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© Lucas Landau/Rede
Xingu + Indígenas se
apresentam durante encontro que reuniu representantes 14 etnias e de quatro
reservas extrativistas na Terra Indígena Menkragnoti, no Pará.
Quem visse na
semana passada um grupo de indígenas dividindo peixes assados em folhas de
bananeira numa aldeia à beira do rio Iriri, no sul do Pará, não poderia
imaginar que, há algumas décadas, vários dos povos ali presentes viviam em
guerra.
As rixas do passado
– que quase levaram um desses grupos ao extermínio – foram abandonadas em nome
de um objetivo maior: lutar contra o que eles consideram ameaças do governo
Jair Bolsonaro à Amazônia.
A lista de
preocupações inclui planos do governo para autorizar o arrendamento e a
mineração em terras indígenas e atitudes que estariam incentivando invasões por
garimpeiros e madeireiros em seus territórios, além da contaminação de rios
locais por agrotóxicos.
Espécie de Assembleia
Geral da ONU de povos da floresta, o encontro que ocorreu na última semana na
aldeia Kubenkokre, da Terra Indígena Menkragnoti, dos kayapós, reuniu
representantes de 14 etnias indígenas e de quatro reservas ribeirinhas da bacia
do Xingu.
A região, que ocupa
partes do Pará e de Mato Grosso, tem área equivalente à do Rio Grande do Sul e
é um dos últimos trechos preservados da Amazônia em sua porção oriental. Dados
do boletim Sirad-X, porém, indicam que a região perdeu 68,9 mil hectares
de floresta – equivalente à área de Salvador – entre janeiro e
junho deste ano. O boletim é produzido pela Rede Xingu+, que organizou a
assembleia e agrega 24 organizações ambientalistas e indígenas da região.
'Um só inimigo: o governo do
Brasil'
"Hoje nós
temos um só inimigo, que é o governo do Brasil, o presidente do Brasil, e as
invasões de não indígenas", diz à BBC News Brasil Mudjire Kayapó, um dos
líderes presentes. "Temos brigas internas, mas, para lutar contra este
governo, a gente se junta", ele afirma.
A organização do
encontro envolveu uma logística complexa. Indígenas deixaram suas aldeias rumo
às cidades mais próximas, onde foram recolhidos por ônibus fretados.
Único veículo jornalístico
não indígena a cobrir o evento, a BBC News Brasil iniciou a jornada em Sinop
(MT). De lá, foram cerca de sete horas de ônibus pela BR-163 e outras sete numa
estrada de terra em mata fechada até a aldeia, que tem cerca de 500 moradores.
Já no interior da
terra indígena, uma vara de porcos-do-mato cruzou a pista à frente do ônibus.
Avisados, caçadores kayapós foram ao local na manhã seguinte. Voltaram com três
porcos, que acabaram assados e servidos aos visitantes junto com carne de paca.
O cardápio também
oferecia arroz e feijão, incluídos para atender paladares mais sensíveis, além
de peixes pescados no Iriri servidos em folhas de bananeira.
Os debates
ocorreram na casa dos homens, construção no centro da aldeia, cercada por casas
dispostas em um grande círculo. Conhecidas pelas delicadas pinturas corporais,
as mulheres da aldeia raramente apareciam no encontro e passavam os dias entre
as roças e suas casas – detalhe que gerou uma saia-justa com uma visitante
ribeirinha (leia mais abaixo).
Missão de paz
Povo indígena mais
numeroso do Xingu, com cerca de 12 mil integrantes, os kayapós – que se
autodenominam mebêngôkre – fizeram questão de sediar o evento, o primeiro
encontro da Rede Xingu+, numa aldeia indígena (as três assembleias bienais
anteriores foram em cidades).
Ao sediar a
reunião, eles queriam selar de vez a paz com os vizinhos. "Não vamos
repetir o passado, vamos ter união daqui para a frente", discursou Kadkure
Kayapó, um dos caciques da aldeia.
Um dos resultados
do evento foi a criação de um conselho entre as organizações participantes para
unificar demandas e agilizar sua articulação política. Os kayapós também
buscavam fortalecer alianças com outros grupos num momento em que o próprio
povo está dividido.
