ABRIL ABRIL – Por José Goulão
O controle dos fluxos
de energia permite dominar o mundo, sobretudo se não tiver absoluta confiança
na supremacia militar. Os EUA travam uma guerra para domesticar o mercado dos
combustíveis fósseis.
Sempre que os Estados
Unidos da América desencadeiam uma guerra há um exercício prático que pode
fazer-se para identificar motivações, prever desenvolvimentos e avaliar
consequências: seguir o rastro do petróleo.
Certamente que é uma
prática um pouco primária e redutora; outros – provavelmente a esmagadora
maioria, tendo em conta o nível de contaminação de ideias e consciências
atingido pela informação mainstream – dirão que se trata de estabelecer a
democracia, proteger direitos humanos e instaurar uma verdadeira democracia de
mercado.
A cada qual as suas
razões. Que não se perca de vista nos cálculos e análises, contudo, a
existência de uma elaborada política energética a serviço do complexo militar,
industrial e tecnológico que governa os Estados Unidos da América, que vem
sendo aprofundada e afinada durante as administrações Obama e Trump. Essa
estratégia tem hoje amplitude mundial e traduz o apogeu do globalismo do ponto
de vista energético. Nesse domínio, Washington manipula os cordéis que realmente
contam e ainda não tem rivais, razão pela qual fez da luta pelo controle das
fontes de combustíveis fósseis a mãe de todas as estratégias – à qual se
submete, de bom grado, o aparelho militar imperial.
O império move-se, de
fato, a petróleo e a gás natural, de preferência liquefeito.
Uma reviravolta em 11
anos
Os Estados Unidos
são, atualmente, os maiores produtores mundiais de hidrocarbonetos. Atingiram
essa posição, ultrapassando a Arábia Saudita e a Rússia, em apenas uma década
graças ao investimento bilionário interno – com repercussões externas – na
exploração de gás e petróleo de xisto através de uma atividade designada
fracking, altamente contaminadora de águas e poluente de terrenos, além de
bastante dispendiosa.
A posição de primeiro
classificado na produção é um trunfo, mas não um triunfo. Daí que os grandes
arautos da livre concorrência e do mercado capaz de se regular a si próprio
estejam agora envolvidos na guerra – é disso que se trata – para domesticar o
mercado dos combustíveis fósseis em seu proveito.
Por um lado, porque é
preciso rentabilizar o elevado investimento feito no fracking; por outro,
porque o controle dos fluxos de energia permite dominar o mundo, sobretudo se
não tiver absoluta confiança na supremacia militar.
Daí que a administração
de Donald Trump tenha estabelecido uma nova fase da estratégia petrolífera,
orientada sobretudo para o controle dos fluxos e um balanço harmônico entre os
mercados internos e internacional. Embora pouco midiatizada, essa preocupação
tem sido determinante, visível até no preenchimento das cadeiras governamentais
e de outras em proeminentes agências.
A designação de Rex
Tillerson, presidente da Exxon Mobil, como primeiro secretário de Estado e,
sobretudo, a nomeação de Michael Pompeo como diretor da CIA e, posteriormente,
como secretário de Estado, têm tudo a ver com a guerra da energia. Sem esquecer
que Trump não pode deixar de cumprir as promessas eleitorais feitas aos
investidores e produtores de gás e petróleo de xisto. As suas doações ajudam
qualquer campanha política.
O papel de Pompeo
Michael Pompeo, com
anos de experiência em áreas petrolíferas, com relevo para o fornecimento de
equipamentos de exploração1 2, é hoje a peça-chave da guerra norte-americana da
energia. Os seus passos diplomáticos como secretário de Estado deixam pegadas
de petróleo.
Hoje não há reserva
de gás ou petróleo que não esteja cadastrada em Washington para cair sob alçada
norte-americana – dos Montes Golã ao Iêmen, do Líbano à Venezuela, da Síria à
Líbia e às costas do Brasil; e não há movimento «diplomático» junto da União
Europeia, de grandes e médias potências mundiais que não implique
reivindicações – leia-se exigências – em torno dos fluxos planetários de
hidrocarbonetos.
No Departamento de
Estado, Michael Pompeo criou um gabinete de recursos energéticos dirigido por
um secretário adjunto, Francis Fannon, que orienta a estratégia global de
Washington, coordenando-a com a poderosa indústria norte-americana do setor.
Em termos gerais, a
estratégia energética global dos Estados Unidos baseia-se numa estabilização do
mercado mundial de hidrocarbonetos alcançada com uma cota rentável de
matéria-prima produzida pelo sistema de fracking em território norte-americano.
Para que esse volume seja alcançado e garanta preços compensadores é necessário
que o gás e o petróleo de xisto internos sejam essencialmente para exportação,
substituídos, em nível nacional, pela extração convencional e, sobretudo, pela
dinamização de novas formas de produção energética, incluindo as renováveis; e,
ao nível global, é imprescindível abrir espaço para a produção de
hidrocarbonetos de xisto made in America, nem que seja «secando» algumas das
maiores fontes, controlando a produção de outras, travando projetos de
distribuição prometedores para mercados concorrenciais, sobretudo o russo, e
manipulando os preços em conjunto com as petroditaduras árabes.
