É o que afirma Heverton Lacerda, hoje à frente da Agapan, fundada pelo
ecólogo José Lutzemberger há mais de meio século
Ayrton Centeno
Brasil de Fato |
Porto Alegre |
11 de maio de 2024 às 11:25
Heverton Lacerda é o atual presidente da Associação
Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan) - Foto: Graziela Lopes
Desde seu
nascimento em 1971, a Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural,
conhecida nacionalmente pela sigla Agapan, vem esmurrando as paredes sólidas
dos muitos negacionismos do clima. Comprou todas as brigas dignas e
imprescindíveis: contra os agrotóxicos, a supressão de árvores nas
cidades, o corte das matas ciliares, a contaminação dos rios, a destruição do Pampa em favor da
agricultura predatória, as indústrias poluidoras, a derrubada da floresta para
implantação de pastagens, a violência cega do agronegócio, a devastação da Amazônia.
Em abril, enviou uma carta ao governador Eduardo Leite (PSDB) expondo sua preocupação com o projeto de terra arrasada em curso e alertando sobre a ameaça das mudanças climáticas. É a mais antiga associação ecológica em atuação contínua no país e o Brasil de Fato RS foi conversar com seu presidente, Heverton Lacerda.
Jornalista,
pesquisador do Grupo de Pesquisa em Jornalismo Ambiental da UFRGS e membro do
Comitê de Combate à Megamineração do RS, ele falou sobre
o quadro da dor vivido hoje pelo Rio Grande do Sul.
Confira a entrevista:
Brasil de Fato RS -
No dia 26 de abril, pouco antes do mais recente período de chuvas, a Agapan
encaminhou ao Palácio Piratini um ofício intitulado “Alerta ao Estado do Rio
Grande do Sul e ao Governador do Estado”. Qual a advertência contida no
documento?
Heverton Lacerda - O documento, protocolado sob o número
179/2024, tem o objetivo de oficializar ao governador e ao estado a informação,
já de amplo conhecimento público, de que o mundo está enfrentando uma crise
climática e que essa crise tem o fator antropogênico [ações humanas] como um de
seus principais ingredientes de intensificação. Esperamos que eles se deem
conta de que povo gaúcho reside nesse mundo em crise.
Agora,
ou se mexem ou continuam nessa bolha opaca de onde só enxergam com as lentes da
economia
A intenção também é garantir que o
governador e o estado não usem o argumento de que ainda não sabiam da crise
climática. Se não sabiam, como têm demonstrado pelo tipo de políticas que têm
apoiado e encaminhado, agora sabem. Não podem mais, mesmo que quisessem, usar o
argumento de que não sabiam da crise, sem serem desmentidos. Agora, ou se mexem
ou se declaram de vez negacionistas climáticos e continuam nessa bolha opaca de
onde só enxergam com as lentes da economia.
Acreditamos que isso, como
ressaltamos no documento, ainda que não seja o objetivo maior, abre caminho
para que a sociedade cobre nos âmbitos cabíveis. Estamos dispostos a puxar essa
frente e conclamar a sociedade que se una a nós. Não se trata de um movimento
partidário, mas de defender a vida como a Agapan vem fazendo desde 1971, sob o
lema “A vida sempre em primeiro lugar”.
Não há mais espaço para negacionismo
climático.
BdF RS - Qual a
resposta que recebeu do governo Eduardo Leite?
Lacerda - A mesma que ele deu às comunidades atingidas nos
eventos climáticos anteriores: nenhuma, até agora.
BdF RS - Na
condição de mais antiga entidade ambiental em funcionamento no Brasil, quantas
vezes a Agapan foi recebida pelo governador?
Continue lendo
Lacerda - Nenhuma. No próprio documento protocolados
dia 26 de abril, nos colocamos à disposição para o diálogo com a finalidade de
construir soluções coletivas, aproveitando o conhecimento acumulado da Agapan
ao longo de 53 anos de atuação. A intenção também é tentar uma aproximação,
pois sabemos que o governo atual mantém distanciamento dos movimentos sociais.
Acho que é hora de somar, não de dividir a sociedade.
No
caso do governador, colocar o coletinho e falar pausado é tentar passar a
imagem de uma pessoa operante. Mas não é a realidade
BdF RS - O
governador tem sido visto ultimamente sempre com o jaleco amarelo, transmitindo
preocupação perante o caos ambiental desatado sobre o Rio Grande do Sul. Porém,
quando está no gabinete e sem o jaleco, Qual tem sido, na sua opinião, o
comportamento dele, de seu governo e da sua base de apoio na Assembleia
Legislativa quanto às grandes questões do meio ambiente?
Lacerda - Tocaste em um ponto que, embora possa parecer
provocação, demonstra, na verdade, um tipo de atitude diante da crise climática
que se assemelha ao que se denomina, no termo em inglês, que ficou mais
conhecido, de greenwashing. É uma atitude que busca parecer mais do que é, que mascara uma
realidade não muito boa.
