'A investigação contra Júnior Mano expôs a corrupção com emendas PIX, e reacendeu a engrenagem que criminaliza o Nordeste para preservar os donos do poder'
09 de julho de 2025
Deputado Júnior Mano (CE) (Foto: Bruno Spada/Câmara
dos Deputados)
Por Sara Goes (Jornalista e Âncora da TV247)
No final de 2024, a Polícia Federal concluiu que o
deputado federal Júnior Mano, do PSB do Ceará, ocupava papel central num
esquema de desvio de emendas parlamentares para comprar votos em dezenas de
municípios cearenses. Segundo os investigadores, ele usou pelo menos R$ 47
milhões em emendas do tipo “Pix”, aquelas que caem direto nas contas das
prefeituras sem exigência de plano detalhado. O dinheiro foi repassado a
aliados políticos, usado em contratos com empresas de fachada e alimentou um
sistema eleitoral viciado, baseado na troca de favores, recursos públicos e
fidelidade nas urnas. O objetivo era garantir sua reeleição e manter controle
político sobre prefeitos da região. Uma operação recente da PF bloqueou mais de
R$ 50 milhões e atingiu o gabinete do deputado na Câmara dos Deputados. O
escândalo escancarou mais uma vez o uso das emendas parlamentares como moeda de
corrupção institucionalizada.
Como relatou o jornalista Carlos Mazza, na mesma
decisão em que autorizou a operação contra Júnior Mano, o ministro Gilmar
Mendes, do Supremo Tribunal Federal, determinou também a instauração de uma
nova investigação autônoma, sigilosa, para apurar o possível envolvimento de
outros deputados no mesmo tipo de esquema. Essa nova linha de apuração foi
aberta após a Polícia Federal citar os nomes de José Guimarães (PT), Eunício
Oliveira (MDB) e Yury do Paredão (MDB), todos mencionados por terceiros no
inquérito que envolve o prefeito de Choró, Bebeto Queiroz (PSB), apontado como
operador do esquema.
Segundo o inquérito, Guimarães e Eunício teriam,
supostamente, articulado emendas com Bebeto, por meio do vice-prefeito de Canindé,
Ilomar Vasconcelos (PSB). Há mensagens que indicam a possível oferta de R$ 2
milhões por parte de Guimarães e R$ 1 milhão por parte de Eunício. Já Yury do
Paredão aparece vinculado ao esquema em “diferentes níveis”, com destaque para
uma emenda individual de R$ 10 milhões para Choró, acompanhada por
interlocuções de sua assessoria com o grupo de Bebeto sobre a execução do
recurso.
Todos os parlamentares citados negaram envolvimento
em qualquer irregularidade. Eunício disse que destina emendas de forma
transparente e que sequer foi notificado de eventual investigação. Yury afirmou
ter compromisso com o desenvolvimento do Ceará e ressaltou que foi eleito sem
apoio de prefeitos. Já Guimarães foi enfático ao dizer que não é alvo de
investigação, não destinou emendas a Choró e que disputou contra o atual
prefeito do município. Ele também declarou que nenhuma emenda foi indicada por
ele para Canindé nos anos de 2024 e 2025, informação que pode ser conferida no
SIAFI.
Os fatos ainda estão em apuração, mas o que já se
escancara é a fragilidade do modelo de emendas parlamentares como instrumento
de política pública. Num país onde o orçamento virou balcão e a representação
virou negócio, os desvios não são exceção, são engrenagem.
No Nordeste
Ao lado do nome de Júnior Mano, outros nomes do Nordeste
também foram alvos de denúncias semelhantes, como Hugo Motta (Republicanos), da
Paraíba, e Arthur Lira (PP), de Alagoas. A repetição de escândalos envolvendo
políticos dessas regiões levanta uma pergunta recorrente e incômoda: por que
quase todos os envolvidos são nordestinos? Não há corrupção no Sudeste?
A resposta exige olhar para três camadas do
problema. A primeira é a dependência estrutural. Deputados do Nordeste e do
Norte também, em geral, têm menos acesso a ministérios, fundos partidários robustos
e grandes doadores empresariais. Eles dependem mais diretamente das emendas
parlamentares para “mostrar serviço” nos seus redutos eleitorais. Em regiões
marcadas por desigualdade e carência de políticas públicas, uma emenda pode
virar uma ambulância, uma quadra, um poço ou uma estrada.s emendas, nesse
contexto, podem ser moralmente questionáveis, sobretudo quando usadas como
moeda de barganha política, mas isso não significa automaticamente desvio ou
corrupção. É justamente nessa zona cinzenta entre o legal e o ilegítimo que o
risco de distorções aumenta.
A segunda camada é a sofisticação da corrupção no
Sudeste. Lá, os esquemas costumam envolver privatizações, contratos milionários
com empresas de transporte, obras de infraestrutura, grilagem urbana ou
organizações sociais na saúde. São operações muito mais complexas, amparadas
por escritórios de advocacia caros, articulações no judiciário e blindagem
institucional. Essa corrupção de “gravata e terno italiano” raramente vira
escândalo com sirene da PF e coletiva de imprensa.
