, parente, amiga da amiga que tenha procurado um meio para não ser mãe
quando não podia ou não queria. Em uma pesquisa feita pela importante cientista
Débora Diniz em 2010 – que veio a receber ameaças de morte por parte de uns que
se dizem “pró-vida” – descobriu-se que, em média, entre cada 5 brasileiras até
40 anos, pelo menos 1 já realizou um aborto.
Cerca de 1300
mulheres abortam clandestinamente todos os dias em nosso país, e diferente do
que se poderia imaginar por preconceitos sobre a mulher que aborta, essa
pesquisa mostra que ela é uma de nós, uma brasileira como a maioria. 88%
declaram ter religião – 25% dessas mulheres são evangélicas e 56% católicas.
Grupos de mulheres religiosas como o Católicas pelo Direito de Decidir e o mais
recente Evangélicas pelo Direito de Decidir mostram que não só professar uma religião
não impede – e nem deve impedir – alguma mulher de abortar, como mostram que há
mulheres pertencentes a igrejas que usualmente se colocam contra os direitos
reprodutivos das mulheres que não concordam com essa posição, e lutam para
mudá-la.
Há o entendimento de que manter o aborto ilegal só mata mulheres e não
“defende vidas”, como alguns se esforçam por dizer, com argumentos espirituais
e morais para serem contrários à legalização do aborto.
Elas são de todas as
idades e faixas de renda, em todas as regiões do Brasil e de todas as etnias.
Porém, essa mesma diversidade do perfil de mulheres que abortaram não se repete
entre os números das que morreram por abortar. Os meios mais inseguros e,
consequentemente, os óbitos pelo aborto clandestino são mais comuns entre
mulheres negras, de escolaridade e renda mais baixa.
Por essa razão, a
discussão sobre a descriminalização do aborto não é sobre o aborto ser errado
ou não. Ou sobre as implicações espirituais de interromper ou não uma gravidez,
o que, por sua vez, não cabe ao Estado, que no Brasil é, ou ao menos deveria
ser, laico. Não é também sobre ser a favor ou não do aborto. Nós, feministas
classistas, somos a favor de educação sexual para todos, para que a população
entenda de fato sobre saúde, sexualidade e contracepção. Somos a favor de
políticas públicas efetivas que deem acesso a métodos contraceptivos para
homens e mulheres.
E como o fato de o aborto ser ilegal não faz a prática ser
menos comum – mas pelo contrário, já que toda mulher já ouviu falar sobre
métodos para fazê-lo e conhece alguém que já o fez -, defendemos o direito de
nenhuma outra mulher ter de arriscar sua vida ao procurar abortar.
Não é também sobre
ser “pró-escolha” ou “pró-vida”: trata-se de ser a favor da vida das mulheres,
principalmente negras e pobres, que sangram todos os dias no Brasil por não
terem acesso a um aborto seguro. Trata-se de perceber que não é uma escolha
fácil para nenhuma mulher interromper uma gravidez. Mas sim que as mulheres não
podem continuar morrendo por algo que já acontece no Brasil independente de ser
legal ou não e que, em uma realidade de pobreza e desemprego feminino, de
milhões de filhos sem registro paterno, de ausência de creches e assistência
pública às mães, ter mais filhos por vezes não é uma escolha possível para
muitas mulheres.
A questão sobre a
descriminalização do aborto não é se “devemos ser a favor ou contra o aborto”,
mas sim “abortos são realizados todos os dias no Brasil – essas mulheres
deveriam sair de hospitais algemadas ou em um caixão?”. É sobre as mais de 3
milhões de mulheres hoje no Brasil sobreviventes de aborto clandestino, e sobre
as centenas que abortarão amanhã e depois de amanhã. Deveriam elas ser presas?
Mulheres que são obrigadas a buscar atendimento médico para não morrer deveriam
ser consideradas criminosas? Alguma mulher merece morrer por não desejar ser
mãe em um momento que ela não pode?
Sobretudo, a questão
do direito ao aborto legal e seguro é uma questão de classe. A vida das
mulheres trabalhadoras – essas sim, que morrem ou são presas – é diretamente
afetada pela criminalização do aborto, pois as mulheres de camadas mais ricas
têm acesso a médicos e clínicas onde realizam seus abortos com acompanhamento e
segurança, se não mesmo viajam ao exterior para abortarem seguramente. Já os
métodos caseiros, muitas vezes de pouca eficiência e de higiene inadequada, em
clínicas literalmente de fundo de quintal, ou por comprimidos falsos e de
qualidade duvidosa, utilizados pelas mulheres mais pobres, são as principais
causas de mortes como as de Elizângela, de Jandira, Ingriane ou Caroline.
Débora Diniz, a
partir de sua mencionada pesquisa, conclui que ”ricas e pobres, todas abortam”,
e a realidade nos grita que sim, todas abortam, mas as pobres morrem. As
mulheres da classe trabalhadora, sujeitas a inúmeras violências do patriarcado,
do racismo e do capitalismo em suas vidas, todos os dias, são ainda vítimas de
um modo de feminicídio originado nessa hipócrita criminalização.
Por acharmos que
nenhuma outra mulher deve ser presa ou morta por abortar, nós do Coletivo
Feminista Classista Ana Montenegro estamos em luta. Cotidianamente, em nossos
atos e formações, pela descriminalização e legalização do aborto seguro e
gratuito no país, a exemplo de que foi feito na mobilização para os atos em
função do dia 28 de setembro, dia de luta pela descriminalização do aborto na
América Latina e no Caribe.
Queremos que o aborto
seja descriminalizado, mas não só: queremos também o direito a um aborto feito
por profissionais qualificados pelo SUS, com acompanhamento psicológico e
médico adequado, que seja acessível a todas as mulheres com até 12 semanas de
gestação. Queremos que também nenhuma mulher já com o direito ao aborto
previsto em lei – em caso de fetos anencéfalos, de mulheres sobreviventes de
estupro e com risco de vida pela gravidez – tenha esse direito negado ou
dificultado por médicos ou juízes, como acontece na prática em diversas cidades
do Brasil.
E queremos esse
direito não só para as mulheres brasileiras, mas para todas as mulheres do
mundo, lembrando ainda das milhares de latino-americanas e caribenhas também em
risco de prisão ou morte por precisarem interromper uma gravidez. Lembremos que
Cuba, pouco após sua vitoriosa revolução socialista, foi pioneira na região ao
trazer o direito básico do aborto legal e seguro para suas mulheres em 1965,
providência esta que trouxe, junto de diversas outras medidas, autonomia para
as mulheres decidirem sobre seus corpos e suas vidas, uma significativa queda
nas taxas de mortalidade materna.
Em 1995 e 2012, respectivamente, apenas dois
outros países legalizaram o aborto por decisão da mulher: Guiana e Uruguai. A
América Latina e o Caribe constituem a região do mundo com leis mais punitivas
e cerceadoras dos direitos reprodutivos e sexuais das mulheres. Por isso,
juntas lutamos, por nossas vidas, para que nossas vozes sejam ouvidas!
VIVAS NOS QUEREMOS!
NEM PRESA, NEM MORTA!
PELO DIREITO AO
ABORTO LEGAL, SEGURO E GRATUITO; PELA VIDA DAS MULHERES TRABALHADORAS!
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