Diego Cruz (texto extraído do sítio do PSTU)
Presidente Lula e o auto-proclamado presidente da Venezuela, Nicolás Maduro Foto: Ricardo Stuckert/PR
O controverso
resultado das eleições venezuelanas abriu um intenso debate na esquerda
brasileira. Amplamente contestado, não só pela oposição, como boa parte da
população, manifestações despontaram por todo o país, principalmente na capital
Caracas, tendo como resposta uma dura repressão do regime de Maduro. Enquanto
fechávamos este texto, 11 mortes já haviam sido confirmadas, além de centenas
de presos e feridos.
O governo Maduro,
além de não ter apresentado ainda as atas eleitorais, expulsou os embaixadores
de sete países que não reconheceram automaticamente a sua vitória, e levantaram
dúvidas sobre a lisura do processo. Inclui-se aí o Chile de Gabriel Boric.
Mas, enquanto
inúmeras organizações de esquerda da própria Venezuela denunciam uma fraude realizada pelo governo para
perpetuar-se no poder, como a Unidade Socialista dos Trabalhadores (UST), seção
da LIT-QI no país, e até organizações que eram alinhadas ao chavismo e
compunham o PSUV (Partido Socialista Unido da Venezuela), como o Partido
Comunista da Venezuela ou o Marea Socialista, no Brasil, o PT, correntes e
dirigentes do PSOL, entre outros setores, saíram na defesa incondicional do
regime de Maduro. É normal, portanto, que muitos estejam confusos diante desta
situação.
Os defensores do
regime venezuelano argumentam que Maduro, com seus eventuais problemas,
representaria um contraponto à direita e à ultradireita e, principalmente, ao
imperialismo norte-americano. Anos atrás, ainda se levantava a ideia de um
suposto regime socialista “do Século XXI”, mas hoje esse tipo de argumento não
se sustenta mais. Mas o pretenso caráter anti-imperialista do governo Maduro, e
a luta contra a ultradireita, ainda mais numa conjuntura de ascenso da extrema
direita mundo afora, ainda são fortes bases para esse tipo de posição. Mas,
seria mesmo assim?
Hugo Chávez tomou
posse como presidente em 1999, numa conjuntura de dramática miséria e
desigualdade social, e na esteira de fortes agitações e protestos que haviam
produzido, em 1989, o que ficou conhecido como “Caracazo”, uma explosão social
respondida com uma brutal repressão que deixou centenas de mortos. O movimento
bolivariano liderado pelo ex-tenente-coronel Chávez preconizava um nacionalismo
com forte fraseologia socialista, moldada aos “novos tempos”, contra as elites,
a corrupção e o imperialismo. Desta forma, angariou amplo apoio popular.
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Uma vez no poder, porém, Chávez implementou uma nova Constituição, e avançou para um regime cada vez mais autoritário, com a perseguição de ativistas e sindicalistas que não se alinhassem ao seu governo. O referendo de 2009 eliminou as limitações às reeleições, e possibilitou que se perpetuasse no poder. A renda com a exportação do petróleo, no entanto, principalmente nos anos de boom das commodities, tornou possível uma série de programas sociais compensatórios às parcelas da população mais empobrecidas, sem que se mudasse a estrutura de dominação capitalista, inclusive das multinacionais.
O petróleo continuou abastecendo o
mercado internacional, sobretudo os EUA, através de empresas de capital misto e
acordos entre PDVSA e multinacionais como a Chevron. A indústria
automobilística, por sua vez, continuou dominada pelas transnacionais imperialistas
e, mesmo as nacionalizações se deram mediante indenizações. A dívida externa
também continuou a ser paga aos banqueiros, o que precipitaria a crise no país
nos anos seguintes.
A velha burguesia
venezuelana, identificada com os governos anteriores, foi substituída pelos
militares e um outro setor burguês, a chamada “boliburguesia”, cooptada pelo
governo que lhe atribuiu a tarefa de intermediar os negócios do Estado e as
empresas privadas e multinacionais.
Apesar disso, o
imperialismo norte-americano nunca teve plena confiança no governo chavista.
