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Yahoo Notícias, 20 de agosto de 2019
O ex-juiz Wilson Witzel foi eleito
governador do Rio pelo PSC com um discurso linha-dura sobre segurança pública.
Na transição, ele resumiu uma entrevista como seria a orientação para a polícia
fluminense no combate à criminalidade: “mirar na cabecinha e… fogo!”
Uma vez empossado, declarações como
essa serviram como carta-branca para inúmeras ações nas comunidades do Rio de
Janeiro, algumas com uso de helicóptero. Uma delas vitimou um jogador não
federado das categorias de base do América, que “portava” uma chuteira na
mochila quando foi baleado em Niterói. Em 80 horas, outros cinco jovens como
ele foram assassinados na localidade.
Na semana passada, cerca de 1.500
cartas feitas por crianças e moradores do Complexo da Maré foram entregues ao
Tribunal de Justiça do estado pedindo menos violência nas comunidades.
Pressionado, o governador questionou
a autenticidade das missivas e atribuiu a morte de inocentes aos
“pseudo defensores dos direitos humanos”.
“Nunca vi um defensor de direitos
humanos entrar em favela dando tiro”, respondeu o presidente da OAB do Rio,
Luciano Bandeira.
Foi neste contexto que o Rio de
Janeiro amanheceu, nesta terça-feira, 20/08, com a notícia do sequestro de um
ônibus na Ponte Rio-Niterói. O cerco ao veículo, que levava dois passageiros, remetia a dois
episódios traumáticos do passado recente, o caso Eloá Cristina, em Santo André
(SP), e o do ônibus 174, também no Rio. Ambos resultaram na morte de
sequestrados.
A ação exigia uma intervenção
cirúrgica dos atiradores da polícia, que conseguiram matar o sequestrador e
libertar os passageiros. Soube-se depois que a arma do criminoso era de
brinquedo – algo que ninguém, nem dentro nem fora do ônibus, poderia saber.
O caso estaria automaticamente
encerrado se o tema da segurança pública não estivesse também refém dos
discursos mais rasos sobre a violência no país.
Se, há poucos dias, o governador
despachava os cadáveres de jovens inocentes para o colo do “pseudo defensores
dos direitos humanos”, desta vez ele por pouco não promoveu uma volta olímpica
pela cidade com o corpo do sequestrador em mãos. Preferiu descer de helicóptero
no local celebrando o desfecho da ação como se fosse um gol.
É difícil analisar o sentimento de
quem acompanhou o sequestro sem um redutor de termos morais, mas, imagina-se
que, em condições normais, a ausência de vítimas entre os passageiros gerasse
uma espécie de alívio misturado ao conformismo com a inevitabilidade do
desfecho. Isso se o debate público não estivesse contaminado pelas paixões mais
irracionais – das quais a expressão de Wiltzel é antes resultado do que uma
resposta.
Quieto em ocasiões anteriores, como
quando uma vereadora é alvejada em via pública na mesma cidade, Jair Bolsonaro
não demorou, desta vez, para dizer que não era para ter “pena” do criminoso.
Como se a “pena” estivesse em pauta em algum momento.
Na fala dos defensores do
recrudescimento parece ser humanamente impossível condenar a morte de inocentes
nas favelas sem entender a ação policial na ponte entre as duas cidades como
correta/inevitável. Ou, ampliando ainda mais o debate, como se fosse impossível
rejeitar o armamento civil e defender o treinamento adequado, efetivo e municiado
das forças de segurança para casos específicos como este. (Obviamente, ninguém
defende o uso de flores como recurso, apesar de essa ser uma figura de ironia
recorrente no discurso de defensores de massacres amplos, gerais e
irrestritos).
No lodaçal das versões torturadas da
verdade para fins políticos, o episódio certamente servirá para legitimar
atrocidades pregressas e futuras, como se operações mal planejadas nos morros
dos condenados ao nascer não vitimassem também agentes públicos de segurança.
Nos trending topics do Twitter, a
ágora do pensamento contemporâneo, o episódio já alimentava discursos políticos
igualmente sequestrados por quem já enrola os dardos para as eleições do ano
que vem, com provocações quase futebolísticas ao PSOL e seus representantes,
que estão no páreo da disputa pela prefeitura do Rio, e são constantemente
associados a “defensores de bandidos”.
Até o início da tarde, o ex-deputado
Chico Alencar era um dos poucos representantes do partido a se posicionar sobre
o caso. Ele classificou como bem-sucedida a operação na Ponte Rio-Niterói, mas
demostrou preocupação com o fato de o episódio servir para o governador afirmar
o que ele chamou de “necropolítica”.
Os próximos episódios prometem.
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