Famílias palestinas regressam às suas casas destruídas na Faixa de Gaza, após o cessar-fogo – Créditos / Unrwa
Manuel Loff
ODIARIO.INFO
O atual cessar-fogo não fez cessar o
genocídio em Gaza. Nem é garantido que exista da parte da entidade sionista
qualquer genuína intenção de não o retomar. Com um intervalo de 80 anos quase
exatos, a declaração deste precário cessar-fogo coincide com a data da
libertação de Auschwitz pelo Exército Vermelho. O paralelo é dramaticamente
elucidativo. Que os responsáveis atuais pelo genocídio do povo palestino
invoquem a memória do Holocausto evidencia quão sinistras podem ser as curvas
da história
Ironia da história, o cessar-fogo foi
declarado em Gaza quase 80 anos depois da libertação de Auschwitz (27 de
janeiro de 1945) pelos soldados soviéticos. Confirmadas pelo Tribunal Penal
Internacional as acusações de crimes de guerra e contra a humanidade praticados
por Israel, emitidos mandados de captura de Netanyahu e do seu ex-ministro Yoav
Gallant, aberta a investigação pelo Tribunal Internacional de Justiça sobre o
crime de genocídio, é hora de fazer o balanço dos 471 dias de massacre, limpeza
étnica e execução de um projeto genocida para Gaza e o conjunto da Palestina.
O TPI acusou a cúpula do Estado
sionista de crimes de guerra (provocar a “fome como método de guerra” e
“intencionalmente dirigir um ataque contra a população civil”) e dos crimes
contra a humanidade de “assassinato, perseguição e outros atos desumanos”.
Pelos registros das autoridades sanitárias de Gaza, julgava-se que teriam
chegado aos 50 mil palestinos mortos desde outubro de 2023, 40% deles crianças
e adolescentes. “É como se uma sala de aulas cheia de crianças fosse
bombardeada todos os dias, (…) e todas essas crianças são mortas”, dizia há
meses Marta Lorenzo, da UNRWA, ao PÚBLICO.
Ora os dados estão subestimados. Um
estudo publicado na The Lancet estima em 64 mil os mortos só até 30 junho de
2024, isto é, 41% mais do que o registrado (“Traumatic injury mortality in the
Gaza Strip from Oct 7, 2023, to June 30, 2024: a capture–recapture analysis”,
9/1/2025). Se compararmos apenas os números oficiais (isto é, dos corpos
encontrados e registrados, excluindo, portanto, todos aqueles desaparecidos que
possam estar sob as ruínas) com os dos períodos mais mortíferos de outras
guerras, os palestinos mortos pelos israelenses em Gaza no 1.º ano da invasão
são o triplo dos ucranianos mortos em 2022 (cálculos do Uppsala Con ict Data
Program, El País, 19/1/2025).
A intenção genocida amplamente
documentada nos relatórios do Conselho de Direitos Humanos da ONU foi passada
na prática “numa das campanhas de bombardeamentos mais devastadoras da
história” (Robert Pape, Foreign Affairs, 6/12/2023). Limpeza étnica: 90% da
população foi deslocada à força, “várias vezes, para territórios cada vez mais
reduzidos, sem infraestruturas básicas, obrigando as pessoas a viver em
condições que as expunham a uma morte lenta e calculada. [Israel] obstruiu ou
negou deliberadamente a importação e a entrega de ajuda humanitária para salvar
vidas. Restringiu o fornecimento de eletricidade (…), levando ao colapso dos
sistemas de água, saneamento e cuidados de saúde. Submeteu centenas, senão
milhares, de palestinos de Gaza a detenção em regime de incomunicabilidade e a
atos de tortura e outros tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes que”, só
esses, “terão causado pelo menos 53 mortes até agosto de 2024.” (Amnistia
Internacional, ‘You Feel Like You Are Subhuman’. Israel’s Genocide Against
Palestinians in Gaza, 2024)
Que os responsáveis por tudo isto
invoquem a memória do Holocausto, isto é, do genocídio dos judeus (e cigano, e
de populações eslavas) perpetrado pelos nazistas até 1945, está impedindo, como
diz Marianne Hirsch, que o “Holocausto possa voltar a servir como ‘referência
moral universal’, se é que alguma vez o foi” (Rethinking Holocaust Memory After
October 7, Public Books, 15/7/2024).
Um dos sobreviventes de Auschwitz,
Primo Levi, recordava-se de como os SS, cientes da derrota próxima, diziam aos
prisioneiros: “Seja qual for o fim desta guerra, nós ganhamos; (…) mesmo que
algum de vocês escape, o mundo não acreditará em vocês. Talvez haja suspeitas,
discussões, investigação de historiadores, mas não haverá certezas (…). [A]s
pessoas dirão que os fatos que vocês contam são demasiado monstruosos para
serem acreditados: dirão que são exageros da propaganda (…), e acreditarão em
nós, que negaremos tudo. Nós é que vamos ditar a história dos campos [de
extermínio]” (Os que sucumbem e os que se salvam, 1986).
O que nos arriscamos hoje, depois de
ano e meio de cumplicidade e/ou silêncio dos EUA e da UE face ao genocídio, é
que sejam os israelenses a contar a história do que aconteceu em Gaza.
Fonte: “Público”, 22.01.2025

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