No caso do governador, colocar o
coletinho e falar pausado é tentar passar a imagem de uma pessoa operante, um
herói em situações de urgência, controlando e resolvendo tudo. Mas isso não é a
realidade que está acontecendo.
Se
tivesse agido antes como um governador, não precisaria estar agora
representando um papel de repórter do governo
O que se espera de uma pessoa
empossada de um cargo de tamanha importância estratégica e gerencial é que
planeje com antecedência e promova ações preventivas para evitar situações como
esta que estamos vivenciando. Se tivesse agido antes como um governador, não
precisaria estar agora representando um papel de repórter do governo, um papel
que ele aproveita para se promover na mídia e tentar recuperar uma imagem que
perdeu por falta de ação.
BdF RS - Como a
Agapan reagiu quando o Código Ambiental do estado sofreu uma intervenção do
governo Leite, ainda no primeiro ano de seu primeiro mandato, em 2019?
Lacerda - A entidade sempre se manifesta apontando,
nesses momentos, os problemas que as fragilizações das leis ambientais podem
causar. Também nos manifestamos antes, como o exemplo agora do projeto que se
tornou lei para permitir destruição de Áreas de Preservação Permanente e
enviamos ofício em dezembro do ano passado. Mas o atual governo e a base
legislativa dele não têm ouvidos para nós. Se isso não mudar, a crise não será
revertida, e ainda se ampliará. A população precisa agir para evitar isso.
BdF RS - O
orçamento do estado para 2024 reservou R$ 115 milhões para enfrentar eventos
climáticos. É muito ou é pouco?
Lacerda - Eu gostaria que fosse muito, que não
precisássemos usar nenhum centavo para esse fim. Mas, como agora todos já estão
vendo uma amostra do que pode estar por vir, percebe-se que esse valor é um
trocado, não dá nem para a saída. Além de estar sendo divulgado
superdimensionado, misturando valores para parecer maior. Onde está o PIB
bilionário do agro, tão festejado pelo governo, neste momento?
O
estado gaúcho tem operado mais próximo aos interesses do agronegócio,
encaminhando políticas neoliberais
BdF RS -
Neoliberalismo combina com ecologia?
Lacerda - Quando entendemos que a ecologia está muito próxima
das culturas ancestrais, com seus valores ligados diretamente à compreensão de
que fazemos parte da natureza, e que para nos proteger temos que cuidar do
todo, fica quase impossível não identificar a grande distância que a separa da
proposta neoliberal.
No entanto, nenhuma aproximação é
impossível, desde que tenhamos as adaptações necessárias. Um exemplo:
agroecologia e agronegócio. Encontramos muitas diferenças, de vários âmbitos –
valores, tecnologias, práticas... No entanto, ambas atuam com agricultura.
A agroecologia, como o próprio nome
já indica, produz com base nos preceitos ecológicos, com respeito à terra, à
água, à fauna, aos trabalhadores, com consciência socioambiental. Já o
agronegócio funciona com uma lógica onde a ecologia não é prioridade, mas sim
os resultados financeiros.
O estado gaúcho tem operado mais
próximo aos interesses do agronegócio, encaminhando políticas neoliberais, a
exemplo do autolicenciamento, da legislação fiscal favorável ao exportador de
commodities, entre outros.
BdF RS - Você já
disse que o quadro que o Rio Grande do Sul enfrenta agora é “uma tragédia
anunciada”. Depois de uma tragédia em setembro de 2023, com mais de 50 mortes
no vale do Taquari, as mesmas cidades foram devastadas mais uma vez ao custo de
mais mortes. Podemos pensar, então, que mais tragédias anunciadas estão à
caminho?
Lacerda - Eu gostaria de acreditar na possibilidade de
não ter mais tragédias desse tipo. Mas, para isso acontecer, é preciso que
todos os nossos governos, com apoio irrestrito de todos os poderes públicos,
classe empresarial e comunidades, se unam. Daí já podes perceber que é quase
uma utopia, das mais ingênuas possíveis.
O que temos, então, é o anúncio de
que estamos presos na parte inicial das mudanças climáticas (é só o começo). Se
isso for compreendido com o real significado que tem, podemos agir para evitar
novas tragédias, ou ao menos abrandar seus efeitos mais diretos.
Os
cenários da crise apontam para coisas muito piores. Se algum gaúcho ainda
duvida disso, é porque estamos realmente perdidos
Isso não vale só para o Rio Grande do
Sul, vale para todo o planeta. A crise é planetária. No ritmo que estamos,
continuando a emitir gases de efeito estufa, os eventos serão mais frequentes e
mais intensos. Se essas informações não forem assimiladas, teremos muitas
tragédias climáticas pela frente. O sofrimento será maior.
