Reunião do presidente Lula e ministros com
governadores sobre segurança pública (Foto: Ricardo Stuckert / PR)
Artigo de Manuel Domingos Neto (Historiador, professor e pesquisador na área das Forças Armadas) e Luiz Eduardo Soares
03 de novembro de 2024
Na quinta-feira passada (31.10.2024), deu-se uma
reunião marcada há 21 anos. A convite de Lula, governadores e o ministro da
Justiça encontraram-se no Planalto para discutir a Segurança Pública. Essa
reunião foi agendada e postergada, depois cancelada, no início do primeiro
mandato de Lula, em 2003. O atraso de 21 anos diz muito sobre as dificuldades
de enfrentar o problema.
Em 2001, Lula presidia o Instituto Cidadania e era
pré-candidato a presidente. Um grupo de trabalho formulou, então, seu programa
de Segurança Pública. Profissionais de origens, experiências e perspectivas
variadas debateram em audiências públicas, visitas e seminários. A proposição
resultante foi entregue por Lula às casas congressuais e ao ministro da Justiça
em 27 de fevereiro de 2002.
No ambiente ouriçado de hoje, é difícil imaginar
que o então líder da oposição ao governo FHC fosse respeitosamente recebido por
dirigentes da situação, todos valorizando a qualidade da proposta.
A edição de “O Globo” em 28.02.2002 destacava:
“Tucanos elogiam plano anticrime do PT”. O ministro da Justiça, Aloysio Nunes
Ferreira, admitiu adotar medidas. “Não posso deixar de louvar essa iniciativa”,
afirmou o presidente do Senado, Ramez Tebet. “Este documento é até agora o mais
sério e completo sobre segurança pública já elaborado e apresentado à
sociedade”, disse Aécio Neves, presidente da Câmara.
Com debilidades decorrentes, sobretudo, da
falta de dados internos às corporações, a iniciativa mudou o debate. Descartou
clichês e bordões puídos. Agentes públicos não mais arguiriam o “sempre foi
assim”. Parecia chegar ao cabo a reatividade inercial e a falta de crítica aos
padrões estabelecidos. Tornar-se-iam necessários diagnósticos e planejamento
para a ação pública, que passaria a ser avaliada para que erros fossem
monitorados e corrigidos.
O Plano não idealizava a racionalidade técnica e
apontava para ajustes de instituições públicas às determinações
constitucionais. A democracia seria reforçada. Visava-se o controle da chamada
criminalidade, da brutalidade letal das polícias e do sistema de Justiça
criminal, do racismo e do viés de classe que encarcera jovens pobres e negros,
reproduzindo iniquidades e violências. Instituições refratárias à soberania
popular seriam contidas.
Lula venceu as eleições. Em janeiro de 2003,
o novo secretário nacional de Segurança Pública e seus colegas tocariam o
programa - aperfeiçoado com a ajuda de voluntários de distintas especializações
e regiões, graças ao apoio da Firjan.
Era fundamental a adesão dos 27 governadores à tese
central, a criação do SUSP, sistema único de segurança pública, inspirado na
arquitetura do SUS. Em junho, o endosso unânime foi obtido. O presidente
convidou os governadores para celebrar o “pacto pela paz”, como o projeto foi
batizado, perante autoridades dos três poderes. A proposta seria entregue ao
Congresso, posto que demandava alteração constitucional. Havia otimismo. Lula
detinha respaldo popular e o consenso dos governadores fortalecia a proposta.
Os governadores não acataram por entusiasmo
com uma segurança cidadã, afinada com os direitos humanos. A negociação
individualizada mostrara que lhes interessava dividir o desgaste político com o
governo federal. Uma reestruturação que importasse em compartilhamentos e
deslocamento de autoridade para a União seria bem-vinda. A insegurança era
fonte inesgotável de fragilização política. O acatamento era pragmático e lógico.
Paralelamente, o governo federal encarava o dilema:
valeria a pena assumir mais responsabilidades em área tão desgastante? Dizia
Brizola: chamar para si a segurança é abraçar afogado. Por que, então, o
secretário nacional de segurança visitaria todos os governadores? A missão
espinhosa foi testemunhada pelas mídias locais. Talvez porque não fosse crível
o êxito da jornada quixotesca.
O governo federal viu-se subitamente com a batata
quente na mão. Como deter a iniciativa evitando constrangimentos? A resposta
fica para outro momento. O gabinete presidencial estipulara data para a reunião
que seria suspensa. O passar do tempo silenciaria o “pacto pela paz”. O
secretário foi afastado e o plano, engavetado. O Governo investiu em prisões
matutinas espetaculares de suspeitos de colarinho branco.
Mas a semente do SUSP fora lançada. Cedo ou tarde,
por exigência histórica, resultaria em algo. Diante de crises, projetos
embolorados, devidamente lustrados, circulariam na praça. O SUSP renasceu com
sotaque diferente e inegáveis legitimidade e coerência quando Tarso Genro foi
ministro da Justiça. Seu projeto nacional de segurança com cidadania (PRONASCI)
incorporava elementos do SUSP, especialmente sua face preventiva. Mas Tarso
passou, assim como a reativação indireta do SUSP.
