Por Paulo Donizetti de Souza, da Rede
Brasil Atual
O samba-enredo da
Estação Primeira de Mangueira no carnaval 2019 levou de volta à Marquês de
Sapucaí uma leitura crítica da história do Brasil. Com História pra Ninar Gente
Grande, a tradicional escola reconta o processo de ocupação do país desde o
descobrimento.
“Desde 1500 tem mais
invasão do que descobrimento”, diz o samba composto por Tomaz Miranda, em
entrevista recente à RBA. Para ele, manifestações culturais como as que têm
sido vistas no carnaval 2019 “vão ter papel fundamental para poder driblar todo
autoritarismo e o conservadorismo que a gente vai enfrentar nesses próximos anos”.
Brasil, meu nego
Deixa eu te contar A história que a história não conta O avesso do mesmo lugar
Na luta é que a gente se encontra
O argumento do enredo
é contundente: “Ao dizer que o Brasil foi descoberto e não dominado e saqueado;
ao dar contorno heroico aos feitos que, na realidade, roubaram o protagonismo
do povo brasileiro; ao selecionar heróis ‘dignos’ de serem eternizados em forma
de estátuas; ao propagar o mito do povo pacífico, ensinando que as conquistas
são fruto da concessão de uma ‘princesa’ e não do resultado de muitas lutas,
conta-se uma história na qual as páginas escolhidas o ninam na infância para
que, quando gente grande, você continue em sono profundo”.
A Mangueira repete a
ousadia da Paraíso do Tuiuti, vice-campeã de 2018 com o enredo Meu Deus, Meu
Deus, Está extinta a Escravidão? No ano passado, a escola do bairro de São
Cristóvão surpreendeu a avenida e cativou o público com um histórico samba de
protesto contra o racismo e as sequelas da escravidão até hoje sofridas pela
população negra do país. Uma das alas trazia “manifestoches”, ironizando o
papel manipulador da mídia e das redes sociais na formação de manifestantes que
foram às ruas contra tudo e contra todos e contribuíram para que o poder e a
política permaneçam sob o controle dos mesmos grupos econômicos de sempre.
“Meu Deus! Meu Deus!/
Se eu chorar, não leve a mal/ Pela luz do candeeiro/ Liberte o cativeiro
social”, dizia a letra da Tuiuti, que ficou apenas um décimo de ponto atrás da
campeã Beija Flor no carnaval de 2018.
Este ano, a escola do
carnavalesco Jack Vasconcelos volta ao samba com crítica social, em um enredo
que expõe conflito de classes e embate social. Diz trecho da letra de O
Salvador da Pátria, cuja referência tem sido atribuída à história do
ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Do nada um bode vindo
lá do interior Destino pobre, nordestino sonhador Vazou da fome, retirante ao
Deus dará Soprou as chamas do dragão do mar (…) Ora meu patrão! Vida de gado
desse povo tão marcado Não precisa de dotô Quando clareou o resultado Tava o
bode ali sentado Aclamado o vencedor
Cultura e resistência
O carioca Tomaz
Miranda, um dos autores do samba da Mangueira História pra Ninar Gente Grande
(ao lado de Deivid Domênico, Mama, Márcio Bola, Ronie Oliveira e Danilo Firmino),
vê um processo de resistência se impondo ao Brasil desde a ascensão do
bolsonarismo. O samba lembra, entre outros momentos da história recente, a
vereadora do Psol-RJ Marielle Franco, morta a tiros, em março passado, junto
com Anderson Gomes, que dirigia o carro em que foram emboscados, no centro do
Rio.
“Acho que vai ficar
mais aguda a tentativa de apagamento, de desconstrução da cultura popular,
principalmente ligada às origens africanas, às manifestações culturais,
religiosas e sociais verdadeiramente populares do Brasil”, disse Tomaz.
“Acho que ao mesmo
tempo essas manifestações vão ter papel fundamental para poder driblar todo
autoritarismo e o conservadorismo que a gente vai enfrentar nesses próximos
anos”, pondera, admitindo que o carnaval tem seu lado conservador: “As escolas
de samba não são uma coisa só. E a gente vai tentando jogar dentro desses
espaços de contradição”.
A jornalista
Hildegard Angel, colunista do Jornal do Brasil, comemorou o convite para
desfilar na Mangueira, na frente do carro dos “verdadeiros heróis de nossa
História”. Segundo ela, a alegoria traz, sobre livros da história do Brasil, um
tributo fortíssimo aos heróis do tempo da ditadura. “Eu quis declinar, não
tenho mérito pra isso. Mas o carnavalesco disse que eu passei a representar a
denúncia daquele tempo. Estou comovida”, disse. “Os carros estão todos lindos e
trazendo mensagens contundentes, desde a Abolição, com heroína fake. Me vejam
na TV, se é que a Globo vai me mostrar.”
Hildegard é filha de
Zuzu Angel e irmã de Stuart Angel. Zuzu foi morta pela ditadura por acuar, com
sua busca obstinada, o governo militar em razão do desaparecimento e
assassinato de Stuart Angel.
Confira o samba da
Mangueira 2019
História pra Ninar
Gente Grande
Mangueira, tira a
poeira dos porões Ô, abre alas pros teus heróis de barracões Dos Brasis que se
faz um país de Lecis, jamelões São verde e rosa, as multidões
Mangueira, tira a
poeira dos porões Ô, abre alas pros teus heróis de barracões Dos Brasis que se
faz um país de Lecis, jamelões São verde e rosa, as multidões
Brasil, meu nego
Deixa eu te contar A história que a história não conta O avesso do mesmo lugar
Na luta é que a gente se encontra
Brasil, meu dengo A
Mangueira chegou Com versos que o livro apagou Desde 1500 tem mais invasão do
que descobrimento Tem sangue retinto pisado Atrás do herói emoldurado Mulheres,
tamoios, mulatos Eu quero um país que não está no retrato
Brasil, o teu nome é
Dandara E a tua cara é de cariri Não veio do céu Nem das mãos de Isabel A
liberdade é um dragão no mar de Aracati
Salve os caboclos de
julho Quem foi de aço nos anos de chumbo Brasil, chegou a vez De ouvir as
Marias, Mahins, Marielles, malês
Publicado
em 5 de março de 2019
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