Hoje, estamos vendo alagamentos,
falta de água, remédios, atendimentos médicos. Muito mais será descoberto
quando as águas baixarem. Já pararam para imaginar a quantidade de produtos
químicos, lixos hospitalares, e tantas outras coisas que foram cobertas pelas
águas e que talvez tenham se misturado?
Os cenários da crise apontam para
coisas muito piores: o nível dos oceanos subindo e cobrindo cidades inteiras,
doenças se proliferando, escassez de alimentos, migrações em grande escala,
acidentes biológicos e nucleares, etc. Se algum gaúcho ainda duvida disso, é
porque estamos realmente perdidos.
BdF RS - Há algo de
que se fala pouco hoje que é o caso da Mina Guaíba, uma imensa mina de carvão a
céu aberto que se instalaria defronte a Porto Alegre. Até 2021, a mina tinha o
apoio do governo Leite. Depois, ele declarou que o projeto estaria arquivado.
Está mesmo arquivado? Ou pode ser ativado? E o que essa mina significaria para
Porto Alegre e a Região Metropolitana em termos ambientais?
Lacerda - O governador só anunciou que o projeto estava
ativado porque tinha essa informação em primeira mão, dada a sua condição
privilegiada, mas não moveu uma palha para arquivá-lo. Se alguém tem mérito
pelo arquivamento é a sociedade organizada, em especial em torno do Comitê de
Combate à Megamineração no RS, que ajudamos a criar e que conta com a
participação de inúmeras pessoas e entidades comprometidas com a questão
socioambiental.
No entanto, resta
uma sombra desse projeto nefasto, antiecológico e poluente. Temos acompanhado o
movimento do processo na Fepam (Fundação Estadual de Proteção Ambiental). Por
último, houve um movimento estratégico da parte da empresa Copelmi
Mineração que nos preocupa por ter contado com o aceite da
Fepam. Seguiremos atentos. Esse projeto não pode sair do papel, pois seria mais
uma frente de impacto ambiental a se superar por aqui.
O
público está dominado pelo privado. Acontece no governo estadual e nas
administrações de Porto Alegre e de cidades do interior
BdF RS - O Rio
Grande o Sul tem uma história de lutas ambientais que começou ainda nos anos
1950, com a fundação da União Protetora da Natureza (UPN), de Henrique
Roessler, em São Leopoldo. Depois, nos anos 1970, nasceu a Agapan, com José
Lutzemberger, Augusto Carneiro, Ilda Zimermann, Caio Lustosa e outros
pioneiros. Na mesma época, teve Magda Renner, da Ação Democrática Feminina
Gaúcha (ADFG), talvez a primeira ONG de mulheres em defesa do meio ambiente no
Brasil. Criou uma legislação que barrou agrotóxicos e Porto Alegre teve a
primeira secretaria de Meio Ambiente do país. Porque o estado regrediu nos
últimos tempos?
Lacerda - São vários fatores. Vou salientar alguns. Eu
começaria dizendo que temos um problema de narrativas equivocadas, porém altamente
sedutoras. Há uma linha de pensamento neoliberal que tem conquistado votos
através dessas narrativas que defendem interesses privados acima do interesse
público. Como resultado, lideranças do setor privado estão dominando o Estado e
muitos municípios gaúchos, além do parlamento estadual. O público está dominado
pelo privado. Isso está acontecendo no governo estadual e nas administrações
municipais de Porto Alegre e de cidades do interior.
É
preciso conversar mais com a população gaúcha, submetida a narrativas
empresariais que vendem falsas soluções
Órgãos públicos estão sendo
sucateados para dar lugar a parcerias com o setor privado. Com isso, o Estado
perde eficiência e protagonismo, além do controle sobre a coisa pública. Isso
tudo corrobora para o processo em curso de enfraquecimento do sistema de
proteção ambiental, pois o meio ambiente é considerado um entrave para o setor
econômico.
É necessário conversar mais com a
população gaúcha, em especial a do interior do estado, que fica submetida a essas
narrativas empresariais que vendem falsas soluções bem embrulhadas. É preciso
estar atento a isso, pois, além da imprensa comercial, que já desempenha um
forte papel desinformativo para essa população, agora existem templos de cultos
religiosos que reúnem milhares de pessoas e reforçam essas versões que atendem
a interesses da alta classe empresarial, em detrimento dos interesses públicos,
sociais e ambientais.
BdF RS - Esses
pioneiros sempre advertiram que a conta iria chegar mas parece que chegou mais
cedo do que eles próprios previram. Você imagina qual a reação que teria o mais
irascível deles, Lutzemberger, diante da devastação que estamos assistindo?
Lacerda - Não convivi com o Lutz, mas dizem que ele não
tinha papas na língua. Eu gostaria de ouvi-lo agora a respeito.
Fonte: BdF Rio Grande do Sul
Edição: Marcelo Ferreira
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