quarta-feira, 2 de janeiro de 2019

A ESQUERDA E A QUESTÃO DA CORRUPÇÃO


Por André Brandão (Militante do PCB da Bahia)
Os fatos que recentemente vieram à tona sobre o motorista de Flávio Bolsonaro compõem um novo capítulo do processo de desmanche da imagem “incorruptível’’ e “antissistêmica’’ vendida pelos políticos do PSL. O episódio se soma a muitos outros casos, tais quais a citação a suspeita de uso de caixa 2 na campanha, a evolução irregular do seu patrimônio, o uso indevido de auxílio-moradia (mesmo tendo casa), a contratação de funcionários fantasmas e o nepotismo com o seu próprio irmão – também empregado como funcionário fantasma.

Ironicamente, o presidente eleito no pleito deste ano, que sempre se declarou “contra tudo que está aí”, anunciou um ministério repleto de nomes envolvidos em escândalos de corrupção e pastas loteadas em troca de apoio partidário, sob a justificativa de que “a questão ideológica é muito mais grave que a corrupção’’, isto é, que o neofascismo a serviço do grande empresariado e o anticomunismo passam por cima da demagogia moralista propagada nas eleições.
O cinismo político da figura de Bolsonaro traz consigo um conjunto de elementos que reaquecem os debates no país sobre a temática da corrupção, mesmo que ainda estejam presos a uma oposição entre a defesa acrítica dos setores que permanecem fiéis ao bolsonarismo e a denúncia de seus crimes ainda hegemonizada pelas palavras de ordem de um setor que rebaixa os horizontes da luta popular no país. Tendo tudo isso em vista, é preciso refletir sobre como têm sido travadas as discussões na esquerda sobre a corrupção e para quais perspectivas ela deve apontar.
Do discurso anti-corrupção abstrato ao anti-udenismo rebaixado
Desde o final dos anos 70, vemos no mundo inteiro um longo período de retrocessos, sem a eclosão de grandes revoluções, aliado à capitulação de importantes experiências socialistas e uma profunda socialdemocratização da esquerda. No Brasil não foi diferente. Sabemos que, a partir das históricas greves metalúrgicas do ABC, as forças políticas que convergiram na fundação do Partido dos Trabalhadores passaram a dirigir sistematicamente os movimentos sociais, sindicais e estudantis do país. Tais correntes produziram, como resultante das suas perspectivas, um programa de conciliação de classes, o que também gerou consequências na sua visão sobre a corrupção.
Coerente com as suas principais bases sociais, formadas por setores eclesiais, uma intelectualidade de maioria heterodoxa e uma aristocracia operária, o PT, desde o início da sua trajetória, ainda na oposição, promoveu uma deseducação política sobre o tema em questão, através de um discurso anti-corrupção abstrato típico das camadas médias.
Guiado apenas por uma abordagem moral e individualizante do problema, o PT denunciava corruptores sem discutir sobre a natureza social-material da corrupção e sem apontar alternativas efetivas, baseadas num poder alternativo de natureza operária, no controle social das instituições pelos trabalhadores. Além disso, se vendia como um partido isento de corrupção pela defesa de que seus membros possuíam qualidades morais acima de qualquer suspeita. Não havia nenhuma vinculação de classe, nenhuma base material que fosse estabelecida para balizar tais afirmações. Tudo era resumido à exposição das qualidades individuais abstratas dos seus quadros partidários.
As profundas transformações internas sofridas pelo PT durante a década de 90 deram condições para que o partido substituísse o PSDB em 2002, numa transição em que o Partido dos Trabalhadores pôde se adequar à lógica de gestão do capitalismo brasileiro. Ao chegar no poder, o PT pouco a pouco foi moldando o seu discurso sobre a questão da corrupção, de forma que o seu moralismo pequeno-burguês desse lugar a um anti-udenismo rebaixado.
Pelas próprias demandas práticas de um governo comprometido com as pautas do poder econômico, o petismo não podia continuar sustentando a mesma retórica que mantinha na oposição, uma vez que necessitava participar dos jogos de composição de Brasília para manter-se no poder e aprovar as suas matérias. Do outro lado, a grande mídia e o setor da direita que caiu para a oposição, comprometidos com a volta ao poder de uma força política organicamente vinculada às classes dominantes, retomaram o discurso moralista abstrato e atacaram seletiva e sistematicamente o novo governo, como se o PT tivesse inaugurado a corrupção no país e fosse a organização mais corrupta do Brasil, o que, em que pesem os desmandos reais do petismo, não passa de uma falácia absurda.
Para justificar suas novas e contraditórias práticas e responder a parcela dos agentes políticos das elites determinados a instaurar um novo governo mais hostil aos trabalhadores, o petismo passa a reviver o anti-udenismo, a antiga crítica que os setores progressistas brasileiros faziam, entre as décadas de 40 e 60, frente ao golpismo da UDN de Carlos Lacerda, os entreguistas que travestiam os seus interesses grotescos com um falso discurso anti-corrupção.
É evidente que a direita brasileira usou de maneira oportunista a temática da corrupção nos últimos 15 anos, mas a resposta do então governo petista foi a crítica de que qualquer argumento que tratasse da corrupção seria um discurso golpista e que qualquer partido ao chegar ao poder deveria fazer o que o PT fez. Quando muito, o partido munia-se de um republicanismo ingênuo, que dizia que a resposta a todos esses casos deveria ser feita pelas neutras e imparciais instituições brasileiras, como o ministério público e o poder judiciário, não restando espaço para qualquer debate público sobre a questão.
Por anos, este debate ficou estagnado entre os setores progressistas. Qualquer tentativa de se discutir sobre a questão da corrupção rapidamente era taxada como um projeto de intenções oportunistas de uma direita que desejava voltar o poder. Não haveria por que debater as práticas do Partido dos Trabalhadores no poder, já que as suas ações compunham a única forma de um partido conquistar benefícios para as classes subalternas, e o caminho para a ruptura com esse tipo de ordem social seria uma ilusão.