Em duas das quatro
terras indígenas da etnia, alguns líderes têm permitido a ação de garimpeiros e
madeireiros. A situação é mais grave na Terra Indígena Kayapó, onde os rios
Fresco e Branco foram contaminados por mercúrio e desfigurados por balsas e
retroescavadeiras usadas pelos garimpeiros.
Em julho, uma
reportagem da BBC News Brasil mostrou em imagens de satélite o
avanço do garimpo na região desde o início do ano.
Assédio de garimpeiros
Para Doto Takakire,
um dos anfitriões do evento, a proposta do governo de liberar a mineração em
terras indígenas tornou alguns líderes mais suscetíveis ao assédio de
garimpeiros, que oferecem dinheiro em troca da permissão para atuar nos
territórios.
"Depois que
eles (líderes indígenas) pegam o dinheiro fácil, viciam e não querem mais
trabalhar. É algo humano: acontece com indígenas e não indígenas", afirma.
O garimpo é hoje
proibido em terras indígenas. A liberação da atividade, tratada pelo governo
Bolsonaro como prioritária, depende da aprovação de uma lei pelo Congresso.
Outra causa para o
aumento do garimpo, segundo Takakire, foi a diminuição nas multas
aplicadas pelo Ibama, órgão responsável por combater crimes
ambientais em terras indígenas. Até o meio de agosto, o número de autuações do
órgão caiu 30% em relação à média dos últimos três anos para o mesmo período.
Em entrevista à BBC, o
ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, disse que a redução no número de
multas não indica um afrouxamento do combate a ilícitos. Segundo Salles, o
Ibama tem buscado embasar mais suas autuações para que os infratores não
consigam se livrar das cobranças, priorizando a qualidade e não a quantidade de
multas.
Divisões causadas pelo garimpo
Líderes indígenas
favoráveis ao garimpo não foram convidados para o encontro, decisão que foi
questionada por alguns dos presentes.
"Aqui só temos
parentes que lutamos pelo meio ambiente, pela terra, pela água, mas não tem
nenhum parente que quer o agronegócio ou o garimpo nas aldeias. Vamos ficar só
debatendo entre nós?", questionou Oé Kayapó, representante da Associação
Floresta Protegida (AFP).
Ela cobrou dos
participantes convencer os ausentes a abandonar atividades destrutivas.
"Vamos continuar brigando pela preservação do território enquanto outros
brigam para ter garimpo e arrendamento de terra? Isso nos enfraquece, não dá
para continuar assim", afirma.
Organizadores
disseram que os grupos divergentes não foram convidados para evitar conflitos.
Tramitam na Câmara
dos Deputados propostas legislativas que permitiriam atividades agropecuárias
de larga escala em terras indígenas.
Defensores das
iniciativas, que também têm o respaldo do governo Bolsonaro, dizem que as
medidas buscam garantir melhores condições de vida às comunidades.
Já indígenas
contrários temem que as medidas abram o caminho para o arrendamento de suas
terras para grandes produtores rurais, o que ameaçaria seus modos de vida.
Eles debateram no
encontro alternativas econômicas ao agronegócio e à mineração. Foram
compartilhadas experiências bem-sucedidas e dificuldades de iniciativas que
buscam gerar renda sem derrubar a floresta, como o artesanato e o processamento
de frutos nativos.
Tradução simultânea
O encontro, que
durou três dias, reuniu etnias com vários idiomas distintos e teve duas línguas
oficiais. Todas as falas em kayapó eram traduzidas para o português, e
vice-versa.
Alguns visitantes
compreendiam o kayapó por falarem idiomas do mesmo tronco linguístico, o
macro-jê, enquanto os demais recorriam ao português, que a maioria dos grupos
fala como segunda língua. Além dos múltiplos idiomas, ouviam-se os cantos de
araras domesticadas, que vez ou outra pousavam sobre a casa dos homens.
O discurso que causou
mais comoção foi feito por Bepto Xikrin, liderança da Terra Indígena Trincheira
Bacajá, no Pará.
Ele contou que,
desde o início do ano, cerca de 400 garimpeiros e madeireiros estavam atuando
no território. Bepto disse que as comunidades estavam assustadas e não sabiam
como agir. De pronto, dois caciques kayapós se levantaram e prometeram enviar
guerreiros para expulsar os invasores, recebendo aplausos de todos.
