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Hyury Potter (de Florianópolis)
Se passar pelo
Congresso, presidente Jair Bolsonaro deve sancionar anistia
Desde o resultado
das urnas nas eleições de 2018, ruralistas aguardam a promessa do presidente
Jair Bolsonaro de perdoar o total das dívidas do setor com o chamado Funrural,
a contribuição previdenciária feita por produtores e empreendimentos rurais.
"Estamos
juntos nessa briga contra o Funrural", disse o então deputado federal e já
pré-candidato à Presidência Jair Bolsonaro em dezembro de 2017.
A dívida retroativa
está atualmente em R$ 15,3 bilhões, de acordo com a Receita Federal.
Especialistas afirmam que, se colocado em prática, o perdão seria
contraditório, principalmente por afetar a já deficitária Previdência Social,
que está em discussão para uma reforma que deve ampliar o tempo de contribuição
da maior parte dos trabalhadores do país.
Um dos principais
argumentos citados por Bolsonaro para aliviar a dívida do campo seria o impacto
desse tributo no pequeno produtor rural. No entanto, dados de dezembro de 2018
sobre os endividados que se inscreveram no programa de refinanciamento do
Funrural (hoje conhecido pela sigla PRR) mostram que apenas 1% do valor total
da dívida é de produtores rurais individuais, sem inscrição no Cadastro
Nacional da Pessoa Jurídica (CNPJ).
Gigantes do
agronegócio, principalmente frigoríficos e empresas de alimentos, são os maiores
devedores. Além da falta de pagamento em dia, parte dessas grandes corporações
tem mais uma coisa em comum: acusações ou condenações na Justiça por crimes de
lavagem de dinheiro e desvio de dinheiro público, alguns em operações bem
ruidosas como a Lava Jato.
Especialistas
apontam ainda outro fator de preocupação para um possível perdão: o rombo que
isso deve provocar no caixa previdenciário do país, historicamente em déficit e
por isso tema de uma profunda reforma que está sendo prometida pelo atual governo.
"Quando
falamos de uma contribuição social como a previdência do setor rural (antigo
Funrural), há vinculação direta entre a arrecadação e a aplicação dos recursos.
Ou seja, se houver remissão (perdão) da dívida, o governo federal terá de
realocar outras receitas para cobrir o rombo. Em um momento de discussão sobre
a reforma da Previdência Social, que deve aumentar o tempo de contribuição dos
trabalhadores, esse movimento se torna ainda mais improvável", explica
Ralph Melles Sticca, advogado especializado em agronegócio há mais de 15 anos e
professor da FGV Agro.
O risco desse
perdão ainda poderia causar uma reação em cadeia de outros setores produtivos
do país, afirma Mauro Silva, diretor de Assuntos Técnicos da Associação
Nacional dos Auditores Fiscais da Receita (Unafisco), entidade que apresentou
em setembro do ano passado uma ação direta de inconstitucionalidade (ADI) no
STF contra a lei que criou o PRR, sucessor do Funrural.
Na ação, que tem a
ministra Cármen Lúcia como relatora, a Unafisco critica os últimos dois planos
nacionais de refinanciamento de dívidas, e ainda alerta que esses programas já
teriam causado um rombo de R$ 175 bilhões nas contas públicas. A Unafisco
explica que esse seria o prejuízo da soma de cerca de 40 planos de renegociação
de dívidas que o governo aprovou entre 2000 e 2018.
"A
Constituição brasileira é clara sobre isso, caso haja um perdão sobre a dívida,
é preciso ter dinheiro para substituir. Mesmo que tivesse, isso abriria uma
brecha ruim, pois todos os setores poderão pedir o mesmo tratamento. Isso seria
o perdão total. Acreditamos que haja um excesso desses programas no país e que
muitas grandes empresas deixam de pagar a sua dívida já esperando que o governo
permita um refinanciamento posterior", diz Silva.
Na linha de frente
da disputa por benesses aos grandes produtores rurais estão parlamentares
próximos do governo Bolsonaro. A deputada Tereza Cristina (DEM-MS)foi relatora
da Medida Provisória 793 que estendeu o prazo para inscrição no PRR até 28 de
fevereiro de 2018. Tereza é ministra da Agricultura do governo Bolsonaro, cargo
que chegou a ser cogitado para o deputado Jerônimo Goergen (PP-RS), autor de um
projeto de lei (PL 9252/17) que tramita com urgência na Câmara e que prevê o
perdão total da dívida do Funrural, com a extinção da cobrança.
