Luis Mesina, do movimento popular
chileno NO+AFP
DIÁRIO LIBERDADE
Fonte: Barão do Itararé
[Felipe Bianchi e Leonardo Severo]
Nesta entrevista realizada na sede do movimento No+AFP (Não mais
Administradoras de Fundos de Pensão), em Santiago, o porta-voz da organização,
Luis Mesina, denuncia como o sistema de capitalização da Seguridade Social
implantado “em meados dos anos 1980, sob a tirania de Augusto Pinochet”,
“condena 97% dos chilenos a aposentadorias miseráveis”, “sendo a expressão
trágica de um sistema que nega direitos fundamentais, lançando idosos a
cenários desesperadores”.
Desmontando a propaganda neoliberal, o dirigente das massivas
manifestações populares em defesa da Previdência pública alertou os brasileiros
dos impactos negativos da privatização e defendeu que “é preciso desmontar o
argumento de Paulo Guedes de que a reforma enxugará os gastos públicos”. “É
mentira, pois é o governo chileno quem paga pelo menos sete entre dez
aposentadorias. A capitalização, portanto, aumenta o gasto público, enquanto
reduz consideravelmente os benefícios, com o cidadão recebendo menos de 30% do
seu último salário”.
Considerando o informe da Organização Internacional do Trabalho (OIT), “um
elemento imprescindível para a batalha de ideias contra a reforma da
Previdência no Brasil”, Mesina lembrou que, “categórico e contundente”, “o
estudo compila ideias que não convêm e nem interessam ao governo de Bolsonaro”,
fazendo com que seja praticamente invisibilizado pela grande mídia. O fato,
assinala, é que até mesmo “países com governos de direita, como Romênia,
Polônia e Hungria, desprivatizaram o sistema de capitalização da Previdência e
voltaram ao sistema público”.
“A capitalização leva a uma desigualdade brutal e
a uma alta concentração da riqueza, pois os grandes grupos econômicos –
fundamentalmente estrangeiros – usam nossa poupança, nossa humanidade e nossas
vidas para financiarem seus projetos espúrios”. “E deixo uma pergunta para
reflexão: se o grosso do dinheiro está nas mãos de AFP estrangeiras e de
companhias de seguros que são donas das AFP, o que acontece se essas empresas
estadunidenses quebram? A Lehman Brothers não quebrou? A Enron não quebrou?”.
“É preciso desprivatizar”, sublinhou.
No Brasil, estamos vivendo uma batalha campal neste momento contra o
projeto do governo de reforma da Previdência, em que o ministro Paulo Guedes,
um dos fundadores do banco BTG Pactual, coloca o modelo chileno como uma
maravilha. O que dizer desta declaração?
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O que tem ocorrido nos últimos 20 anos é que os sucessivos governos
investiram muito dinheiro em difundir fora do país o modelo chileno. A tal
ponto que, em muitas partes, consideram nosso país como um exemplo, como um
modelo de desenvolvimento. Mas escondem cifras tremendamente abismais: temos os
indicadores de distribuição de renda mais desiguais da região. A participação
dos salários dos trabalhadores em relação ao Produto Interno Bruto (PIB) é uma
das menores da região, temos uma das maiores jornadas de trabalho do mundo, 45
horas semanais. Isso fez com que no Chile fosse se conformando uma espécie de
divisão social muito forte, em que 1% dos chilenos concentra quase 36% da
renda.
Segundo a Revista Forbes do ano passado, temos 12 multimilionários. A
Argentina não tem nenhum, a Colômbia não tem nenhum e o Brasil tem dois. Como
se explica isso, sendo o Chile com um país de 18 milhões de habitantes, diante
de uma Argentina com 44 milhões, de uma Colômbia com 49 milhões de habitantes e
de um Brasil tem 210 milhões? O PIB brasileiro é quase oito vezes o chileno. O
que explica que o Chile tenha tantos multimilionários em relação a esses
países? É muito simples: porque esse sistema que se instalou conseguiu capturar
uma parte expressiva dos salários dos trabalhadores, suas poupanças, e
desenvolvido o mercado de capitais no Chile. O mercado de capitais é força de
trabalho acumulada, é subtração de humanidade, de vida humana. É a expressão
monetária da vida que as pessoas deixam na relação que estabelecem com o
capital. É o trabalho que gera a riqueza. São os homens e mulheres
trabalhadores que geram a riqueza, nada diferente disso.
