domingo, 4 de agosto de 2024

A esquerda diante de Maduro e as eleições na Venezuela

 



Diego Cruz (texto extraído do sítio do PSTU)


Presidente Lula e o auto-proclamado presidente da Venezuela, Nicolás Maduro Foto: Ricardo Stuckert/PR



O controverso resultado das eleições venezuelanas abriu um intenso debate na esquerda brasileira. Amplamente contestado, não só pela oposição, como boa parte da população, manifestações despontaram por todo o país, principalmente na capital Caracas, tendo como resposta uma dura repressão do regime de Maduro. Enquanto fechávamos este texto, 11 mortes já haviam sido confirmadas, além de centenas de presos e feridos.

O governo Maduro, além de não ter apresentado ainda as atas eleitorais, expulsou os embaixadores de sete países que não reconheceram automaticamente a sua vitória, e levantaram dúvidas sobre a lisura do processo. Inclui-se aí o Chile de Gabriel Boric.

Mas, enquanto inúmeras organizações de esquerda da própria Venezuela denunciam uma fraude realizada pelo governo para perpetuar-se no poder, como a Unidade Socialista dos Trabalhadores (UST), seção da LIT-QI no país, e até organizações que eram alinhadas ao chavismo e compunham o PSUV (Partido Socialista Unido da Venezuela), como o Partido Comunista da Venezuela ou o Marea Socialista, no Brasil, o PT, correntes e dirigentes do PSOL, entre outros setores, saíram na defesa incondicional do regime de Maduro. É normal, portanto, que muitos estejam confusos diante desta situação.

 O chavismo e o regime de Maduro

Os defensores do regime venezuelano argumentam que Maduro, com seus eventuais problemas, representaria um contraponto à direita e à ultradireita e, principalmente, ao imperialismo norte-americano. Anos atrás, ainda se levantava a ideia de um suposto regime socialista “do Século XXI”, mas hoje esse tipo de argumento não se sustenta mais. Mas o pretenso caráter anti-imperialista do governo Maduro, e a luta contra a ultradireita, ainda mais numa conjuntura de ascenso da extrema direita mundo afora, ainda são fortes bases para esse tipo de posição. Mas, seria mesmo assim?

Hugo Chávez tomou posse como presidente em 1999, numa conjuntura de dramática miséria e desigualdade social, e na esteira de fortes agitações e protestos que haviam produzido, em 1989, o que ficou conhecido como “Caracazo”, uma explosão social respondida com uma brutal repressão que deixou centenas de mortos. O movimento bolivariano liderado pelo ex-tenente-coronel Chávez preconizava um nacionalismo com forte fraseologia socialista, moldada aos “novos tempos”, contra as elites, a corrupção e o imperialismo. Desta forma, angariou amplo apoio popular.

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Uma vez no poder, porém, Chávez implementou uma nova Constituição, e avançou para um regime cada vez mais autoritário, com a perseguição de ativistas e sindicalistas que não se alinhassem ao seu governo. O referendo de 2009 eliminou as limitações às reeleições, e possibilitou que se perpetuasse no poder. A renda com a exportação do petróleo, no entanto, principalmente nos anos de boom das commodities, tornou possível uma série de programas sociais compensatórios às parcelas da população mais empobrecidas, sem que se mudasse a estrutura de dominação capitalista, inclusive das multinacionais. 

O petróleo continuou abastecendo o mercado internacional, sobretudo os EUA, através de empresas de capital misto e acordos entre PDVSA e multinacionais como a Chevron. A indústria automobilística, por sua vez, continuou dominada pelas transnacionais imperialistas e, mesmo as nacionalizações se deram mediante indenizações. A dívida externa também continuou a ser paga aos banqueiros, o que precipitaria a crise no país nos anos seguintes.

A velha burguesia venezuelana, identificada com os governos anteriores, foi substituída pelos militares e um outro setor burguês, a chamada “boliburguesia”, cooptada pelo governo que lhe atribuiu a tarefa de intermediar os negócios do Estado e as empresas privadas e multinacionais.