Veio o golpe parlamentar contra Dilma. A
dramaticidade da insegurança pública crescia e a história aprontou ironia
oblíqua, típica das tragédias: coube a Temer ressuscitar o SUSP e criar o
ministério da Segurança previsto no plano original, de 2002 (por sugestão de
Lula, então candidato, foi convertido em secretaria com status
ministerial).
Mas a repetição deu-se como farsa: o SUSP, aprovado
pelo Congresso em 2018, foi promulgado para não funcionar. Baseava-se em
legislação infraconstitucional. Destinava-se a fazer crer em comprometimento
dos governantes com mudanças profundas na Segurança. As novas regras jamais
seriam aplicadas porque gerariam conflitos federativos; calculadamente, não
tratavam de processos decisórios, de definição da autoridade coordenadora de
ações. Tampouco foi casual que a ouvidoria fosse estabelecida como uma agência
desprovida de poder.
A vida prosseguiu e o país foi empurrado à
beira do abismo neofascista. Os golpistas instrumentalizaram as instituições
armadas. A gigantesca e ativa “família militar” açambarcou os contingentes
policiais de todas as esferas da União. Escapamos por um triz com a vitória de
Lula, em 2022.
Retornando ao Planalto, Lula encontrou-se novamente
com a dramática insegurança pública. Durante meses, flertou com o SUSP,
reinscrevendo a necessidade de coordenação nacional no centro da agenda. Mas
temeu mostrar a nudez do rei: o SUSP infraconstitucional colidiria com a Carta.
Só fazia sentido ressuscitá-lo se figurasse na Constituição.
Finalmente, o ministro Lewandowski, intimorato,
pronunciou palavras banidas do léxico governamental: afirmou que para tratar da
Segurança Pública caberia reformar a Carta. Realizou-se, enfim, a reunião
marcada há 21 anos.
Neste interregno, regredimos de uma democracia limitada
e contraditória para uma institucionalidade deteriorada. A sociedade viu-se
acossada pela difusão de valores antidemocráticos, pelo ativismo reacionário de
organismos do Estado e por organizações à margem da lei.
A PEC apresentada por Lewandowski, embora
menos ambiciosa, contém elementos fundamentais da proposta original. Aponta
para o estabelecimento de uma coordenação nacional das estratégias da
Segurança. Pressupõe uma linha de autoridade indispensável, mesmo que isso não
seja enfatizado no discurso público. Enfrenta problema real: a refratariedade
das corporações policiais, verdadeiros enclaves institucionais, à autoridade
civil e política.
Mesmo que a aparência sugira o contrário,
especialmente quando governadores de direita aplaudem práticas policiais
condenáveis, o fato é que os executivos estaduais não comandam as organizações
policiais. A ampla autonomia viabilizou-se com a omissão do Ministério Público,
que deveria exercer o controle externo das polícias, e ameaça o Estado
democrático, como demonstramos insistentemente em artigos, livros e
entrevistas.
Integrantes de corporações armadas se alinham
ostensivamente à extrema direita. Firmam-se como atores independentes, negando
a hierarquia e as determinações constitucionais. Os enclaves corporativos
instauram poderes rebeldes na medida em que se atribuem autoridade alheia à
soberania popular e às mediações institucionais.
Esse quadro ruinoso é mais visível nas Forças
Armadas. Comandantes se apresentam impunemente como representantes de um “poder
moderador” e condicionam autoridades constituídas. Buscam respaldo no que
nomeiam “família militar”, cuja composição inclui componentes das corporações
policiais.
A PEC do ministro Lewandowski possibilita
restringir a disfuncionalidade da segurança pública; oferece amparo mínimo para
o enfrentamento da criminalidade e da corrosão da autoridade fundada nos
princípios democráticos. Propondo a coordenação nacional, enseja a
possibilidade de reduzir o insulamento dos baronatos armados, organizados com ou
sem máscara institucional (sob a forma de milícias).
O ministro e o presidente devem saber que a
proposta não será aprovada. Mas enseja sinalização importante: tira o governo
da defensiva e, pela primeira vez em muitos anos, aponta rumo para deter a barafunda
institucional que impede o Estado de garantir segurança à cidadania. Livra a
autoridade federal de exibir impotência e de absorver pautas conservadoras de
governadores. No mais, deixa com a oposição o ônus da defesa do status
quo.
A reação dos governadores tende a ser inversa
a de 21 atrás anos porque a luta ideológica se interpôs ao velho cálculo de
utilidade. Se a Segurança era somente causa de desgaste político e valia a pena
sacrificar parte do suposto poder em benefício da divisão de responsabilidades
com a União, hoje, associar-se ao discurso hegemônico e às práticas usuais das
corporações policiais tornou-se um ativo político na guerra contra a democracia
e os direitos humanos.
Há muito a ponderar. Por exemplo: a omissão
na iniciativa governamental quanto à ouvidoria e ao papel do MP. Mas cabe
saudar a coragem política, mesmo moderada, quando ela retorna à cena.
Falta aplicar essa disposição à Defesa Nacional. As Forças Armadas
persistem essencialmente voltadas para o controle da sociedade e nunca
abdicaram de se imiscuir na Segurança Pública.
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