O golpe institucional de 2016, que retirou a presidente Dilma sem a comprovação de um crime de responsabilidade fiscal, foi a demonstração de que a verdadeira ilusão estava na hegemonia do movimento popular. Vemos que uma base aliada corrupta e composta por partidos políticos orgânicos da direita só tolera um governo de conciliação de classes até onde ele for conveniente para a burguesia brasileira. As instituições do Estado, por sua vez, nada fizeram perante a ilegalidade do processo, e seu ativismo nada teve de neutro e imparcial, perseguindo a todo custo uma transição para um governo que atendesse ainda mais os interesses do poder econômico.
A direita brasileira soube muito bem utilizar o discurso justificacionista do PT, declarando que era prática típica da esquerda justamente aquilo que caracterizou o processo de direitização do partido e a sua adequação à ordem burguesa. Pouco a pouco, a população foi sendo educada a entender que as articulações com os partidos fisiológicos, o ajuste fiscal e a gestão do capitalismo em lobby com a Odebrecht, a JBS, a Kroton, o Itaú e a CNA eram práticas dos “vermelhos’’, em oposição à dita postura antisistêmica do capitão da reserva “incorruptível’’.
A importância do debate sobre a corrupção e as alternativas da classe trabalhadora
Falar da corrupção na política brasileira também significa falar de uma maleta de dinheiro que chega às mãos de um deputado, mas essa maleta não caiu do céu: veio de algum membro do latifúndio brasileiro, atrás de renúncias fiscais; de um industrial, atrás do afrouxamento da legislação trabalhista; de um empreiteiro, atrás de um favorecimento em uma licitação. Falar da corrupção significa falar sobre a contradição entre a democracia e o capitalismo, a impossibilidade de se ver realizar o poder do povo dentro da ordem burguesa. Contudo, entender que a luta anticorrupção é necessariamente uma luta anticapitalista não significa que se deva abdicar da questão até o dia em que emergir a revolução brasileira, mas sim que a evolução de uma está vinculada à evolução da outra, passo a passo.
Infelizmente, a questão da corrupção ainda é tratada no Brasil apenas como um problema moral, do indivíduo. Os comunistas são os últimos a negar a existência desta dimensão do problema. Um militante a serviço da causa socialista também deve ser julgado pela sua conduta moral e compromisso efetivo com a emancipação humana. Entretanto, em termos da luta política, é preciso ultrapassar os marcos da análise das práticas e valores dos sujeitos, uma vez que a própria natureza e as limitações do processo político exigem respostas estruturais e coletivas.
Os principais desafios para o combate às ações corruptoras estão vinculados à superação radical da institucionalidade do Estado atual, que limita o parlamento brasileiro àqueles que legislam como lobistas, como agentes a mando das empresas que os contratam, e não da população brasileira. Pensar que apenas colocando “pessoas honestas no poder’’ nós iremos realmente mudar o país não é pensar numa resolução suficiente, mesmo porque aqueles que que realmente são honestos – e não os oportunistas – dificilmente chegarão no parlamento por estas vias. Além disso, aqueles que, como dizia Ho Chi Minh, servem ao povo de todo o coração, não o fazem simplesmente por uma qualidade moral conquistada de modo solitário. Quem de fato luta pelo poder popular o faz por um vínculo estreito que se estabelece com o movimento dos trabalhadores organizados.
Só há uma forma conhecida para derrubar a ladroagem generalizada de hoje em dia: o crescimento do controle popular sobre as instituições e as decisões tomadas no país. É necessário fazer crescer a autoridade e o poderio da classe trabalhadora perante o poder da burguesia. Não podemos cair mais nas ilusões de apostarmos no aparentemente neutro, transparente e eficiente procedimento das instituições. Precisamos desde já travar uma longa luta pela construção do poder popular, que no seu desenvolvimento, no acúmulo de vitórias parciais e imediatas, deve apontar para algumas pautas centrais no combate à corrupção, tais quais: o controle das empresas estatais pelos seus próprios trabalhadores; a eleição dos juízes pela população, para que tenham sua atuação vinculada às demandas populares; o fortalecimento de sólidos conselhos e comitês nos bairros, nos locais de estudo e de trabalho, que tenham poder deliberativo sobre as suas próprias vidas, e que parem as cidades, os estados e até mesmo o país inteiro se alguma contrarreforma for pautada.
O combate real à corrupção não interessa a nenhum dos sujeitos e organizações que hoje hegemonizam a discussão sobre a questão. Atacar a raiz da corrupção é atacar a forma política que domina o país, como uma gestão em prol dos interesses do poder econômico. Estamos falando das intenções centrais do PSL, do DEM, do MBL e de toda a direita brasileira. São os mecanismos que aproximam a classe trabalhadora do funcionamento do poder político e das discussões sobre as questões candentes das suas existências que efetivamente podem minar a influência vil do capital sobre a vida brasileira. Quando escaparmos da demagogia da direita e do bolsonarismo, que levanta bandeiras abstratas contra a corrupção para velar a podridão dos seus acordos políticos e de seu programa de destruição da soberania nacional e da vida da população, conseguiremos avançar concretamente na luta contra o caráter corrupto da democracia burguesa.

EM TEMPO: A corrupção habita no Sistema Econômico Capitalista. Combatê-la eficazmente significa lutar em defesa da construção de uma nova sociedade igualitária e socialista. Consequentemente, a corrupção figurará apenas como uma cicatriz da nossa história (grifo nosso)

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