EL PAÍS - Jamil Chade
© BRENDAN SMIALOWSKI
(AFP) Sede da ONU em Nova York.
Não tragam
discursos. Tragam planos. O recado foi passado pelo secretário-geral da
ONU, Antônio Guterres, aos chefes de estado e de governo que
começam a desembarcar nesta segunda-feira em Nova York.
O português sabe
muito bem do que fala. Sua entidade vive provavelmente sua pior crise, em mais
de 70 anos de história. E sua recuperação dependerá da vontade de líderes em
trabalhar sobre planos concretos. E não mais um acúmulo de mentiras,
declarações diplomáticas ou apertos de mãos.
No fundo, quando
Jair Bolsonaro abrir a Assembleia Geral da ONU nesta terça-feira, ele estará
discursando para uma entidade decadente. O déficit em suas contas, o cinismo
ecoado nos corredores, a manipulação de valores humanistas para que governos
atinjam seus objetivos de poder, a tentativa de acobertar violações sexuais
pelas tropas de paz e a incapacidade de manter a segurança no planeta são
apenas extratos de um profundo mal-estar.
Guterres sabe que o
palco mundial está repleto de goteiras, fissuras e vive um clima de dúvidas
sobre o futuro da entidade. Algo parecido ao que se viveu quando o mundo viu o
fracasso do plano da Liga das Nações, há quase cem anos.
Por isso, ele
precisa de líderes que tragam para a mesa um plano sobre como trabalhar de
forma conjunta em diversas áreas. De líderes que entendam que fortalecerão a
soberania de seus países justamente ao admitir que, sozinhos, não serão capazes
de dar respostas a desafios que não respeitam fronteiras soberanas.
A convocação
enfrenta uma enorme resistência: neste ano, o palanque será ocupado por chefes
de estado e de governo cujos atos são antagônico com o propósito da ONU de
buscar soluções globais para problemas globais. Não serão poucos os que
evocarão a tal “soberania”, uma forma diplomática de alertar: não se metam por
aqui.
Certamente Bolsonaro recorrerá
ao conceito ao tratar da Amazônia. Mas ele não estará sozinho nesta onda
nacionalista, populista e míope. Outros usarão a mesma palavra para falar de
seu direito de fechar suas fronteiras aos refugiados, para justificar o
protecionismo comercial ou para rejeitar qualquer prestação de contas em relação
às denúncias de execuções de opositores aos regimes.
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Mas se Bolsonaro
quiser reverter sua imagem profundamente desgastada no exterior, ele não poderá
apenas chegar com um discurso. O que o mundo quer saber do presidente
brasileiro é o que ele pretende fazer pelo Brasil, por suas minorias, e qual
será sua contribuição ao mundo. Talvez o presidente
não saiba, mas ele desembarca em uma entidade que usou a imagem da “Mulher Maravilha” para promover o direito das mulheres e meninas pelo
mundo. A fantasia, porém, não salvou Ágatha.
Tampouco
salvou Marielle Franco seus inúmeros alertas sobre os riscos que
corriam os defensores de direitos humanos no Brasil.
Bolsonaro, se
quiser responder ao apelo internacional, terá de dizer o que o seu Governo fará
de concreto para garantir a verdade sobre crimes, do presente e do passado. O
que fará para ampliar as garantias democráticas e proteger inclusive seus
opositores. Se o presidente
quiser atender ao pedido, terá de levar consigo um plano para atacar o discurso
do ódio e denunciar qualquer tentação autoritária.
E, claro, tentar
esclarecer como sua visão de que “bandido bom é bandido morto” é compatível com
a carta das Nações Unidas – um livro pequeno que talvez
fosse uma boa leitura de bordo no trajeto para NovaYork.
O mundo ainda
aguarda por planos concretos sobre como lidar com o fenômeno das mudanças
climáticas, a maior ameaça aos direitos humanos e à sobrevivência no
planeta. Declarar a soberania sobre a Amazônia,
portanto, tampouco servirá. Salvo, claro, para ser aplaudido por seus fieis.
Dizer que o Brasil
está comprometido com os povos indígenas, sem dar provas, será ridicularizado
diante das poucas palavras de Raoni, indicado para o prêmio Nobel da Paz e para
o prêmio Sakharov.
Repetir o que a
embaixadora do Brasil disse na ONU há duas semanas – que o país era
“exemplo e inspiração” ao mundo no que se refere aos direitos humanos –
soará como um slogan tão mentiroso quanto a palavra “democrática” no nome
oficial do regime de Pyongyang.
Ágathas, Marielles
e Raonis, portanto, ameaçam ofuscar qualquer tentativa de Bolsonaro de
transformar o palanque da ONU em uma operação de publicidade global. Elas representam a
realidade do país, marcado por uma política pública de extermínio – de
pessoas, do estado de direito, dos direitos humanos ou de bromas.
Imperdoável e
intransigente, essa realidade dos crimes diários ameaça abafar a voz do
presidente e fazer um barulho ensurdecedor. E em todos os idiomas oficiais das
Nações Unidas.
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