Faixa de Gaza. Foto: Mohammed Al-Masri / Reuters |
Apoio incondicional dos EUA estaria ligado aos recursos naturais da região e na tentativa de fortalecer uma rota comercial alternativa ao projeto chinês da Nova Rota da Seda
17 de janeiro de
2024
Sputnik - A ofensiva
israelense na Faixa de Gaza completou 100 dias no último domingo (14), com pelo
menos 24 mil mortos, sendo 70% mulheres e crianças, e mais de 60 mil feridos,
segundo dados do Ministério da Saúde palestino. No lado israelense foram 1.139
mortes, quase o total do dia 7 de outubro, quando houve a incursão do grupo
palestino Hamas ao território israelense.
Nos últimos meses,
chamou atenção o apoio incondicional dos Estados Unidos a Israel, mesmo diante
de fortes críticas de outros Estados à desproporcionalidade da ofensiva
israelense em Gaza. Esse apoio se deu, em especial, em votações no Conselho de
Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU).
Alguns analistas
apontam que o apoio incondicional de Washington não tem como pano de fundo
apenas a manutenção da aliança com Tel Aviv, mas também os recursos naturais
pertencentes aos palestinos e a tentativa de fortalecer uma rota comercial
alternativa ao projeto chinês da Nova Rota da Seda.
Em entrevista ao podcast Mundioka, da Sputnik Brasil, especialistas analisam quais são os objetivos de Washington ao apoiar a incursão israelense no enclave, e se o conflito pode acabar beneficiando a Europa, atualmente em crise de energia.
Qual o real motivo do conflito na Faixa de Gaza? - Filipe Ribeiro, criador do canal Geopolítica em Português, aponta que Israel tem vários objetivos em Gaza, que incluem a Cisjordânia, território da Palestina controlado por Israel.
"Mas Gaza é o
principal foco. De fato os recursos [naturais] são um dos pontos importantes
para Israel, mas quando falamos em recursos, não falamos só em gás natural. Os
próprios relatórios das Nações Unidas explicaram que alguns dos objetivos de
Israel relativamente aos recursos eram […] controlar a água, controlar as
terras que permitem uma boa agricultura, e, de fato, o gás natural na região é
estimado em vários trilhões de pés cúbicos, em vários pontos, não só na zona
marítima, mas também na zona terrestre", explica Ribeiro.
Ribeiro acredita
que a abundância de gás natural explica o apoio dos EUA e da Europa a Israel.
Segundo o analista, o chamado "Ocidente coletivo" parece ter uma
estratégia calcada em dois objetivos relacionados entre si.
"Um dos
objetivos era o domínio dos hidrocarbonetos no Oriente Médio. O outro objetivo
era o afastamento da Rússia e do Irã como principais parceiros das grandes
economias da Europa, principalmente no gás natural, mas também no petróleo. Só
que a sequência dos eventos deveria ser: fase um, domínio do Oriente Médio, ou seja,
o controle dos hidrocarbonetos; fase dois, afastar a Rússia da Europa e travar
também a capacidade do Irã, que tem vindo a mostrar-se importante também nas
questões geopolíticas", afirma Ribeiro.
"Quanto ao
primeiro objetivo, na minha opinião, a estratégia do Ocidente foi de
arredondamento, porque na sua fase normal de implementação ela necessitava que
a operação na Síria desse resultado, ou seja, remover e substituir Bashar
al-Assad, necessitava controlar o Líbano, manter a Arábia Saudita sob
influência e derrubar economicamente o Irã", complementa.
Ribeiro aponta que
os dois principais campos de gás natural da Faixa de Gaza são os campos Tamar e
Leviatã, com uma quantidade significativa de cerca de 200 trilhões de metros
cúbicos de gás. Segundo ele, os campos foram descobertos entre 2009 e 2010 e já
são explorados pela empresa norte-americana Chevron, que atua no ramo de
geração de energia, em especial petrolífera.
"Só que os
especialistas mostram que naquela região ainda há muitas reservas estimadas
[além dos dois campos]. Ou seja, existe muita capacidade de exploração ainda
nessa região", diz Ribeiro.
Ele destaca que
além dos campos explorados pela Chevron, há outros atualmente explorados pela
britânica British Petroleum e pela italiana ENI. O especialista chama a atenção
para o fato de a esposa do primeiro-ministro britânico, Rishi Sunak, ser uma
das associadas da British Petroleum.
"Não tenho
todos os dados sobre isso, mas aquilo que me chegou, de pessoas que partilham
esse tipo de informações comigo, era que o negócio seria do sogro de Rishi
Sunak, que teria uma empresa de tecnologia da informação. Nem seria nada
especificamente ligado ao petróleo, mas que estava em um dos consórcios, ou
seja, iria receber dividendos, iria receber também mais-valias da
exploração", explica Ribeiro.
Quem vai ser responsável por reconstruir a Faixa de Gaza? -Questionado sobre se as reservas de gás natural
presentes na Faixa de Gaza podem despertar o interesse da Europa em contribuir
para a reconstrução do enclave após o fim da ofensiva israelense, Ribeiro
afirma que quando houver a ocupação total de Gaza por Israel, "esse será
um interesse ocidental na região".
"Se for preciso,
até dinheiro da União Europeia será utilizado para financiar a reconstrução.
[…] Em última análise, todos os principais valores que vão financiar a
reconstrução de Gaza serão norte-americanos, porque temos que nos lembrar que é
o lobby israelense que manda normalmente nas eleições norte-americanas. Por
isso os bilhões de dólares que vão todos os anos dos Estados Unidos para
Israel, eles vão continuar a ir, e se for preciso, serão valores até mais
avultados para reconstruir Gaza para os objetivos que estão propostos",
afirma o especialista.