Há uma superexploração pelas grandes corporações.
É evidente. E preocupa ao governo se o Itaú é hoje o quarto ou quinto
maior banco do Chile? O fato é que as grandes corporações financeiras nacionais
e internacionais vêm ao Chile para serem financiadas com a nossa humanidade. O
Itaú quando vem fazer um negócio, o que faz? Emite ações no mercado. Quem as
compra? As Administradoras de Fundos de Pensão (AFP). E o que ocorre em troca?
Levam nossa vida, nossa humanidade. Este é o problema de fundo. Hoje em dia, e
isso é muito importante que saibam os brasileiros, do total da nossa poupança
mais de 40% está fora do país, são mais de US$ 87 bilhões de dólares investidos
nos Estados Unidos. Como se faz este investimento, com quais instituições? Por
meio das AFP. Temos três AFP norte-americanas. Qual é a dona da maior companhia
seguradora do Chile? A MetLife, a maior companhia seguradora do planeta. Tomam
nossa economia, levam para os Estados Unidos, compram ações da Bolsa e tratam
de buscar rentabilidade, que está cada vez mais baixa.
Mas quem compra esse dinheiro, esse capital? Empresas imobiliárias que
vão ao mercado de capitais, emitem ações e tomam de novo nosso capital. O que
fazem? Expandem seus investimentos. O faturamento dos estados do Norte,
Michigan, Illinois, por que estes dois estados? Porque aí ganhou Donald Trump.
Prometendo o quê? Emprego a cidades como Detroit, que estão na bancarrota por
conta da quebra da indústria automotriz. E como Trump foi prometer empregos, se
antes de assumir baixou o imposto? Ao baixar o imposto entraram menos recursos
para o Estado e viu reduzido o orçamento para fazer obras públicas. E como
construir se precisa de recursos?
Como as empresas pagaram menos impostos, se revalorizaram na Bolsa –
isso é tudo nominal – fazendo com que os especuladores saíssem do Chile e
fossem para lá investir mais nestas companhias norte-americanas. Ou seja,
transferimos mais capital de países emergentes como o Chile para países
imperialistas como os Estados Unidos. E o que fazem por lá com nossos recursos?
Investem em rodovias, pontes, não estão investindo em veículos automotrizes,
porque esta é uma questão de concorrência, de custos, porque os japoneses e,
sobretudo, os coreanos têm custos de produção muito mais baratos, sendo mais
eficientes que os norte-americanos, a tal ponto que muitas companhias europeias
estarem se fundindo com empresas japonesas e coreanas de automóvel.
Então temos o paradoxo que nós, os chilenos, habitantes de um país tão
pequeno, com uma força de trabalho de pouco mais de oito milhões, com dez
milhões de filiados ao sistema de AFP, estamos financiando Donald Trump.
Os Estados Unidos sendo o país com o maior déficit fiscal do mundo,
tendo especialmente um déficit gigantesco com a China, como se financia? Com a
transferência de recursos. Isso há 20 anos era impossível de sustentar porque
os países emergentes, subdesenvolvidos entre aspas ou em vias de
desenvolvimento, tinham como problema a dívida externa, sempre. Naquela época
cada vez que um país entrava em crise – pelo ciclo da dívida – todos os
emergentes se endividavam junto. Hoje isso passou de moda.
Pois há uma brutal sangria de recursos, uma transferência desmedida de
capital…
A transferência por um país tão pequeno como o Chile, de mais de US$ 87
bilhões para qualquer país do mundo, é algo descomunal. O investimento que as
AFP fizeram em celulose no estado do Rio Grande do Sul foi de US$ 4 bilhões.
Como as AFP são as maiores investidoras de vários países, se o emprego formal
no Chile vem caindo fortemente? Somos um país de serviços, que segue
reproduzindo a velha matriz produtiva extrativista do cobre, a grande
mineração, destruindo praticamente todo o ecossistema. Temos um deserto no norte
que vem aumentando em direção ao sul em razão de que não há uma política de
Estado frente a esse modelo, que nem vou chamar sequer de desenvolvimentista, é
preciso mudar a palavra.