Outro momento
simbólico foi a apresentação de cantos e danças dos convidados, no último dia.
Para a primeira exibição, os kayapós convocaram representantes do povo panará:
justamente um dos grupos com que eles guerrearam mais intensamente no passado.
Com os corpos
pintados de jenipapo, os quatro panarás entoaram um canto gutural, saltando
conforme o ritmo. Aplausos calorosos dos kayapós sugeriam que as rivalidades
entre os grupos podem ter ficado para trás.
'Morreu todo mundo'
No relatório que
embasou a demarcação da Terra Indígena Panará, a Funai diz que o primeiro
embate entre os dois povos ocorreu em 1922, quando os kayapós atacaram uma
aldeia panará. Os panarás contra-atacaram no ano seguinte, alimentando um ciclo
de revides que se estenderia até 1968, quando um massacre alterou o equilíbrio
de forças na região.
O antropólogo
americano Stephan Schwartzman, que viveu entre os panarás, narrou o episódio
num artigo de 1992. Ele diz que, antes do grande ataque de 1968, os kayapós já
vinham usando armas de fogo obtidas dos brancos na guerra contra os panarás,
que, ainda sem contato com o mundo exterior, respondiam com flechas.
Naquele ano, conta
Schwartzman, os kayapós "fizeram questão de juntar o maior número possível
de armas e munição, inclusive obtendo munição com o missionário que morava com
eles na época". Os kayapós subiram o rio Iriri até a aldeia Sonkanasan,
dos panarás, incendiando todas as casas e matando 26 pessoas.
Uma sobrevivente
descreveu a chacina ao antropólogo. "Morreu todo mundo, meu pai e tios...
Mataram meu marido... Mataram meu irmão mais velho, Peyati, meu filho Yosuri,
meu irmão Kyotiswa, mataram minha mãe... Mataram meu sobrinho Nasu, era menino,
mataram Sotare, que era adulto, mataram Kyititu... e o velho Kosu, mataram...
Os Txurracamãe (kayapós) massacraram esse pessoal, por isso estou com
raiva."
Os sobreviventes
deixaram a aldeia e se embrenharam na mata. Anos depois, outra tragédia se
abateu sobre o grupo quando o território panará foi cortado pela BR-163, uma
das estradas com que a ditadura militar pretendia integrar a Amazônia ao resto
do país.
Para tirá-los do
caminho e evitar conflitos ainda mais graves, o governo enviara à região uma
missão chefiada pelos irmãos Cláudio e Orlando Villas Boas, que já tinham
contatado vários grupos indígenas Brasil afora.
Tentativas
infrutíferas de contato duraram vários anos, até que, em 1972, enquanto os
operários se aproximavam da aldeia panará, uma epidemia de gripe se espalhou
pela comunidade. "Morreram tantas pessoas que os sobreviventes não foram
suficientes ou não tinham força suficiente para enterrá-las, e os urubus
comeram os mortos apodrecendo no chão", narra Schwartzman.
Famintos e doentes,
os cerca de 200 remanescentes foram levados para o Parque Indígena do Xingu, ao
sul. Em 1997, os panarás conseguiram regressar a uma parte de seu território
original às margens da BR-163. Desde então, com a demarcação da área, a
população do grupo triplicou.
Aliança contra os brancos e Bolsonaro
Dois líderes
panarás presentes disseram à BBC que os conflitos com os kayapós foram
superados.
"Nós matamos
os kayapó, os kayapó nos mataram, nós brigamos com os kayabi, mas não sabíamos
ainda o que estava acontecendo sobre o branco, não sabíamos dessa ameaça
ainda", diz Sinku Panará em sua língua, traduzido por João Paulo Denófrio,
doutorando em Antropologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
"Então
esfriamos a cabeça, nos reconciliamos, voltamos a conversar uns com os outros e
não vamos mais brigar. Porque existe um interesse comum para que lutemos
juntos, para que os não indígenas não matem a todos nós", ele afirma.
Sinku diz que a vitória de Bolsonaro encorajou uma aproximação ainda maior
entre grupos indígenas que eram inimigos.
"Os outros
presidentes tinham uma preocupação um pouco maior com as nossas terras (...).