Apesar disso, o imperialismo norte-americano nunca teve plena confiança no governo chavista. Foi por isso que, em 2002, apoiou o golpe perpetrado pela direita tradicional venezuelana. Embora o governo já contasse, àquela altura, com certo desgaste, o sentimento antiimperialista das massas foi combustível para as enormes manifestações populares que derrotaram o golpe e reconduziram Chávez ao poder. Na época, diferente de agora, a quase totalidade da esquerda se colocou ao lado das massas contra os golpistas.

Após 2002, porém, o chavismo recrudesceu sua via bonapartista, e passou a priorizar acordos e uma convivência pacífica com o imperialismo, mantendo a dominação e a exploração capitalista. Nada que se aproximasse a um pretenso “Socialismo do Século XXI”, ou nem mesmo com os governos nacionalistas do Século XX, como Cárdenas no México, ou Perón na Argentina, reivindicados por Chávez. Esses governos, ao menos, aproveitando-se de uma situação específica do pós-guerra, nacionalizaram setores inteiros da economia, o que não ocorreu na Venezuela. 

O chavismo, poderia, por exemplo, ter enfrentado as recorrentes crises de abastecimento expropriando de fato as empresas privadas e multinacionais e colocando-as a serviço da população. Mas a manutenção da grande propriedade capitalista, e imperialista, nunca resolveu a situação do país e o deixou permanentemente vulnerável a crises e pressões, tanto da burguesia quanto do próprio imperialismo. 

Crise e decadência do regime

A morte de Chávez, em 2013, ocorre num contexto de já acelerado desgaste do regime. Seu sucessor, Maduro, ao continuar gerenciando o capitalismo em prol das empresas e do sistema financeiro, mergulhou o país numa crise sem precedentes, que deixou mais de 80% da população na extrema pobreza (Pesquisa Nacional de Condições de Vida), e uma diáspora que atingiu um quarto da povo, obrigado a tentar a vida no estrangeiro.

Os bloqueios e sanções impostas pelo imperialismo, principalmente o norte-americano, aprofundam essa crise, e dão fôlego ao discurso anti-imperialista de Maduro. A realidade, porém, é que Maduro jogou nas costas da classe trabalhadora e dos mais pobres o custo dessa crise, com ataques trabalhistas e cortes sociais a fim de honrar a dívida. Em abril deste ano, por exemplo, Maduro contratou o banco norte-americano Rothschild para reestruturar sua dívida pública de 154 bilhões de dólares, nas mãos de investidores dos EUA, da Rússia e da China, entre outros. Já a norte-americana Chevron incrementou seus investimentos na exploração de petróleo, enquanto a estatal PDVSA definha.

A crise na Venezuela e a política anti-operária de Maduro provocaram um rápido desgaste do regime. O governo respondeu à erosão de sua base social recrudescendo o seu caráter autoritário e repressivo. Com a Assembleia Nacional nas mãos, assim como o Superior Tribunal de Justiça, ou seja, o Legislativo e o Judiciário sob seu comando, avançou ainda mais na perseguição de opositores. Em 2023, por exemplo, reprimiu duramente e prendeu os líderes de uma mobilização da Sidor (Siderúrgica del Orinoco) que protestavam por salários e direitos. Da mesma forma, centenas de ativistas e sindicalistas estão, agora mesmo, presos no país

Junto a isso, a censura nos meios de comunicação e a proscrição de partidos e organizações de esquerda contrários, ou simplesmente críticos ao regime venezuelano, tornaram-se a regra. Muito se fala sobre o impedimento da candidatura burguesa de María Corina à presidência, mas, geralmente, “esquece-se” que os partidos de esquerda também não puderam apresentar uma alternativa própria e independente às eleições.

Defender Maduro é defender uma ditadura capitalista

O que se tem hoje na Venezuela é, assim, uma ditadura capitalista, com base no Exército e na burguesia que se enriquece às custas dos ataques contra a classe trabalhadora e do empobrecimento da população. A luta para que sejam respeitados os votos se dá neste contexto, um direito democrático elementar, mesmo numas eleições que, desde o seu início, foram viciadas e articuladas para que não proclamasse outro vitorioso que não Maduro. 