As empresas mineradoras estão contaminando o sul do Chile, que é o melhor
que temos. Há seca. Este é um país que está secando, sempre tivemos muita água
e hoje estamos tendo problemas sérios de abastecimento porque as grandes
corporações agrícolas estão produzindo abacate nos montes. Para isso sugam a
água subterrânea e as pequenas comunidades, criadoras de gado, estão morrendo.
A privatização da Previdência e sua substituição pelas AFP apenas
reproduz a irracionalidade e a perversidade do sistema. Daí o achaque às
aposentadorias.
As aposentadorias dos trabalhadores que conseguem se aposentar hoje em
dia são tão baixas que a média dos benefícios está quase a metade do que é o
salário mínimo do país. Estamos falando da média, temos 50% inferiores ao que é
o salário mínimo. Este é um bom indicador para ser levado em conta porque se
expressamos em dólar isso se deforma, porque há variedade cambial e cem dólares
não é o mesmo no Brasil que no Chile, é complexo. Por isso é melhor comparar
com o salário mínimo. Qual é o percentual do mínimo que recebe um aposentado no
Chile? A grande maioria da população recebe menos da metade. E se dá o paradoxo
de que estamos com um percentual muito alto de mulheres que está recebendo um
quarto do valor do salário mínimo. Este é um dado objetivo, real.
Então este é
um sistema que não serve ao país, mas a um pequeno grupo de multimilionários
que está espalhando seus negócios já não apenas pela América Latina, mas pelos
Estados Unidos. Um dos homens mais ricos deste país que se chama Andreoni
Conluxi, tem investimentos na Espanha, onde comprou um banco, tem aplicações
nos Estados Unidos. Ele, assim como vários banqueiros chilenos, segue
expandindo seus negócios porque, diferentemente dos burgueses brasileiros,
argentinos ou colombianos, tem um mercado de capitais, que é muito vigoroso e
por meio do qual pode adquirir dinheiro, esta mercadoria chamada capital a um
preço muito baixo.
Quantos chilenos estão aposentados?
Temos 1,3 milhão de aposentados pelo sistema da AFP e um pouco mais de
600 mil pelo antigo sistema, e que vão desaparecendo. Pertenciam às caixas de
previsão, que eram 32. Aí está o custo da transição porque ainda não morreram
todos os velhos que pertenciam a estas caixas. Da noite para o dia acabou o
fluxo de ingressos porque os ativos passaram para as AFP.
Obrigatoriamente, não havia opção.
Já não iam para as caixas de previsão, mas para as AFP. As caixas foram
tomadas pelo Estado que criou um organismo, o Instituto Nacional de Previsão,
que se encarregou de todos os aposentados. A pergunta é de que forma, se os
ativos já não pagavam, quem sustentou os novos aposentados? O Estado, lógico.
Há um número de quantos aposentados chilenos recebem pelo sistema
antigo?
Um pouco mais de 650 mil aposentados pelo sistema antigo e um milhão
trezentos e oitenta mil aposentados pelo atual sistema, a metade por “retiro
programado”, que é uma forma que as AFP pagam, e a outra metade por “renda
vitalícia”.
Explique esta diferença.
Temos um pouco mais de um milhão trezentas e oitenta mil pessoas
aposentadas por AFP. Um pouquinho mais da metade, 51% por AFP, e outros 49% por
companhias de seguro, todos no novo sistema. O que significa isso? Que quando
chegas à idade de te aposentar, economizaste um montante na tua conta
individual, uma poupança pessoal. Tua conta individual tem uma quantidade de
dinheiro xis. Há uma idade determinada: 65 anos para o homem e 62 anos para a
mulher. Então vais até a Administradora de Fundos de Pensão e ela vai te dizer:
bom, tens a idade já, mas as previsões é que vivas até os 90 anos, por exemplo.
Portanto, se tens 65 anos precisas financiar uma sobrevida de 25 anos. Quanto
tens agora? 100 milhões de pesos (US$ 144.224,00) e isso é insuficiente.
De
qualquer forma se divide os 100 milhões pelo período de vida e se estabelece o
valor. Um lixo. Esse é o retiro programado pelas AFP. Se busca a fórmula para
dividir e pronto. Outro exemplo: a pessoa estabelece um benefício anual e quer
receber US$ 100 por mês. Passados os 12 meses, tens de voltar à AFP para
recalcular. Porque tinhas uma torta de cem que poderia ter sido comida de uma
vez, mas não foi, e o resto que sobrou ficou aplicada na Bolsa de Valores e
caiu. Então a aposentadoria que era 100 já virou 80. No segundo ano, voltas
para renegociar e assim sucessivamente. O que está comprovado é que passados
oito anos, mais ou menos, sua aposentadoria foi reduzida pela metade.
