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José Goulão – ABRIL
ABRIL
Ouve-se e lê-se que o
atual episódio das eleições presidenciais nos EUA é o ato eleitoral mais
importante de sempre no país, quiçá da história mundial.
Uma idiotice. Mais
uma vez o império está olhando para o próprio umbigo e os satélites ansiosos em
saber se irão prestar vassalagem a uma tal Kamala Harris, um megafone
palavroso, ou ao conhecido Donald Trump, um narcisista populista e fascista que
joga com o mundo como se fora um canastrão imitando a genial cena de Chaplin em
O Grande Ditador.
Esta é a escolha
«democrática» por excelência. O modelo de seleção dos «representantes do povo»
que todos os «países civilizados», os privilegiados membros da elite do
Ocidente coletivo, deverão seguir para não serem marginalizados dentro desse
sagrado Olimpo. Assim funciona a «democracia liberal», outrora «democracia
ocidental», a única que é aceita no quadro da «ordem internacional baseada em
regras», isto é, o direito internacional vergado aos interesses, arbitrariedade
e expansionismo do império. Chegamos ao momento em que, no Ocidente, se designa
o chefe nominal do império com um happening no qual se procede a seleção de um
de dois imbecis: uma funcionando como um disco partido, mas perigosa devido ao
aparelho que a manipula; e um ignorante, visivelmente sociopata e perigoso pelo
que é e pela tacanhez, alienação e violência potencial das camadas de uma
sociedade doente que o apoiam.
O duelo eleitoral
entre Kamala democrática e Donald republicano define como poucos as virtudes da
nossa «democracia liberal». Impõe a «liberdade» de escolha dos eleitores entre
candidatos indicados por um dueto de partidos que em pouco ou nada diferem na
ação prática e são ambos emanações do chamado complexo militar, industrial e
tecnológico, o verdadeiro poder nos Estados Unidos e seus satélites ocidentais;
uma fusão entre o poder estatal e corporativo que, no que nos diz diretamente
respeito, se manifesta através do termo «Blob» – criado durante a administração
de Obama e que traduz o consenso bipartidário sobre a necessidade de uma
robusta presença militar dos Estados Unidos em todo o mundo, também conhecido
como «as regras de Washington». Figuras de proa associadas ao conceito de «blob»
são Hillary Clinton e Bill Gates – e está tudo dito.
Sem receito de
deturpar a realidade, o sistema político assentado nesta fusão entre o Estado e
as grandes corporações funciona, na prática, como partido único com duas
tendências miméticas que há muito cortaram relações com os eleitores a não ser
nas encenações idiotas, mas de encher os olhos à maneira de Hollywood, que se
multiplicam em épocas como esta, de «campanha eleitoral».
Repare-se agora como
este modelo tem vindo a ser exportado paulatinamente para todos os agentes da
«democracia liberal» através do Ocidente: duas correntes políticas com «vocação
de governo», sociais-democratas e conservadores, inocuamente divergentes em
questões sociais e absolutamente convergentes no sistema desumano econômico e
financeiro neoliberal, o neoliberalismo, ao qual está submetida toda a
atividade política. Entre a «democracia liberal» e o sistema de partido único
existe uma irmanação prática, cada vez mais penetrada pela envolvente fascista
à medida que se agudizam os irreversíveis problemas econômicos e sociais.
Jogo viciado
O pretenso duelo
entre Kamala e Donald nada mais é do que o cumprimento de um ritual em ciclos
quadrienais que, um após o outro, vai trocando as caras (nem sempre) que serão
protagonistas da tragicomédia levada à cena, com obsessão doentia, pelo monstro
tentacular em que se transformou o aparelho global de info-propaganda formatado
como infotainment, a informação como entretenimento alienante.
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Apesar da contumácia
do sistema e do envenenamento massivo das populações, há sinais animadores de
que, embora a prazo mais ou menos longo, o feitiço poderá se virar contra o
feiticeiro. Imagine-se que, nos Estados Unidos, o prestígio dos jornalistas já
é mais baixo do que o dos congressistas, segundo a empresa de sondagens Gallup,
insuspeita quanto à sua inserção nos ambientes de poder. Na simplicidade da sua
formulação, a conclusão gallupiana diz tudo sobre a decrepitude do regime
maravilha e santuário da «democracia liberal», da «nossa civilização», do jardim
ameaçado pela barbárie que, por sinal, ganhou forma ainda mais demoníaca na
recente cimeira dos BRIC realizada em Kazan, provocativamente na Rússia.