Foi por isso que, em 2002, apoiou o golpe perpetrado pela direita tradicional
venezuelana. Embora o governo já contasse, àquela altura, com certo desgaste, o
sentimento antiimperialista das massas foi combustível para as enormes
manifestações populares que derrotaram o golpe e reconduziram Chávez ao poder.
Na época, diferente de agora, a quase totalidade da esquerda se colocou ao lado
das massas contra os golpistas.
Após 2002, porém, o
chavismo recrudesceu sua via bonapartista, e passou a priorizar acordos e
uma convivência pacífica com o imperialismo, mantendo a dominação e a
exploração capitalista. Nada que se aproximasse a um pretenso “Socialismo do
Século XXI”, ou nem mesmo com os governos nacionalistas do Século XX, como
Cárdenas no México, ou Perón na Argentina, reivindicados por Chávez. Esses
governos, ao menos, aproveitando-se de uma situação específica do pós-guerra,
nacionalizaram setores inteiros da economia, o que não ocorreu na Venezuela.
O chavismo,
poderia, por exemplo, ter enfrentado as recorrentes crises de abastecimento
expropriando de fato as empresas privadas e multinacionais e colocando-as a
serviço da população. Mas a manutenção da grande propriedade capitalista, e
imperialista, nunca resolveu a situação do país e o deixou permanentemente
vulnerável a crises e pressões, tanto da burguesia quanto do próprio
imperialismo.
Crise e decadência do regime
A morte de Chávez,
em 2013, ocorre num contexto de já acelerado desgaste do regime. Seu sucessor,
Maduro, ao continuar gerenciando o capitalismo em prol das empresas e do
sistema financeiro, mergulhou o país numa crise sem precedentes, que deixou
mais de 80% da população na extrema pobreza (Pesquisa Nacional de Condições de
Vida), e uma diáspora que atingiu um quarto da povo, obrigado a tentar a vida
no estrangeiro.
Os bloqueios e
sanções impostas pelo imperialismo, principalmente o norte-americano,
aprofundam essa crise, e dão fôlego ao discurso anti-imperialista de Maduro. A
realidade, porém, é que Maduro jogou nas costas da classe trabalhadora e dos
mais pobres o custo dessa crise, com ataques trabalhistas e cortes sociais a
fim de honrar a dívida. Em abril deste ano, por exemplo, Maduro contratou o
banco norte-americano Rothschild para reestruturar sua dívida pública de 154
bilhões de dólares, nas mãos de investidores dos EUA, da Rússia e da China,
entre outros. Já a norte-americana Chevron incrementou seus investimentos na
exploração de petróleo, enquanto a estatal PDVSA definha.
A crise na
Venezuela e a política anti-operária de Maduro provocaram um rápido desgaste do
regime. O governo respondeu à erosão de sua base social recrudescendo o seu
caráter autoritário e repressivo. Com a Assembleia Nacional nas mãos, assim
como o Superior Tribunal de Justiça, ou seja, o Legislativo e o Judiciário sob
seu comando, avançou ainda mais na perseguição de opositores. Em 2023, por
exemplo, reprimiu duramente e prendeu os líderes de uma mobilização da Sidor
(Siderúrgica del Orinoco) que protestavam por salários e direitos. Da mesma
forma, centenas de ativistas e sindicalistas estão, agora mesmo, presos no país
Junto a isso, a
censura nos meios de comunicação e a proscrição de partidos e organizações de
esquerda contrários, ou simplesmente críticos ao regime venezuelano,
tornaram-se a regra. Muito se fala sobre o impedimento da candidatura burguesa
de María Corina à presidência, mas, geralmente, “esquece-se” que os partidos de
esquerda também não puderam apresentar uma alternativa própria e independente
às eleições.
Defender Maduro é defender uma
ditadura capitalista
O que se tem hoje
na Venezuela é, assim, uma ditadura capitalista, com base no Exército e na
burguesia que se enriquece às custas dos ataques contra a classe trabalhadora e
do empobrecimento da população. A luta para que sejam respeitados os votos se
dá neste contexto, um direito democrático elementar, mesmo numas eleições que,
desde o seu início, foram viciadas e articuladas para que não proclamasse outro
vitorioso que não Maduro.