A terceira camada é a cobertura da mídia. A imprensa nacional, majoritariamente sediada em São Paulo, tende a dar mais visibilidade aos escândalos do Nordeste, muitas vezes com um viés regionalista e moralizante. Um escândalo envolvendo um deputado do Ceará vira manchete com foto e adjetivos. Já casos similares envolvendo políticos paulistas são tratados com descrição, e não raramente somem sem alarde. Essa assimetria revela um preconceito estrutural, reforçado pelo fato de que tanto a mídia comercial quanto a independente compartilham o mesmo CEP e a mesma visão elitista. Observam a política brasileira sob uma ótica míope e provinciana, tipicamente paulista, que classifica os fluminenses como milicianos boêmios de um Rio tropical e caricato, o Centro-Oeste como reduto de brucutus do agrobusiness, o Sul como abrigo de nazi-fascistas enrustidos e o Norte como uma espécie de ausência geográfica a espera de salvadores sudestinos.
Nesse
enquadramento estreito, o Nordeste é criminalizado como território de corrupção
congênita, enquanto as oligarquias do Sudeste seguem imunes a rótulos como
“coronelismo”. Ninguém chama de coronel os Setúbal, os Silva Prado ou os
Macris, embora o verdadeiro patrimonialismo esteja entranhado nos conselhos de estatais
privatizadas, nos lobbies empresariais e nos salões da Faria Lima. O Nordeste
passa a ser criminalizado como território de corrupção congênita, enquanto as
oligarquias do Sudeste seguem imunes a rótulos como “coronelismo”. Ninguém
chama de coronel os Setúbal, os Silva Prado ou os Macris, embora o verdadeiro
patrimonialismo esteja entranhado nos conselhos de estatais privatizadas, nos
lobbies empresariais e nos salões da Faria Lima.
O que parece apenas mais um caso de corrupção
regional revela, na verdade, uma engrenagem mais ampla de produção seletiva de
escândalos, que sacrifica a periferia política para preservar o centro do
poder. É o que mostra, com precisão cirúrgica, o estudo de Israel França.
Corrida para o
Senado
A análise sobre a disputa ao Senado no Ceará
desvela não apenas os riscos de uma candidatura de José Guimarães, mas o
funcionamento de uma engrenagem de poder que transforma vulnerabilidades
individuais em álibis de sistema. Guimarães é apresentado como peça
sacrificável, não por acaso: sua trajetória condensa o que o sistema deseja
preservar e o que precisa descartar. Articulador da governabilidade, operador
de emendas, líder do governo Lula na Câmara, mas também portador de um passivo
simbólico irredimível, fixado no imaginário coletivo desde o episódio dos
“dólares na cueca”.
Israel mostra que esse não é um caso isolado, mas
um risco sistêmico. A narrativa de que Guimarães “escapou” por prescrição, e
não foi absolvido, alimenta o enredo antipolítica que atravessa o país que
criou o termo “descondenado”. Uma campanha com seu nome à frente deixaria o PT
na defensiva, forçado a justificar o passado quando o que está em disputa é o
futuro. O estudo indica que há alternativas internas (como Luizianne Lins) e
externas (como Chagas Vieira) que, mesmo com desafios eleitorais ou
ideológicos, não carregam o fardo de contaminar o projeto político com estigmas
de impunidade.
Hashtag inimiga da
política
Mas o que torna a análise ainda mais contundente é
o seu encaixe no momento político mais amplo. O escândalo de Júnior Mano,
exposto com estardalhaço pela imprensa, a abertura de inquérito contra outros
parlamentares do Nordeste e a popularização da hashtag #congressoinimigodopovo
não são coincidências, são engrenagens que operam em conjunto. A ofensiva
contra Júnior Mano e o cerco simultâneo a parlamentares da região apontam para
uma possível instrumentalização da Polícia Federal e do Judiciário com fins
políticos, especialmente num contexto de pressão internacional (com Trump
atacando diretamente o STF) e de um pacto doméstico (PSB + PT) para “safar” a
Corte. O raciocínio é simples e perverso: o Congresso “inimigo do povo”
pavimenta o caminho, a Justiça executa, e os alvos preferenciais são políticos
do Norte e Nordeste, já previamente marcados como “suspeitos de sempre”.
Nesse arranjo, a criminalização de Guimarães e
afins pode estar sendo usada como movimento estratégico, uma combinação de
justiçamento seletivo, pressão geopolítica e purga simbólica que reposiciona o
PT no tabuleiro institucional, mesmo ao custo de sacrificar peças do próprio
campo aliado. A hashtag que viraliza, longe de ser apenas um desabafo popular,
ajuda a pavimentar o discurso que criminaliza a política tal como em 2013,
quando a rejeição ao sistema foi sequestrada e reciclada como combustível da
antipolítica que abriria caminho para o fascismo.