"Porque o
objetivo em Gaza é ser um ponto de ligação de energia à Europa, eu não tenho
grandes dúvidas em relação a isso. Aquilo que eles querem fazer são grandes
terminais de energia, criar gasodutos para interligar o Chipre, a Grécia, a
Itália, e fazerem um grande hub energético, que será uma alternativa à Rússia,
que agora está desligada da Europa", acrescenta.
Segundo Ribeiro,
"a energia é uma necessidade urgente para a Europa", e Israel tem o
comprometimento em ser "a representação do Ocidente no Oriente
Médio".
"[Israel] É
literalmente o último projeto colonial europeu naquela região. Por isso essa é
uma questão de poder, de manter ligações com o grande ponto geográfico de
energia no mundo. Aí não interessam os direitos humanos, os direitos humanos
não falam acima dos interesses econômicos e financeiros."
Situação na região pode gerar alta no preço do gás natural? - Para Luiza Guitarrari, pesquisadora do Centro de
Estudos de Energia da Fundação Getulio Vargas (FGV), se a situação no Oriente
Médio escalar, não apenas com o conflito em Gaza, mas também com a guerra no
Iêmen, pode haver uma desestabilização dos preços do gás natural, que
estabilizaram após alcançar um pico em 2022. Ela aponta, em especial, os
ataques a navios no mar Vermelho perpetrados pelos houthis, que vêm ameaçando o
fluxo de comércio global.
"O que é a
grande preocupação de nós, analistas de energia, mas também de pessoas
envolvidas no comércio marítimo e de [pessoas de] logística, é esse conflito escalonar
e acabar criando gargalos para o trânsito desses navios-tanque e também navios
de gás, do GNL [o gás de cozinha]. Pode ser, sim, um motivo de elevação dos
preços nos próximos meses."
Ela aponta a
fragilidade da situação no Iêmen e a ascensão do Irã, que apoia os houthis, na
geopolítica global.
"Tem alguns
dados que comprovam que os houthis são apoiados em termos de tecnologia, de
aparatos digitais, como os próprios drones, e economicamente pelo Irã. Então,
se a comunidade internacional entender que o Irã esteja tendo uma atuação um
pouco mais proeminente, mais direta nesse conflito, a gente pode ver também uma
possível entrada do Irã [diretamente no conflito], que é um ator muito
importante para a economia global e também para o setor de óleo e gás."
Ela lembra que
"o Irã é uma produção pujante de gás, com quase 260 bilhões de metros
cúbicos, então um transbordamento desse conflito para outras regiões seria
extremamente preocupante".
"Não somente
para os países envolvidos na região, mas para o mundo inteiro, dado que o
Oriente Médio, atualmente, concentra 40% das reservas mundiais de gás e 48% de
petróleo", alerta a especialista.
Questionada sobre
se a escalada de tensão no mar Vermelho pode abrir um novo front de guerra,
principalmente após o ataque do dia 10 de janeiro, o maior dos últimos 26
ataques na região, Luiza destaca que "o ataque recente não foi
isolado".
"Foram 18
drones envolvidos nessa operação, 2 mísseis cruzeiros… É um potencial bélico
considerável, tendo em vista a situação atual do Iêmen e dos próprios houthis.
Então é uma região que tem chamado bastante a atenção dos analistas, tem
preocupado, sim, o comércio internacional de insumos variados. Mas se vai
começar o conflito por ali exatamente, eu não sei."
Luiza acrescenta
que a possibilidade de o conflito escalar se tornaria maior caso Arábia Saudita
e Irã se envolvessem diretamente no conflito. Porém ela aponta que esse cenário
de transbordamento do conflito vai contra os interesses de EUA, Europa e
Israel.
Ela ressalta que,
em outubro, o Ministério de Energia israelense concedeu 12 licenças de
exploração a empresas petrolíferas para explorar gás no Mediterrâneo, mais
especificamente no oeste do campo de Leviatã, localizado em um meridiano que
inclui o norte da Faixa de Gaza.
"Leviatã é um
campo que já tem sido explorado há muitos anos por Israel, com reservas acima
de 600 bilhões de metros cúbicos. […] Então, além desse campo, Israel pretende
seguir explorando não somente o campo de Leviatã, mas também [os campos de]
Tamar e Karish. E a produção pode não ocorrer nesse transbordamento do
conflito, dada a questão da insegurança dos trabalhadores e dos operadores que
ficam na região."
Qual o papel do Brasil nesse xadrez geopolítico? - Sobre a atuação do Brasil em relação à escalada de
violência no mar Vermelho e na Palestina, Luiza aponta que o papel do país,
historicamente, é o de buscar o equilíbrio entre as partes através da
diplomacia.
"O Brasil
sempre buscou trazer as partes em conflito para a mesa de negociações. Não à
toa o Brasil sempre é convidado como observador do Conselho de Segurança da ONU
ou de outros órgãos associados à ONU. O Brasil sempre tenta assumir essa
posição moderada e também chamar para a mesa de negociações as partes em
conflito."
No entanto, ela
destaca que a atuação do Brasil nem sempre é bem-sucedida, principalmente
porque o mundo atravessa um período extremamente inseguro.
"A gente tem
visto uma perda da credibilidade de instituições, como o próprio direito
internacional, então urge aos Estados que eles cooperem juntos e atuem, tenham
esse caráter cada vez mais diplomático, para, enfim, chegar às vias pacíficas
de fato."
EM TEMPO: Há também a possibilidade de se construir uma canal de navegação alternativo ao de Suez, partindo de Gaza para facilitar o escoamento de produtos por lá.
Nenhum comentário:
Postar um comentário