Lula e Celso Amorim (Foto: Fabio Pozzebom / Agência Brasil) |
"As grandes disputas mundiais criam espaços para o Brasil ocupar", afirma o especialista em relações internacionais e sociólogo Marcelo Zero,
17 de agosto de 2024
O caso da Venezuela vem provocando críticas internas à política externa do Brasil.
No plano mundial, está tudo indo bem. O Brasil vem
recuperando celeremente o protagonismo regional e internacional perdido com
Bolsonaro. Nosso papel de mediador é muito elogiado por diversos países e até
mesmo pela oposição venezuelana.
No plano interno, não obstante, às velhas críticas
da direita se somam, agora, críticas de alguns setores da esquerda. Esses
setores consideram que o Brasil deveria ser mais assertivo na luta contra o
“imperialismo”, o que implicaria escolher alinhar-se ao “polo oposto”, na luta
pelo poder mundial.
Acredito que isso seria um erro estratégico.
Em primeiro lugar, é preciso considerar que o que
se chama de nova “Guerra Fria” é uma invenção e uma imposição do EUA e aliados.
Esses países querem a volta da antiga ordem
mundial, que predominava até o início deste século, caracterizada pela
hegemonia praticamente absoluta dos EUA e por um unilateralismo agressivo, que
corroía, e ainda corrói, as instituições multilaterais.
Nesse sentido, os EUA e aliados pressionam o
denominado Sul Global para que “escolha” entre o lado das “democracias” e o
lado das “autocracias”.
Pude testemunhar pessoalmente essa pressão na
Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional da Câmara dos Deputados do
Brasil, quando da visita de uma delegação da Comissão de Relações Exteriores do
Parlamento Europeu ao nosso país.
Na conversa, um parlamentar estoniano, do grupo de
direita “Identidade e Democracia”, afirmou, a respeito do conflito na Ucrânia e
da geopolítica em geral, que o Brasil “teria de decidir” entre ficar do lado
das “democracias”, isto é, o lado da Europa, dos EUA e aliados, ou do lado das
“ditaduras”, a saber, Rússia, China e outros países. Não haveria meio-termo e
equidistância possíveis.
Outro parlamentar europeu afirmou que a China tende
a “escravizar” outros países, por meio de empréstimos e dívidas. Um parlamentar
espanhol classificou o conflito da Ucrânia como uma “guerra imperialista”
promovida unilateralmente pela Rússia, que, segundo ele, quer impor seu domínio
autocrático em toda a Europa.
Essa é a mentalidade binária, simplista e obsoleta
que predomina nos EUA e seus aliados. Não apenas isso. É uma mentalidade
profundamente antidemocrática, que considera que democracia, a democracia
segundo o modelo ocidental, é algo a ser imposto via sanções, golpes e
intervenções militares.
Por outro lado, não há nenhuma pressão por parte de
China, Rússia, Irã ou de nenhuma outra “autocracia” para que o Brasil se alinhe
automaticamente aos seus interesses.
Tome-se o exemplo das estratégicas relações
bilaterais Brasil-China, que completam, neste ano, meio século de grandes
realizações.
Neste longo período, o único momento de alguma
tensão se deu quando Bolsonaro et caterva passaram a agredir a
China sistematicamente. Em nenhum momento, Beijing pressionou o Brasil a se
tornar “socialista” ou a se afastar dos EUA e da Europa para cooperar
ativamente com o nosso país. O mesmo se dá com a Rússia, Irã, Turquia etc.
A construção do BRICS, fundamental para a afirmação
de um mundo multipolar, também obedece à mesma lógica não-excludente. Com
efeito, esse bloco geopolítico incorpora países que têm boas relações com EUA e
aliados, como Brasil, África do Sul, Índia, Egito, Arábia Saudita e Emirados
Árabes. Observe-se que a Argentina de Milei só não entrou porque não quis. Não
foi o Brics que vetou a Argentina. Foi a Argentina de Milei que vetou o BRICS,
por alinhamento ideológico aos falsos dilemas da nova “Guerra Fria”.