O que é feito então?
Isso é muito importante que seja compreendido. Existem dois sistemas: as
AFP e as Companhias de Seguro, que são as mesmas donas das AFP. Então o que as
Companhias de Seguro dizem: você está se aposentando pelas AFP, ganhando por
exemplo 500 mil pesos. A pessoa pensa, bem não está tão mal, mas vai baixar o
outro ano para 480 mil, 450, 300 e ao final de oito anos vai ter 250. Porém, no
esquema de “renda vitalícia”, as Companhias de Seguro dizem: nós lhe garantimos
uma aposentadoria mais baixa que os 500 mil (US$ 721), mas será de renda
vitalícia, até sua morte. As Companhias dizem: as AFP lhes pagam 500 e nós
pagamos 380, mas é até que você morra, enquanto pelo outro modelo você acabará
recebendo a metade. E o idoso fica com os 500 das AFP. Mas o que acontece no
modelo AFP: no primeiro ano o valor já se reduz, no segundo um pouco mais, no
terceiro ano a pessoa quer ir para a renda vitalícia das Companhias de Seguro.
E o que significa isso na prática?
Significa que você tem uma poupança e diz que é proprietário desta
economia. Se você compra a renda vitalícia precisa repassar todo o dinheiro à
Companhia de Seguro. Se és casado e morre, baixam 60% do valor da renda para
sua mulher. Está na lei. E se morre a mulher, todo o dinheiro fica para a
Companhia de Seguro. Porque é preciso que a poupança seja endossada às
Companhias. Como as pessoas não querem endossar, estamos praticamente meio a
meio entre as AFP e as Companhias de Seguro. Porque os velhos, passados dois
três anos, saem do retiro programado e vão para a renda vitalícia. Mas as
Companhias de Seguro também quebram. Ou alguém pensa que não?
E o que acontece quando as Companhias de Seguro quebram?
Conforme está escrito em lei, se tens uma aposentadoria de 500, o Estado
vai responder com 100.
A privatização dos lucros e a socialização dos prejuízos.
Evidente.
Nas conversas que tivemos com aposentados em Valparaíso muitos nos
disseram que devido aos baixos salários recebidos ao longo de suas vidas sequer
tiveram a oportunidade de poupar. Então agora dependem de uma pequena ajuda do
governo.
Se chama Pensão Básica Solidária, são 107 mil pesos, um terço do salário
mínimo. No Chile são 660 mil pessoas que dependem dela. Desse montante, quanto
os idosos destinam a medicamentos, em média? 20%. Ou seja, sobra 80 mil pesos
para pagar água, luz, moradia, transporte, alimentação e vestuário, o que não é
suficiente. No Chile, nem o transporte é grátis para o idoso. Se paga um valor
menor no metrô, mas se paga. Temos o metrô mais caro do mundo, competindo com
Londres e Paris. Isso explica um pouco o nível de precariedade na qual vivem
centenas de milhares de aposentados chilenos. Os medicamentos também são
caríssimos.
E olhem só, que paradoxo: os doze grupos multimilionários do Chile
somaram forças para alterar o preço dos medicamentos. Foram punidos, mas as
penas que a Justiça dá aos ricos são patéticas. O Chile pode ser a expressão
mais clara do que é uma sociedade de total injustiça em matéria jurídica. Os
poderosos estão à vontade para cometer quaisquer delitos que queiram, sem
precisar pagar nada por seus crimes e abusos. Não vão presos nunca.
São muitas as injustiças.
Nós defendemos eliminar esta pensão básica e garantir uma aposentadoria
universal, para todos. Porque este benefício é recebido somente pelos 60% mais
pobres do país. Se a pessoa é de classe média, entre aspas, tem uma casa ou
algo, vais morrer sem o acesso. Quando falas com alguém na Espanha ou outro
país da Europa as pessoas não conseguem entender, porque para poder compreender
isso precisas baixar à Antípoda do que é a civilização, ir para antes da
Revolução Francesa, porque os europeus têm direitos fundamentais garantidos
pelo Estado, a pessoa nasce e tem direitos. Perguntas a uma pessoa com instrução
média, a um alemão, com quanto contribui… A única coisa que sabe é que tem
direito à saúde, à educação e à aposentadoria. Todos sabem que têm um sistema
de benefícios definidos, aqui não.