Diz-nos a sondagem
que o prestígio dos congressistas, isto é, dos políticos «escolhidos» pelos
eleitores para os representarem, é tradicionalmente conhecido por traduzir o
nível mais baixo de credibilidade, o que só enobrece o prestígio desta espécie
de democracia; pois imaginem que os jornalistas, camada pela qual os
estadunidenses pareciam ter ainda algum respeito, conseguiram ultrapassar os
«eleitos» nesse trambolhão para o abismo do desprezo. Nada que nos espante ou
nos deveria surpreender: é uma das desgraças do nosso dia-a-dia também em
terras lusas, por vocação própria e também como subsidiárias do miserável
cenário europeu e ocidental em geral. A osmose imperial é rápida e letal nos
terrenos estratégicos da info-estupidificação.
Por maioria de razão,
em relação aos congressistas, a respeitabilidade dos presidentes estará
certamente num nível rasteiro. Daí que o duelo entre Kamala Harris e Donald
Trump nada tenha de «mais importante» em relação a tantos outros. Não é por
Joseph Biden, o presidente em exercício, ter se retirado de cena por ter
finalmente assumido (ou assumiram por ele) as suas insuficiências físicas e
cognitivas, que os Estados Unidos deixaram de funcionar. O aparelho
estatal-corporativo está sempre em atividade, governa 24 horas por dia porque
assim o determinam as urgências permanentes e globalistas dos seus interesses,
cujo cumprimento é assegurado por entes descartáveis que julgam viver ou ter
encontrado o «paraíso das oportunidades» antes de serem lançados no lixo.
O combate entre
Kamala e Donald, como acontece nas sessões de wrestling, é viciado por
definição, embora nas lutas em ringue não se conceba que haja tentativas de
eliminar um dos competidores a tiro. Daí que sejam de esperar, como tudo indica
tenha acontecido regularmente, suspeitas quanto à transparência da votação,
confusões pouco recomendáveis entre voto eletrônico, voto presencial e votação
pelo correio. Desconfiança ampliada ainda pela circunstância de representantes
das candidaturas não estarem presentes nos atos de contagem. A que notícias
espalhafatosas estaríamos sujeitos se anomalias como estas acontecessem – o que
não se verifica – na Venezuela, na Bolívia, na Rússia, na África do Sul, em
Angola e por aí adiante. Porém, nada disso deve nos incomodar, cabe-nos somente
desmentir com veemência os indícios de tramóia: a nomeação cíclica do
presidente dos Estados Unidos é o ato supremo da «democracia liberal», tem selo
de garantia haja o que houver, é o modelo que todos devemos – melhor dizendo,
temos – de seguir.
Poderá se argumentar,
como fazem sempre as almas que não permitem desconfianças quanto à perfeição e
à superioridade da «nossa civilização» e respectivos mecanismos democráticos,
que não existem provas desta corrupção, as suspeitas não passam de especulação,
de mau perder dos derrotados, ou mesmo das fake news ou das malfadadas teorias
da conspiração.
Sejamos claros: acham
que há transparência na discriminação e diferenças de tratamentos de partidos
durante as pré-campanhas e as campanhas eleitorais? Não existem partidos que,
por definição, têm «vocação» para governar enquanto os outros, meros
figurantes, estão condenados a assegurar um pluralismo inócuo? Os meios
financeiros dos candidatos e candidaturas são justos e equilibrados? Os
financiadores dos partidos e dos candidatos são pessoas e entidades
interessadas apenas no funcionamento claro e límpido da democracia e jamais
tencionam cobrar a jusante as recompensas acordadas e que justificaram os
investimentos feitos a montante? E a insidiosa info-propaganda cobre
equilibradamente as ocorrências eleitorais, dá voz e oportunidades por igual a
todos os concorrentes ou apenas aos «vocacionados», os que representam as duas
tendências de um regime democrático como deve ser, mais as respectivas
adjacências?