O discurso cínico e
hipócrita do governo Biden, assim como da própria oposição burguesa capitaneada
por María Corina e seu fantoche, Edmundo Gonzáles, não mudam isso. Já a
esquerda que presta apoio incondicional a Maduro, e tacha de “guarimbas”
(protestos artificiais impulsionados pela direita) os protestos contra a
ditadura e a fraude, ajudam a legitimar e a perpetuar esse governo que ataca,
prende e persegue opositores, principalmente lideranças sindicais e populares.
Mais do que isso, ajudam a fortalecer a própria direita e a extrema direita,
não só no país, como internacionalmente.
Imagine a classe
trabalhadora e o povo pobre da Venezuela. De um lado, sofre com um governo que
os ataca e os joga na miséria quase absoluta, sem possibilidade de protestar ou
se organizar de forma independente. De outro, com a esquerda proscrita e
limitada por Maduro, enxerga como única alternativa uma direita
pró-imperialista que pretende devolver o poder aos velhos setores da burguesia
e entregar ainda mais o país aos EUA. O único caminho diante desse impasse é
defender a mobilização, e a organização, independente da classe trabalhadora, e
a construção de uma via de classe contra esses dois setores. E isso passa pela
luta por liberdades democráticas, contra a ditadura, para que o povo possa
lutar, se organizar e até mesmo se expressar livremente.
Maduro afirma que
está sofrendo um golpe, e seus defensores recorrem à analogia com a tentativa
de golpe contra Chávez em 2002. No entanto, como afirma a nota da UST, os setores que defenderam
Chávez contra o golpe são os mesmos que estão agora nas ruas de Caracas, e de
todo o país, contra a fraude eleitoral e a ditadura, sendo duramente reprimidos
e perseguidos.
Estivéssemos frente
a uma tentativa de golpe patrocinada pelos EUA, seria correto uma unidade de
ação com o governo venezuelano contra o imperialismo, independentemente de seu
caráter. Foi isso o que ocorreu em 2002. Mas tanto Maduro não é
antiimperialista, quanto a unidade de ação que setores majoritários da esquerda
fazem não é contra os EUA, mas com o governo chavista contra o seu próprio
povo.
Neste sentido, a
atuação do governo Lula de legitimar as eleições fraudadas é um completo
desserviço à classe trabalhadora e ao próprio povo brasileiro. Lula afirmar
que, quem discordar do resultado eleitoral basta recorrer à Justiça, é um
acinte, pois ele sabe que essa mesma Justiça prende e persegue quem for
contrário ao regime. E isso acaba ajudando também à extrema direita aqui no
Brasil, que busca se fortalecer, e voltar ao poder, com base na hipócrita
defesa da democracia na Venezuela, sendo que Maduro implementou justamente o
que o bolsonarismo tentou fazer aqui.
Da mesma forma que
rechaçamos o 8 de Janeiro aqui, e defendemos o respeito do voto do povo
brasileiro que elegeu Lula, sem sermos lulistas (ao contrário, desde o chamado
ao voto crítico a Lula contra Bolsonaro afirmamos que seríamos oposição de
esquerda ao governo do PT), a luta contra a fraude e a ditadura de Maduro não
significa ser “pró-imperialista”, ou capitular à direita burguesa venezuelana.
Trata-se, isso sim, de defender as liberdades democráticas diante de uma
ditadura capitalista, para que se seja possível se organizar e lutar, inclusive
pelo socialismo.
EM TEMPO: O governo Lula ainda não definiu a sua posição diante desse imbróglio, mas que está numa encruzilhada é claro que sim. Convém lembrar que o próprio Maduro define seu governo como sendo: civil/militar/ policial. Portanto, o regime político na Venezuela se constitui numa Ditadura Militar Empresarial com um Presidente civil.
Assista o vídeo:
https://www.youtube.com/watch?v=VSyjx0s7q9Q&list=UU_M1ek8fhnDkz5C2zfkTxpg&t=3s TV 247 em agosto de 2024. Guilherme Paladino
entrevista Eduardo Guimarãesm o qual afirma que "se o Lula não tiver convicção da vitória de Maduro ele não vai
reconhecer".
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