Este que chegou agora (Bolsonaro), ele não está preocupado com isso, ele está
preocupado em acabar com o que a gente tem e acabar com a gente. Por isso estou
com o coração cheio, por isso estamos conversando uns com os outros."
Sinku diz estar
preocupado "com as árvores, com a água, com o peixe, com os não indígenas
que querem entrar na nossa terra em busca dessas coisas". "Não quero
estragar a água com garimpo, com mineração, não quero matar os peixes. Por isso
que vim aqui: para fazer esta fala."
Vários outros
líderes expressaram receios semelhantes. Grupos que habitam áreas no sul da
bacia, em Mato Grosso, disseram temer a contaminação dos rios por agrotóxicos
usados em fazendas vizinhas.
"A soja está
muito em cima do nosso limite (territorial)", diz Winti Khisetje, um dos
líderes da Terra Indígena Wawi. Ele diz que têm aumentado os casos de gripe,
febre e coceiras na comunidade, o que ele atribui a agrotóxicos aplicados na
região.
Segundo a ONG
Greenpeace, nos sete primeiros meses de 2019, o Ministério da Agricultura
liberou 290 novos tipos de agrotóxico. É o número mais alto para este período
do ano em pelo menos uma década.
O Ministério da
Agricultura diz que a liberação de mais agrotóxicos não tem provocado aumento
no consumo. "Com a liberação de mais moléculas, o produtor vem usando
menos, porque está usando produtos melhores", disse em julho a ministra da
Agricultura, Tereza Cristina.
Tema que dominou o
noticiário nacional na semana do encontro, as queimadas na Amazônia não
estiveram entre os assuntos principais do evento - em parte porque a maioria
dos incêndios na região tem ocorrido fora de terras indígenas e reservas
extrativistas. Nessas áreas, as matas estão mais preservadas e, portanto, menos
sujeitas à expansão do fogo.
Indígenas e ribeirinhos
O encontro também
serviu para aproximar os kayapós e os demais indígenas xinguanos de outra
população com que se estranhavam no passado: os ribeirinhos.
Uma das
representantes do grupo era a pescadora Rita Cavalcante da Silva, de 47 anos,
que visitava uma terra indígena pela primeira vez.
"Eu imaginava,
mas não tinha dimensão do que era realmente uma terra indígena. É muito bonito,
muito organizado, muito tradicional", ela disse à BBC.
Moradora das
margens do lago formado pela hidrelétrica de Belo Monte, em Altamira (PA),
Silva afirmou que ribeirinhos e indígenas têm culturas parecidas.
"Vivemos do
rio, temos aquele contato com a terra, necessitamos de estar na terra,
sobrevivemos do peixe, da mata. Isso criou vínculos fortes entre as duas
populações", afirma.
Outra ribeirinha
presente, Liliane Ferreira, 26 anos, da Reserva Extrativista Rio Iriri, diz que
temia indígenas na infância.
Como muitos
ribeirinhos, Ferreira tem sangue nordestino, bisneta de maranhenses que
migraram para a Amazônia para trabalhar como seringueiros. Ela diz ter crescido
ouvindo a avó contar histórias de índios que raptavam mulheres e crianças
ribeirinhas.
"Uma vez ela
estava caçando tatu e tentaram pegar ela", conta Ferreira. "Quando
diziam 'tem índio solto aí', eu ficava com medo."
Ela afirma que a
desconfiança se dissipou conforme passou a lutar ao lado de indígenas por
causas comuns. Mas isso não a impediu de cutucar os anfitriões kayapós ao notar
a fraca presença feminina no encontro.
"Eu perguntei:
'vem cá, por que suas mulheres não participam das reuniões?' Eles disseram que
não pode, que só pode se os maridos permitirem. Achei curioso, porque, entre os
ribeirinhos, nós estamos lá metidas no meio, não queremos sair da frente",
diz Ferreira.
No fim do evento,
quando os kayapós convocaram os demais participantes a se agrupar para gravar
um vídeo, Ferreira titubeou. Primeiro ficou dentro da casa dos homens, até ser
chamada insistentemente pelos indígenas e outros ribeirinhos.
No fim, juntou-se
ao grupo e até acompanhou a dança kayapó na festa de encerramento, que se
esticaria até tarde da noite, agora com forró nordestino do repertório
ribeirinho.
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