Estas e muitas outras
interrogações que poderíamos acrescentar são pertinentes para identificar e
definir o padrão democrático, nosso farol e nosso guia; e, cumprindo-se a ordem
natural das coisas, aplica-se igualmente aos orgulhosos e untuosos satélites
orbitando o planeta que reflete o sol da «nossa civilização».
O que mudará
Kamala Harris e Donald Trump. A credibilidade destes candidatos é tal que, pela
primeira vez, em muitas décadas o diário Washington Post, um dos instrumentos
do regime e fidelíssimo instrumento do expansionismo e do militarismo imperial,
não recomenda o voto em qualquer dos putativos presidentes. Normalmente o faz
para favorecer o candidato do Partido Democrático, desejando estar em harmonia
com a clientela «do bem» e «chique» da Beltway, o santuário dos poderes.
Kamala, porém, não se encaixa nos padrões dessa elite, manifesta frequentes
dificuldades em repetir as mensagens, ainda que primárias, que lhe explicam e
recomendam – assemelhando-se a Biden quando a demência o tornou ainda mais
dependente dos auriculares e do teleponto. Além disso, falta-lhe estilo, a
souplesse própria dos políticos com pedigree. Percebe-se que foi a solução
possível, encontrada no exterior das habituais formalidades ditas democráticas
designadas como «eleições primárias»; foi repescada precipitadamente da
vice-presidência quando se percebeu que Joseph Biden não daria conta do final
deste mandato, quanto mais de um novo mandato.
O Washington Post
pagou o preço da sua «abstenção»: perdeu 200 mil assinantes num ápice – os
democratas não perdoam a quem vacila, mesmo perante uma candidata de vão de
escada. Mesmo assim, os influentes Los Angeles Times e USA Today assumiram a
mesma decisão. Kamala Harris está mais ou menos entregue às suas incapacidades
e a um aparelho que a sustenta a contragosto porque não tem outro remédio. As
sondagens trucidam-na mas, como nos revela a regra ocidental nesta matéria, não
são de confiar, porque servem essencialmente para mentir e manipular. Além
disso, depositar o boletim na urna é apenas um pormenor do jogo «democrático
liberal».
E Donald Trump?
Corresponde ao que mais há de ultramontano nos Estados Unidos, às máfias das
seitas religiosas, à ignorância que floresce como cardos através do país. É um
trauliteiro e um mentiroso. Acabava com a guerra na Síria, mas depressa decidiu
atacar o país com mísseis e ocupá-lo com mais contingentes de tropas para
garantirem – ele disse – o roubo de petróleo. Retirava-se do Afeganistão, mas
preferiu deixar a humilhação da OTAN para Biden. O campo de concentração de
Guantánamo, expoente do terrorismo imperial, continua sem ser encerrado. Estão
à vista as consequências das chamas que lançou para o incêndio no Oriente Médio
graças ao seu apoio doentio ao nazismo sionista.
Antevemos assim o que
acontecerá à sua promessa de acabar com a guerra da Ucrânia num abrir e fechar
de olhos enquanto assegura que «irá meter Putin na ordem». Um oligarca,
cleptocrata e eternamente aprendiz de político, um inconsciente perigoso, muito
perigoso.
O que se seguirá a
esta encenação eleitoral que exibe sem filtros o estado degradante, penoso,
incompetente e desorientado a que chegou um Ocidente à deriva?
O complexo militar,
industrial e tecnológico governante, o centro do poder imperial que funciona
enquanto os presidentes e os congressistas passam, continuará a proferir, como
sempre, as palavras decisivas. Essas garantem-nos mais do mesmo, ainda que
possam perceber-se variantes para que tudo continue na mesma independentemente
do candidato a quem for atribuído o inquilinato da Casa Branca.