Goergen chegou a
ser investigado na operação Lava Jato após ser citado em delação do doleiro
Alberto Yousseff em 2015. A acusação de que o deputado teria participado do
esquema de corrupção que envolvia a Petrobras e a bancada do PP foi arquivada
pelo então procurador-geral da República Rodrigo Janot em 2017.
De acordo com o
jornal Folha de S.Paulo, a
ministra Tereza Cristina é citada em documentos entregues por delatores da JBS
em agosto de 2017 como complemento de colaboração premiada à Procuradoria-Geral
da República (PGR). Em 2013, quando era secretária do agronegócio em Mato
Grosso do Sul, Cristina teria permitido incentivos fiscais à JBS na época que a
família dela mantinha negócios com a empresa. A ministra informou ao jornal, em
novembro do ano passado, que adotou "políticas de governo” para conceder
benefícios fiscais à JBS.
Grandes empresas, grandes dívidas
Da dívida total do
Funrural de R$ 15,3 bilhões, um levantamento da Procuradoria-Geral da Fazenda
Nacional (PGFN), de 20 de dezembro de 2018, expõe que 2.730 produtores com
débitos que somam R$ 3,9 bilhões procuraram o órgão fazendário para inscrição
no PRR.
Desse grupo, 372
produtores com cadastro especial no INSS (conhecidos como CEI) somam R$ 39
milhões em débito com a União. O maior devedor da lista é o grupo Tinto
Holding, que controla frigoríficos e acumula sozinho uma dívida de R$ 334
milhões. Somando a dívida de todos os produtores com CNPJ o valor chega a R$
3,88 bilhões, ou 99% do valor total de inscritos para refinanciamento.
Na ADI proposta
pela Unafisco contra os refinanciamentos os auditores afirmam que as benesses
oferecidas pelo governo historicamente são feitas sem regras rígidas. Citando
dados da Receita Federal, a ação Unafisco calcula que "70% dos aderentes
aos parcelamentos especiais são empresas com faturamento superior a R$ 150
milhões".
O principal
argumento dos auditores é que programas que reduzem ou perdoam dívidas são
majoritariamente voltados para grandes companhias, não pequenos produtores.
"O grande
interesse nesses casos parte das grandes empresas. Na área rural são os grandes
frigoríficos. O pequeno produtor nem teria dinheiro para fazer lobby nas
federações ou no Congresso. A alíquota de 1,5% da comercialização da produção
não significa muito no final do ano para o pequeno, mas os 2,05% do grande
produtor podem chegar a milhões de reais. É este tipo de produtor que reclama",
afirma Silva.
Em resposta à DW, a
PGFN informou que até o final de 2018 já analisou cerca de R$ 927 milhões em
dívidas a serem renegociadas, que foram reduzidas a R$ 363 milhões, menos de
40% do valor devido inicialmente.
Problemas na Justiça
Líder de
endividamento entre as solicitações de inscrição no PRR, com R$ 334 milhões em
débitos, a Tinto Holding é controladora do frigorífico Bertin. O empresário
Natalino Bertin é o principal acionista da empresa. Em setembro do ano passado,
Bertin foi alvo de um mandado de prisão expedido pela vara de execuções penais
da Justiça Federal em Curitiba após condenação por lavagem de dinheiro em uma
das ações originadas pela operação Lava Jato. A pena a ser cumprida é de quatro
anos e dois meses em regime semiaberto.
Em 2009 a Tinto
Holding se fundiu com o grupo JBS, um dos maiores alvos da operação Lava Jato e
também devedor do Funrural. A fusão é investigada por órgãos de controle. O
Tribunal de Contas da União (TCU) apontou em 2018 prejuízo de R$ 1,1 bilhão ao
BNDES na operação.
Em recuperação
judicial desde 2008, a empresa Frigoestrela tem R$ 279 milhões em dívidas com o
Funrural e está na segunda posição. O proprietário do frigorífico é ex-deputado
federal Etivaldo Vadão Gomes (PP-SP), condenado em segunda instância, no TRF-3,
por desvio de verba pública cometido em 1995.