A frase cruel das socialites em 2012, “é nordestino
querendo fazer coisa em São Paulo”, dita num coquetel da elite paulistana
durante o julgamento do mensalão, ilustra esse mecanismo com precisão. A
jornalista Consuelo Dieguez testemunhou o comentário enquanto acompanhava o
julgamento de figuras como José Genoíno, cearense, e José Dirceu,
ex-guerrilheiro petista. A cena revelava mais que preconceito de classe,
escancarava o incômodo histórico das elites do Sudeste diante da ascensão
política de lideranças nordestinas, vistas como invasoras de um espaço que não
lhes pertence.
É importante dizer que José Guimarães não pode ser
lido como um nordestino migrante vulnerável ou desamparado. Ao contrário, é
raposa velha do sistema, operador hábil da engrenagem, mestre da articulação
pragmática e fiador de pactos com o centro fisiológico do poder. Mas num
contexto midiático que racializou e regionalizou a política, transformando o
Nordeste em sinônimo de clientelismo, atraso ou desvio, até a raposa vira bode
expiatório. A estrutura não o perdoa por ser apenas corrupto ou pragmático, mas
por carregar, no imaginário institucional, o marcador de origem. É isso que o
torna peça sacrificável de uma engrenagem que precisa punir os de sotaque
carregado para preservar os de sobrenome leve.
O escândalo, quando nasce no sertão, vira crime de
lesa-pátria. Quando brota do coração financeiro do país, é tratado como
“complexidade contratual”. Guimarães não é apenas um indivíduo em risco, é o
elo frágil de uma cadeia que sempre soube quem pode ser exposto e quem deve ser
poupado.
Israel França, ao dissecar a candidatura como fator
de risco narrativo, ético e eleitoral, coloca o dedo na ferida do pragmatismo
que corrói o PT por dentro e que continuará após a decisão do PED. A manutenção
de alianças espúrias, o esvaziamento da identidade partidária, a desmoralização
da militância, tudo isso explode quando se tenta transformar em símbolo de
futuro um personagem que simboliza o passado mais tóxico da história do
partido. A análise não pede só veto. Pede coragem para mudar a lógica.
E talvez esse seja o verdadeiro pulo do gato: usar
a crise não para reciclar os mesmos nomes, mas para reorganizar o campo
político sob novas bases. Porque, se a política continuar operando no modo
defensivo, o sistema seguirá no modo punitivo, e os Guimarães de cada ciclo
continuarão sendo devorados para que os verdadeiros senhores da engrenagem
sigam intocados.
Cerco simbólico e
pacto de cúpula, o sacrifício das margens para blindar o centro
O saldo, por ora, é uma intensificação do cerco
sobre lideranças regionais, num contexto em que a moral jurídica substitui o
conflito político real, e o pacto federativo se reorganiza por cima, entre
palácios e togas. O povo, cuja representação, por mais precária que seja, passa
pelas emendas e pelo voto, segue fora da equação, enquanto o Nordeste reaparece
como território sob tutela, não mais da Ditadura, mas de uma tecnocracia
judicial que naturaliza a exceção como método.
Essa engrenagem, no entanto, não gira isolada. O
STF também age sob pressão externa, numa tentativa de blindagem preventiva às
vésperas do julgamento de Bolsonaro. O tribunal se vê acuado entre o avanço de
forças trumpistas nos Estados Unidos, os ataques articulados de congressistas
bolsonaristas e um pacto interno, costurado com parte do petismo e da
centro-direita, para preservar sua autoridade institucional. A criação de
cargos, a mediação sobre o IOF e a ofensiva sobre parlamentares regionais
aparecem como movimentos táticos num xadrez em que o tribunal tenta garantir sobrevivência,
poder e centralidade. O risco é transformar o combate à corrupção em
dispositivo de controle seletivo, uma espécie de Lava Jato sem pirotecnia, mas
com a mesma eficácia simbólica para enfraquecer adversários e reforçar a
autoridade dos pactos de cúpula.
A crise de legitimidade do Congresso escancara uma
desconexão brutal entre a engenharia institucional e o sentimento popular. Do
outro lado do espelho, o governo Lula alcança seu ponto mais alto de aprovação
no ano. Segundo a pesquisa AtlasIntel/Bloomberg, o presidente sobe em todos os
segmentos, especialmente entre os mais pobres e nas periferias urbanas. O
contraste é gritante, enquanto o Congresso se desmoraliza e o STF ensaia
coreografias defensivas, Lula se sustenta como o único polo de legitimidade
popular ativa no jogo.
Mas esse apoio não basta para deter a lógica sacrificial que estrutura o
sistema. A criminalização seletiva de parlamentares nordestinos, a
judicialização assimétrica de emendas e a blindagem do centro financeiro e
político do país formam um roteiro já conhecido. Nele, figuras como Guimarães
funcionam não só como bodes expiatórios, mas como válvulas de contenção
simbólica, oferecidas ao escândalo para que os verdadeiros donos da engrenagem,
blindados no Sudeste, nos conselhos das estatais e nas torres de advocacia da
Faria Lima, sigam intocados.
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