A questão essencial, contudo, tange ao fato de que
quaisquer alinhamentos desse tipo limitariam, a priori, o protagonismo do
Brasil. Uma política externa realista, racional, profícua e realmente soberana
tem de ser sustentada essencialmente com base nos interesses nacionais, não com
base em interesses de terceiros países, por mais “amigáveis” que possam ser.
É claro que, no atual cenário mundial, muito mais
diverso do que aquele que prevalecia até o início deste século, as
oportunidades maiores para a expansão do protagonismo do Brasil estão no Sul
Global e, em especial, na sua própria região.
Isso não significa, porém, investir em uma política
externa confrontacionista com os EUA, a União Europeia etc. Com esses países,
as oportunidades de cooperação são mais estreitas e sujeitas a maiores
assimetrias e, muitas vezes, a imposições políticas inaceitáveis. Mas estão
longe de serem inexistentes.
Nos dois primeiros governos Lula e nos governos
Dilma, a política externa ativa e altiva aumentou muito o protagonismo
brasileiro, mediante a estratégia da “autonomia pela diversificação”. Naquela
época, o Brasil sem abandonar seus parceiros mais tradicionais (EUA e Europa),
expandiu-se no mundo mediante parcerias estratégicas com países como China e
Rússia, mediante a aproximação à África e ao Oriente Médio, e por meio de um
grande investimento na integração regional soberana.
É verdade que o cenário mundial de hoje é bem mais
complicado e conflitivo que o quadro daquela época. O superciclo das
commodities encerrou-se, tivemos uma crise econômica profunda, a emergência de
uma extrema-direita internacional bastante ativa, a desaparição paulatina, mas
constante, da complementariedade entre as economias chinesa e estadunidense, a
reação da Rússia à continua expansão da Otan em direção às suas fronteiras, a
centralidade da política externa dos EUA na “disputa pelo poder mundial” com
China, Rússia e as “autocracias” etc. etc.
Mas é justamente esse quadro mais conflitivo que
recomenda, á luz dos interesses do Brasil, a insistência e o aprofundamento de
uma política externa universalista, pacifista e não-alinhada.
Não se trata de neutralismo ingênuo, como avaliam
alguns.
Na realidade, é a melhor maneira de propugnar por
uma ordem mundial multipolar e simétrica, mais permeável aos interesses de
países como o Brasil. As grandes disputas mundiais criam espaços para o Brasil
ocupar.
Há de se considerar, ademais, nessa avaliação, uma
questão de estratégia geoeconômica absolutamente fundamental para o futuro do
Brasil.
Nosso país precisa muito se “reindustrializar”, com
base em novas tecnologias limpas e “descarbonizadas”. O Brasil tem imenso
potencial nesse campo, mas precisa de parcerias tecnológicas e de investimentos
para concretizar esse potencial. Dessa maneira, a nova dimensão criada pela
necessidade da “neoindustrialização” tem de ter absoluta centralidade na
política externa do Brasil, em sua dimensão econômica, comercial e tecnológica.
Temos se fazer um grande esforço, em política
externa, para dar sustentáculo a um esforço interno vital. Por conseguinte, não
podemos rejeitar, a priori, por motivos geopolíticos, nenhuma oportunidade de
cooperação. Esse seria um erro crasso, um bolsonarismo com sinais
invertidos.
E teremos de revisar as prioridades nas relações
com alguns países que têm maior capacidade tecnológica e de investimentos que o
nosso, independentemente de que “lado” da nova “Guerra Fria” estejam. Afinal,
se permanecermos como exportadores de commodities e de produtos industriais de
baixo valor agregado nosso protagonismo internacional será sempre limitado.
Já escrevi, alhures, que entre um e outro lado da
“Guerra Fria”, o Brasil, rejeitando as imposições e as pressões de EUA e
aliados, escolhe o Brasil. Não se trata de frase vazia e retórica ingênua.
É simplesmente a melhor estratégia para promover nossos interesses
próprios. Sempre será.
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