Das sanções às
guerras
Existem exemplos
abundantes de todas estas variáveis, que deverão convergir num sentido único: o
controle energético global por Washington.
Como se secam algumas
das principais fontes de hidrocarbonetos que não são manipuláveis pelos Estados
Unidos?
Os métodos são
vários.
Os dirigidos contra o
Irã e a Venezuela estão à vista: sanções econômicas com repercussões também na
indústria petrolífera, sabotagem política interna, conspirações para mudar os
governos e ameaças de guerra convencional.
O Irã tem um
potencial que o coloca entre os principais exportadores da OPEP, em pé de
igualdade com o Iraque e logo depois da Arábia Saudita. Atualmente está
submetido a congestionamentos de exportação devido ao cerco internacional, não
sendo de excluir a possibilidade de ser vítima de uma guerra de agressão
conduzida por Israel e os Estados Unidos. Os resultados das eleições
israelenses reforçam essa possibilidade.
A Venezuela tem as
maiores reservas de petróleo do mundo e está, neste momento, praticamente fora
do mercado internacional devido às pressões econômicas, políticas e militares
norte-americanas. Os Estados Unidos encaram esta situação como uma fase transitória
até que haja em Caracas um governo que mereça confiança absoluta de Washington.
Uma confiança como a
que merece agora o governo de Brasília. O fascista Bolsonaro, um súdito às
ordens de Trump, chegou ao poder na sequência de um golpe político desencadeado
quando se tornou claro que as reservas petrolíferas – o pré-sal – detectadas em
águas territoriais do Brasil catapultaram o país para terceiro potencial do
ranking global. É facílimo prever o que lhes vai acontecer.
Na Síria existem
reservas de hidrocarbonetos que multiplicam em muito o potencial de exploração
que existia antes da guerra. Estão agora em mãos de empresas estatais russas; e
foi a ação de Pompeo, enquanto secretário de Estado, que invalidou a promessa
de retirada das tropas norte-americanas do país. Elas vão continuar,
possivelmente reforçadas, sobretudo nas zonas leste e nordeste, precisamente
onde se situa o maná petrolífero.
A Rússia, por seu
lado, não dá sinais de começar a exploração dessas reservas, que seria
essencial para a reconstrução do país e a melhoria da situação do povo. Mais do
que isso: não dá sinais de levar até ao fim a operação de liquidação dos
terroristas alimentados pela OTAN, designadamente em Idleb.
Desde 2016, ano em
que se tornou membro da OPEP+ (junção de dez países ao núcleo original da
OPEP), que a Rússia acompanha o processo de estabelecimento de preços
internacionais e evita inundar o mercado para não fazer baixar os preços – o
que, na prática, não lhe permite contrariar os Estados Unidos nesta área. Daí a
imobilidade quanto à exploração na Síria e os claramente insuficientes apoios
ao Irã e à Venezuela para que vençam as barreiras à exportação de
hidrocarbonetos.
No Iraque, país
fragmentado em consequência da invasão norte-americana, tropas do Pentágono
mantêm-se no terreno apesar de as riquezas petrolíferas terem sido privatizadas
e, no essencial, estarem sob controle de Washington. Trata-se, sobretudo, de
manter a produção e dominar os fluxos de hidrocarbonetos no Curdistão
iraquiano, uma tarefa que tem repercussões colaterais, como as de apoiar os
curdos na Síria, nas zonas deste país onde se situam as reservas de petróleo.
Apesar de essa opção ter envenenado as tradicionalmente fraternais e
atlantistas relações entre os Estados Unidos e a Turquia. Ao que parece, a
escolha vale o preço a pagar.
Ainda em relação ao
controle das fontes, claramente aprofundado com Michael Pompeo como principal
agente, há que sublinhar acontecimentos recentes: o reconhecimento
norte-americano da anexação dos Montes Golã por Israel poucos anos depois de
ali terem disso identificadas importantes reservas de gás natural3; e a mais
recente ofensiva do secretário de Estado norte-americano contra o Líbano,
ameaçando instaurar uma guerra civil se Beirute não marginalizar o Hezbollah,
por exemplo, cedendo parte das suas reservas de petróleo offshore a Israel,
para saírem do controle do grupo xiita, logo do Irã, segundo a rotulagem de
Washington e Telavive.
Daí que não
surpreenda o envolvimento claro dos Estados Unidos na guerra de destruição
imposta pela Arábia Saudita no Iêmen, onde os agressores querem, no fundo, ter
acesso aos importantíssimos recursos petrolíferos deste país.