No plano interno,
mais imposto, menos imposto, os ricos continuarão a ser ainda mais ricos e os
pobres cada vez mais pobres e em maior número, seja a crise benigna ou
catastrófica. A educação afundar-se-á ainda mais na inanição, a saúde
continuará a ser para alguns, cada vez menos; as infraestruturas públicas, das
pontes aos transportes, às escolas, à habitação dos bairros desfavorecidos
continuarão a ruir por falta de manutenção. O ambiente irá se deteriorar mais à
medida que avança a «transição verde», os organismos geneticamente modificados
envenenarão mais a alimentação, a criminalidade arruinará e assassinará sem
descanso, o comércio e consumo de drogas naturais ou químicas, que se renovam
todos os dias, produzirão mais zumbis e liquidarão numa escala de milhões de
seres humanos. O «nosso» paraíso tende a confundir-se com o inferno.
No plano externo, com
Kamala ou Donald, a guerra continuará a ser a prioridade das prioridades sob a
forma de agressões militares, revoluções coloridas ou sanções económicas e
políticas, prometam eles o que agora prometerem.
A derrota anunciada
da Ucrânia perante a Rússia traz dúvidas e incertezas sobre os próximos
comportamentos do Pentágono e da OTAN, seja qual for o presidente em exercício.
A pressão militar e econômica sobre a China e a manipulação terrorista da
situação de Taiwan continuarão a subir de tom enquanto o sionismo prosseguirá o
seu caminho (e o do planeta?) para o abismo, sempre com o apoio e a proteção
dos Estados Unidos e respectivos satélites, cometa as atrocidades que cometer.
No fim de contas, é o defensor da «nossa civilização» no Oriente Médio,
Netanyahu dixit, e não foi desmentido.
Trump parece ser mais
ameaçador nas questões chinesa e do Oriente Médio, mas a política externa do
Partido Democrático não lhe fica atrás em agressividade e irresponsabilidade.
A União Europeia e a
OTAN estão chorosas, alarmadas com a hipotética vitória de Trump. Ânsias
escusadas: deviam estar mais confiantes na essência do imperialismo. Com um ou
outro presidente, a missão da Aliança Atlântica será a de continuar a
expandir-se até às fronteiras com a Rússia, apertar o cerco em torno deste país
e dividi-lo num conglomerado de Estados submissos. A União Europeia continuará
a ser desprezada por Washington e a gostar de ser tratada assim. A Alemanha
acaba de homenagear Biden, o presidente que arrebentou com o Nord Stream,
indispensável para a sua estratégia econômica e para sair do buraco em que
continua a se afundar.
A rapina dos bens e
riquezas mundiais – ou pelo menos as tentativas continuadas de a garantir – não
dependerá da escolha entre Kamala ou Trump: é uma rotina da história dos
últimos séculos de colonialismo e imperialismo.
Na sua convicção de
superioridade civilizacional, que as leva a confundir desejos com realidades, a
viver em realidade paralela ou a fingir a inexistência de desenvolvimentos que
não dominam, as classes econômicas, militares e políticas ocidentais, sob o
comando dos Estados Unidos, erram muitas vezes os alvos ou baralham as fontes
das suas preocupações. Na realidade, escolher entre Kamala e Donald deveria
estar longe de ser o maior dos seus problemas. As transformações que estão a
acontecer no mundo e ameaçam com bastante consistência o autoritarismo dito «civilizacional»
da «ordem internacional baseada em regras», essas sim são para levar a sério
dizendo-nos que nada voltará a ser como era ainda há pouco, por exemplo antes
de iniciada a guerra aberta na Ucrânia. O estatuto de 500 anos de impunidade
colonial e imperial está pela primeira vez a ser posto em causa por uma
esmagadora maioria mundial que representa mais de cinco mil milhões de seres
humanos dos oito bilhões que habitam a Terra. E quanto a isso tanto faz que
seja Kamala Harris como Donald Trump o chefe imperial de turno.
Também sabemos que
uma ou outro, tanto faz, terão o dedo no gatilho de um arsenal nuclear capaz de
destruir várias vezes o planeta e a humanidade e que, independentemente do
escolhido, ambos são conduzidos por interesses tentados a acioná-lo como se
fosse possível produzir apenas «efeitos limitados»; ou mesmo, como acontece com
os sionistas loucos no poder, a preferir a hecatombe do juízo final para não
assistirem a um hipotético fim de Israel.
E quanto a isto,
Kamala ou Donald são ambos parte do problema e não da solução. É isso que
devemos recear e combater com todas as nossas forças e meios. Nós somos a parte
da solução.
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