É recente, mas impactante o estudo que revela que o idoso chileno tem a
maior taxa de suicídios em toda a América Latina. Isso significa algo. Muitos
dos idosos que cometeram suicídio deixaram carta e, nelas, explicitaram seu
sofrimento pela baixa renda e pela precariedade sob a qual viviam.
Há uma cortina de fumaça encobrindo estes horrores.
É evidente. O sistema de manipulação midiática distorce a realidade,
acentuando outros aspectos que, obviamente, estão relacionados aos suicídios,
como o abandono familiar. A expressão mais trágica de um sistema que nega
direitos fundamentais como o nosso é que os chilenos e as chilenas estão
chegando à velhice e se deparando com cenários desesperadores. A pessoa adoece
e simplesmente não tem como bancar o tratamento. Está aumentando
vertiginosamente o número de pessoas jogadas nas ruas. Isso é novidade para
nós. Pode ser comum em São Paulo, mas no Chile não havia. Isso é a expressão de
que algo está passando.
A Organização Internacional do Trabalho elaborou um estudo recente sobre
a questão da Previdência.
Os informes que a OIT publicou sobre o tema não foram à toa. Dos 30
países que privatizaram a Previdência, 18 regressaram ao sistema público. A OIT
conclui, categoricamente, que a privatização acarretou maior transferência de
recursos públicos ao sistema de aposentadoria, ou seja, maior gasto público;
maior concentração da riqueza; e, por fim, aposentadorias menores. A
recomendação sensível da OIT é o retorno ao sistema público, é desprivatizar.
O discurso tradicional da mídia hegemônica é de que o sistema público é
coisa do passado, de que a Previdência está quebrada. Mas não se pode ignorar
um estudo como o da OIT. Se de 30 países que privatizaram a aposentadoria na
década de 1990, principalmente no Leste Europeu, mais da metade voltou ao
sistema anterior, é também porque regressar ao modelo anterior significa uma
menor carga em cima do próprio Estado. O Chile é um exemplo: de cada 10
aposentadorias recebidas pelo cidadão, pelo menos sete são bancadas pelo
Estado. Quando se privatizou o sistema, a promessa era de enxugar gastos públicos,
pois o Estado não precisaria se preocupar com isso. A promessa era de uma taxa
de retorno imenso, o que não ocorreu. Isso tudo sem mencionar o gasto do
período de transição, que é gigantesco.
O sistema de capitalização é prova disso.
O paradoxo deste sistema vigente no Chile é que quem paga o Pilar Básico
Solidário é o Estado, com recurso público. Ou seja, para que financiar um
sistema privado se você já está gastando? O Estado recorre aos recursos
públicos e aos impostos para isso. Por que o Estado faz isso? Todos pagam
imposto, os pobres, para o Estado gastar com aposentadoria financiando as AFP.
Os mais ricos podem ainda optar por um respirador artificial, o APV (Aporte
Provisional Voluntário)*. [É uma alternativa de poupança adicional à poupança
forçada, que tem como principal objetivo aumentar o montante da aposentadoria
ou compensar períodos em que não contribuiu. Nesta modalidade o filiado pode
depositar mais de 10% do valor obrigatório de sua renda tributável em sua AFP
ou em alguma das instituições autorizadas para a administração deste tipo de
poupança]. Eles destinam mais dinheiro para a poupança e são compensados com
isenções tributárias.
Há uma disputa ideológica dura na sociedade sobre a Previdência.
O informe da OIT é um elemento imprescindível para a batalha de ideias
contra a reforma da Previdência no Brasil. Categórico e contundente, o informe
compila ideias que não convém e não interessam ao governo de Bolsonaro. Países
com governo de direita, como Romênia, Polônia e Hungria, desprivatizaram o
sistema de capitalização da Previdência e voltaram ao sistema público.