O discurso cínico e hipócrita do governo Biden, assim como da própria oposição burguesa capitaneada por María Corina e seu fantoche, Edmundo Gonzáles, não mudam isso. Já a esquerda que presta apoio incondicional a Maduro, e tacha de “guarimbas” (protestos artificiais impulsionados pela direita) os protestos contra a ditadura e a fraude, ajudam a legitimar e a perpetuar esse governo que ataca, prende e persegue opositores, principalmente lideranças sindicais e populares. Mais do que isso, ajudam a fortalecer a própria direita e a extrema direita, não só no país, como internacionalmente.

Imagine a classe trabalhadora e o povo pobre da Venezuela. De um lado, sofre com um governo que os ataca e os joga na miséria quase absoluta, sem possibilidade de protestar ou se organizar de forma independente. De outro, com a esquerda proscrita e limitada por Maduro, enxerga como única alternativa uma direita pró-imperialista que pretende devolver o poder aos velhos setores da burguesia e entregar ainda mais o país aos EUA. O único caminho diante desse impasse é defender a mobilização, e a organização, independente da classe trabalhadora, e a construção de uma via de classe contra esses dois setores. E isso passa pela luta por liberdades democráticas, contra a ditadura, para que o povo possa lutar, se organizar e até mesmo se expressar livremente.

Maduro afirma que está sofrendo um golpe, e seus defensores recorrem à analogia com a tentativa de golpe contra Chávez em 2002. No entanto, como afirma a nota da UST, os setores que defenderam Chávez contra o golpe são os mesmos que estão agora nas ruas de Caracas, e de todo o país, contra a fraude eleitoral e a ditadura, sendo duramente reprimidos e perseguidos.

Estivéssemos frente a uma tentativa de golpe patrocinada pelos EUA, seria correto uma unidade de ação com o governo venezuelano contra o imperialismo, independentemente de seu caráter. Foi isso o que ocorreu em 2002. Mas tanto Maduro não é antiimperialista, quanto a unidade de ação que setores majoritários da esquerda fazem não é contra os EUA, mas com o governo chavista contra o seu próprio povo.

Neste sentido, a atuação do governo Lula de legitimar as eleições fraudadas é um completo desserviço à classe trabalhadora e ao próprio povo brasileiro. Lula afirmar que, quem discordar do resultado eleitoral basta recorrer à Justiça, é um acinte, pois ele sabe que essa mesma Justiça prende e persegue quem for contrário ao regime. E isso acaba ajudando também à extrema direita aqui no Brasil, que busca se fortalecer, e voltar ao poder, com base na hipócrita defesa da democracia na Venezuela, sendo que Maduro implementou justamente o que o bolsonarismo tentou fazer aqui.

Da mesma forma que rechaçamos o 8 de Janeiro aqui, e defendemos o respeito do voto do povo brasileiro que elegeu Lula, sem sermos lulistas (ao contrário, desde o chamado ao voto crítico a Lula contra Bolsonaro afirmamos que seríamos oposição de esquerda ao governo do PT), a luta contra a fraude e a ditadura de Maduro não significa ser “pró-imperialista”, ou capitular à direita burguesa venezuelana. Trata-se, isso sim, de defender as liberdades democráticas diante de uma ditadura capitalista, para que se seja possível se organizar e lutar, inclusive pelo socialismo.

EM TEMPO: O governo Lula ainda não definiu a sua posição diante desse imbróglio, mas que está numa encruzilhada é claro que sim. Convém lembrar que o  próprio Maduro define seu governo como sendo: civil/militar/ policial. Portanto, o regime político na Venezuela se constitui numa Ditadura Militar Empresarial com um Presidente  civil. 

Assista o vídeo:

https://www.youtube.com/watch?v=VSyjx0s7q9Q&list=UU_M1ek8fhnDkz5C2zfkTxpg&t=3s   TV 247 em agosto de 2024. Guilherme Paladino entrevista Eduardo Guimarãesm o qual afirma que "se o Lula não tiver convicção da vitória de Maduro ele não vai reconhecer".


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