O Frigorífico
Margen solicitou renegociação em dívida de R$ 157 milhões e aparece em segundo
na lista no PRR. Os sócios Mauro Suaiden e Geraldo Prearo foram presos em uma
investigação da Polícia Federal em 2004 que os acusou de lavagem de dinheiro,
sonegação de impostos, corrupção em órgãos públicos, falsidade ideológica,
apropriação indébita de contribuição da Previdência Social e formação de
quadrilha. Os dois foram absolvidos posteriormente. O Margen é uma das empresas
alvo da operação Carne Fraca, de 2017, que investiga a prática de adulteração
de carnes em frigoríficos do país. Esse caso segue na Justiça.
Suaiden voltou a
ser preso em dezembro de 2018 por porte ilegal de armas em Goiás. A Polícia
encontrou as armas após fazer uma vistoria em sua causa por causa de ameaças
que ele teria feito a uma juíza por não concordar com decisões dela.
De acordo com a
PGFN, a JBS foi a principal devedora do Funrural até o final dos anos 2016 e
2017, com débitos que passavam dos R$ 370 milhões. Um dos principais acionistas
do grupo, Joesley Batista foi preso na operação Lava Jato em setembro de 2017
por omitir informações em acordo de delação premiada, e também em novembro do
ano passado acusado de pagar propina em organização criminosa que atuava na
câmara dos Deputados e no Ministério do Meio Ambiente. Em 2015 a empresa
devedora recordista foi a Tinto Holding, com R$ 264 milhões a pagar.
A história do Funrural
Criado na década de
1970 sob a Ditadura Militar, o Funrural surgiu como uma cobrança de 2% sobre a
comercialização do produtor rural para financiar a previdência do trabalhador
do campo. Com a Constituição de 1988, o Funrural foi extinto, mas a cobrança
permaneceu, e o valor passou a ser depositado no Regime Geral de Previdência
Social, que estabelecia regras diferentes para trabalhadores rurais e urbanos.
Nos anos seguintes, as mudanças foram regulamentadas por lei, a nº. 8.212/91
(Lei Orgânica da Seguridade Social) para o agricultor familiar e a nº. 8.540/92
para o empregador rural. Em 2001, a lei nº. 10.256/01 estendeu a incidência
para as agroindústrias.
O imbróglio
jurídico começou em 2010, quando o STF julgou e deu ganho de causa a um
frigorífico que pedia a inconstitucionalidade da lei de 1992. Diversos
produtores rurais e empresas agropecuárias acionaram a Justiça para suspender o
pagamento do tributo, mas com decisões ainda conflitantes ao redor do país,
muitos optaram por depositar os valores em juízo. Outros produtores decidiram
por simplesmente deixar de recolher o tributo. Posteriormente, a questão foi
decidida favoravelmente aos produtores rurais pessoas físicas que empregam no
meio rural, sendo suspensa a execução do dispositivo da lei de 1992 declarado
inconstitucional pelo Senado Federal em 2017.
Em março de 2017,
porém, o STF julgou novamente a questão, agora sob a égide da lei de 2001, e
decidiu que a cobrança é constitucional a partir de então. A maior parte da
dívida de R$ 15,3 bilhões foi formada pelos produtores que deixaram de recolher
o tributo entre as duas decisões do Supremo.
"O Funrural
foi extinto em 1991 com a incorporação do trabalhador rural ao regime geral de
Previdência Social, mas os produtores rurais pessoas físicas e jurídicas
seguiram recolhendo a contribuição previdenciária sobre a receita bruta da
comercialização. A partir de 2001, em decorrência de uma emenda à Constituição
Federal de 1988, o tributo deixou de incidir sobre as receitas de exportação,
reduzindo substancialmente a contribuição do setor, notadamente exportador. A
decisão favorável do STF em 2010 levou muitos produtores à justiça, mas o
alcance das novas ações se limitou à cobrança já sob a lei nº. 10.256/01. Por
isso a surpresa com a mudança de entendimento do STF em 2017 e o expressivo
passivo deixado por aqueles que optaram por não depositar judicialmente os
valores", explica o professor Sticca.
Em janeiro de 2018
o presidente Temer sancionou a lei nº. 13.606/18, que além de ratificar as
regras para adesão ao PRR, instituído em julho de 2017, reduziu as alíquotas da
Contribuição Previdenciária dos produtores rurais pessoas físicas e jurídicas.
Tramita na Câmara em regime de urgência o projeto de lei 9252/2017, que
pretende perdoar toda a dívida do antigo Funrural, atualmente em R$ 15,3
bilhões.
Publicado em 07.02.2019
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