A Seguridade Social é um tema que tem muita complexidade. Não se trata
de posições ideológicas ou fanatismos. É preciso, por exemplo, enfrentar a
realidade de mudanças demográficas. Uma pergunta simples: como lidar com o
envelhecimento da população? O Chile tem esse problema. Uma grande população
idosa. Como lidar com esse problema? Com a capitalização individual, cada um
rasgando-se com a sua própria unha, ou fazemos de forma solidária, entre
todos?A resposta não é difícil. É preciso ser solidário. A mudança estrutural
no mundo do trabalho reforça a nossa tese. A Seguridade Social nasce no mundo
do trabalho. Sem o trabalho, não se pode entender a Seguridade Social.
O emprego formal, que tem certas garantias, está cada vez mais escasso.
O emprego informal toma conta da sociedade. Como essa parcela massiva de
trabalhadores informais destinará uma fração importante de sua renda para
financiar uma aposentadoria como temos no Chile? Nem se ela quisesse! É uma
questão prática. Logo, os mais afortunados têm que contribuir mais. Os mais
afortunados, que têm empregos, têm de ser mais solidários com os menos
afortunados.
A realidade material é que não se pode enfrentar as mudanças
demográficas e as mudanças estruturais do mundo do trabalho, com uma política
individualista.
Neste sentido o exemplo chileno é a prova cabal de que apostar nesta
toada seria um erro.
Ainda no combate de ideias, o caso chileno é um dos melhores argumentos
para barrar a reforma e para barrar a capitalização. Primeiro, é preciso
desmontar o argumento de Paulo Guedes de que a reforma enxugará os gastos
públicos. É mentira. O governo chileno paga sete em dez aposentadorias. A capitalização
da Previdência aumenta o gasto público. Segundo elemento: este modelo reduz
consideravelmente a taxa de retorno da poupança. Se o brasileiro recebe em
torno de 70% do salário com o qual se aposentou, sob o modelo chileno o cidadão
recebe menos de 30%. Terceiro ponto: um sistema de capitalização incrementa a
desigualdade na distribuição de renda no país. Como se explica uma economia tão
frágil em um país tão pequeno como o Chile produzir 12 multimilionários? O
Brasil não tem praticamente nenhum. Isso eu digo em seminários internacionais,
no Brasil, na Argentina. Como um país tão pequeno pode ter multimilionários
investindo em países como o Brasil e a Argentina, e não o contrário?
Não há transferência de conhecimento, não há desenvolvimento tecnológico.
O que vendemos, nós, chilenos, aos brasileiros? É transferência de humanidade,
que gera este mundo financeirizado. O Chile é, de longe, o país mais
financeirizado da América Latina.
O Chile serve de exemplo para o Brasil. Um país pequeno que mostra, na prática,
os efeitos da capitalização da Previdência. São milhões os que marcham contra
as AFP, empresas absolutamente desacreditadas.
Segundo estudos, 97% dos chilenos estão condenados a aposentadorias
miseráveis. De todos os chilenos que contribuem, 97% alcançará, no melhor do
casos 40% de taxa de retorno e, no pior dos casos, menos de 20%. E deixo uma
pergunta para reflexão: se o grosso do dinheiro está nas mãos de AFP
estrangeiras e de companhias de seguros que são donas das AFP, o que acontece
se essas empresas estadunidenses quebrarem? A Lehman Brothers não quebrou? A
Enron não quebrou? Ninguém diria que quebrariam. Nem eu, bancário, diria. Por
que uma seguradora norte-americana, com o déficit que os Estados Unidos têm,
com a guerra dos Estados Unidos contra a China, não poderia quebrar? Quem vai
responder aos 600 mil aposentados chilenos? O Estado.
Temos o caso italiano.
O caso da Itália é interessante. Sob um governo de extrema-direita, a
Itália previu, ao Banco Europeu, um aumento orçamentário de dois pontos do PIB.
O Banco devolveu o plano imediatamente, impondo restrições. O governo italiano
voltou a apresentá-lo e o banco voltou a recusar, com ameaças. Os italianos
ficaram doidos. O aumento de 2% para que era? Para melhorar as aposentadorias.
Um governo de extrema-direita melhorando a aposentadoria. Eles compreendem o
caráter político desta questão. Há muita gente dormindo nas ruas. Onde essas
pessoas fazem suas necessidades, como vivem? É uma total involução.