Daí que não
surpreenda também a ofensiva em curso do marechal Khalifa Haftar na Líbia,
contra um governo apoiado pela ONU, sobretudo se tivermos em conta que se trata
de um militar há muito ligado à CIA. Através dele, os Estados Unidos
«disciplinarão» a gestão do petróleo líbio – as maiores reservas da África –
que tem estado nas mãos de milícias tribais e fundamentalistas desde que a OTAN
destruiu o país em aliança com o terrorismo islâmico.
O caso Nord Stream 2
Ao reservar para
exportação a maior percentagem de gás e petróleo de xisto produzidos
internamente, de forma a obter retorno dos enormes investimentos nessa atividade
e controlar os fluxos e os preços do mercado internacional, os Estados Unidos
necessitam de compradores.
O que não seria
fácil, em termos puros de mercado, uma vez que os preços nada têm de
convidativos quando se trata de exportação transcontinental via transporte
marítimo. Ora quando o mercado não se comporta como deve ser, os
fundamentalistas do mercado livre dão uma ajuda: fazendo imposições e
manipulando a concorrência – que supostamente também deveria ser livre.
Daí a oposição
frontal norte-americana, em termos bélicos se for necessário, à construção de
gasodutos e oleodutos que escapem ao seu controlo, sobretudo se tiverem
participações russas ou iranianas.
A exportação do
petróleo e do gás de xisto (liquefeito) norte-americanos é feita por transporte
marítimo e exige infraestruturas específicas ou adaptadas de recepção e
distribuição, que vão onerar ainda mais o processo.
Nada que perturbe a
estratégia norte-americana.
O caso mais conhecido
passa-se com o gasoduto Nord Stream 2, um negócio entre a Rússia, a Alemanha e
outros países europeus que permitirá o abastecimento de gás natural à economia
europeia a preços muito favoráveis.
Mas se os interesses
das populações do continente não coincidem com os dos magnatas norte-americanos
do fracking, que se sacrifiquem os primeiros. Washington pôs a funcionar um
arsenal de pressões contra a Europa, incluindo antagonismos existentes na União
Europeia, chantagem militar e diplomática, sanções contra empresas e a «ameaça
russa» para travar o Nord Stream 2 e impor o seu gás de xisto a preços
exorbitantes. Este vale-tudo tem apanhado pelo meio a Alemanha da Senhora
Merkel, onde a grande indústria não se importa de consumir gás russo, que
garante bem melhores resultados econômicos.
Mesmo assim,
Washington está longe de desistir, ainda que a eventual tempestade tenha
dimensão para abalar a União Europeia. Por isso, dão que pensar as manobras
intraeuropeias para designar como próximo presidente da Comissão Europeia o
principal rival político de Merkel, embora seu correligionário, o bávaro Martin
Weber, grande inimigo do Nord Stream 2.
Quando se trata da
guerra pela energia, como se percebe, as apostas são altas, muito altas mesmo.
Nesse domínio não têm qualquer valor a vida humana, a soberania dos Estados, a
dignidade dos povos, a estabilidade de organizações e alianças, os mecanismos
democráticos, os direitos humanos – nem sequer a liberdade do mercado,
imagine-se.
Trata-se de poder
absoluto e global. Esse não se discute: se impõe por quem tem força e despudor
para isso.
1. Michael Pompeo é,
pelo menos antes de 2010, presidente da Sentry International, «uma firma
especializada no fabrico e venda de equipamento usado em campos de petróleo»
que mantém uma parceria com a Koch Industries por intermédio do seu distribuidor
brasileiro, a GTS Representações & Consultoria, mas desde o início que a
sua carreira, como homem de negócios e como político, foi feita à sombra dos
patrões da Koch Industries. Ver Lee Fang, «Meet Mike Pompeo: The Congressional Candidate Spawned By
The ‘Kochtopus’», em Thinkprogress, 8 de novembro de 2010. A designação do conglomerado, no título do artigo
(«Kochtopus»), remete para a sua estrutura tentacular e perniciosa na sociedade
americana.
2. Charles e David
Koch são os patrões da Koch Industries, um dos maiores grupos industriais do
mundo e a segunda maior empresa privada dos EUA. Os irmãos Koch financiam
largamente grupos de reflexão (think thanks) ligados à direita americana. O
AbrilAbril tem denunciado, em vários artigos, o papel dos irmãos Koch como
pontas de lança do que de mais reacionário tem a sociedade e a política
americanas. Por exemplo, o financiamento de organizações que promovem a
desfiliação de trabalhadores dos sindicatos, ou o financiamento de candidatos
políticos pró-negócios, como é o caso de Mike Pompeo.
3. Vale a pena ler,
como exemplo da mentalidade fanática político-religiosa da extrema-direita
sionista que domina Israel, com a cumplicidade dos EUA, as considerações e
argumentos produzidos no artigo «Huge Oil Discovery on the Golan Heights!», da
Aliança Messiânica Judaica da América (Messianic Jewish Alliance of America,
MJAA).
https://www.abrilabril.pt/internacional/o-imperio-move-se-petroleo
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