No Chile, está em alta a tese de que todos os cidadãos nascidos no país
agora viverão cerca de 100 anos. Na década de 1950, a expectativa de vida do
homem era de 50 anos e a da mulher, 55. O que passa é que essas pessoas que
vivem nas ruas, sem nenhum saneamento básico, sem comida, sem higiene, vai
morrer aos 50.
Fale um pouco sobre como se dá o retorno da “rentabilidade” atual da AFP
aos aposentados por esse sistema?
Este sistema já tem 40 anos. Nos primeiros 10 anos, a poupança do
trabalhador teve taxas de rentabilidade de aproximadamente 12,4%. Na segunda
década, por volta de 1991, a rentabilidade chegou a 10%. Na terceira década,
5%. Agora, na quarta década, iniciada em 2010, qual é a rentabilidade? 3,5%.
Por que vem caindo? Segundo os especialistas sérios, os fundos de investimento
buscam rentabilidade no mercado financeiro. Eles especulam, buscando onde
comprar, onde vender, onde investir. Não estamos comprando batatas, sapatos ou
carne.
Esta é uma mercadoria peculiar, pois quem a compra pode expandir seu
negócio. Se eu compro carne, não posso produzir sapatos. Se eu compro sapatos,
não consigo transformá-los em remédio, mas com esta mercadoria, sim. A economia
mundial vem caindo.3,5%, 3% e não podemos esperar que se a economia siga esses
números, haja uma rentabilidade de 10%. O número mais alto da rentabilidade na
primeira década das AFP se deveu ao simples fato de que, à época, o Chile
privatizou as grandes empresas públicas. A privatização de setores estratégicos
foi simultânea à implementação das AFP, que se aproveitaram disso durante aquele
período. E ponto. Então é bom que os brasileiros estejam alertas.
Gostaríamos que desse um último alerta.
Quero me dirigir a todos os amigos e irmãos deste importante país de
nosso continente, o Brasil. O país está ameaçado por uma política que pretende
destruir um direito fundamental que os brasileiros e brasileiras têm: a
Seguridade Social. Nós, chilenos, falamos com conhecimento de causa. Nos
retiraram esse direito em meados dos anos 1980, sob a tirania de Augusto
Pinochet. E quais foram as consciências após quase 40 anos? Temos a pior
distribuição de renda, temos 12 multimilionários que se apoderam deste dinheiro
e investem, inclusive, no Brasil, destruindo a Amazônia, ou no sul do país,
explorando a nossa humanidade e destruindo o emprego. Investem no Peru, na
Colômbia, na Argentina. O que aconteceu após quase 40 anos?
O Estado gasta mais
dinheiro com este sistema de aposentadoria do que gastava antes. Temos que
drenar ainda mais recursos do Estado para pagar aposentadorias. Qual é outra
consequência? Uma desigualdade brutal e uma alta concentração da riqueza, pois
os grandes grupos econômicos usam nossa poupança, nossa humanidade, nossas
vidas para financiarem seus projetos espúrios. A terceira e mais concreta
consequência: as aposentadorias no Chile, que antes da ditadura contavam com
uma taxa de retorno na casa dos 70%, hoje em dia estão majoritariamente por
baixo de 30% e, segundo estudos, dentro de cinco anos, despencarão para a casa
dos 20%. No Brasil, os brasileiros e as brasileiras não podem acreditar em
Bolsonaro e em um governo que pretende implantar um modelo absolutamente
fracassado como o chileno – conforme classificou a própria OIT. Saúdo a todos e
faço um apelo para que estejam firmes e unidos na defesa deste direito humano
que é a Seguridade Social.
*O Coletivo de Comunicação Colaborativa ComunicaSul esteve no Chile
recentemente, com os seguintes apoios: Centro de Estudos da Mídia Alternativa
Barão de Itararé, Diálogos do Sul, Federação Única dos Petroleiros (FUP),
Jornal Hora do Povo, Sindicato dos Metalúrgicos de São José dos Campos,
Sindicato dos Metroviários de São Paulo, CUT Chile e Sindicato Nacional dos
Carteiros do Chile (Sinacar). A reprodução é livre, desde que citados os
autores e apoios.
https://gz.diarioliberdade.org/artigos-em-destaque/item/292715-luis-mesina-do-movimento-popular-chileno-no-afp-97-dos-chilenos-estao-condenados-a-aposentadorias-miseraveis.html
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