sexta-feira, 15 de dezembro de 2023

Colapso da mina 18, em Alagoas, tem início com licença da ditadura

 

Vista aérea do bairro Mutange, em Maceió (Foto: Reprodução/BRASKEM)








"Essa história vem de longe. É impressionante como 60 anos depois, e a ditadura (1964/1985) continua a ecoar seus efeitos sobre a sociedade", diz Denise Assis

Por volta de 13h15m deste domingo (10/12) a mina 18 de exploração de sal-gema da Braskem, em Maceió, se rompeu. Três bairros que poderiam ser atingidos pela catástrofe foram esvaziados em 2020, depois da interrupção das atividades de mineração, em 2019. Segundo o noticiário, não houve vítimas fatais ou tampouco feridos. Não é bem assim.

As imagens da lagoa de Mandaú no momento do rompimento são as de um ralo de pia. Sob a forma de um redemoinho a água vai sendo sugada, formando um grande círculo. Ao redor, um bando de garças procura escapar. Assustadas, esbaforidas, voam ligeiras, antes que fossem tragadas para dentro da cratera onde, como a mulher de Ló, virariam estátuas de sal, para todo o sempre. Para lá, naquele momento, estavam sendo arrastados peixes, cobras, alevinos, filhotes de jacarés e toda a fauna que habitava a lagoa.

Essa história vem de longe. É impressionante como 60 anos depois, e a ditadura (1964/1985) continua a ecoar seus efeitos sobre a sociedade. Ora com os traumas deixados pela brutalidade e a violência, ora pelas facilidades e a frouxidão das permissões. Aos amigos, tudo. Aos inimigos, a lei, era o princípio que imperava. Assim, de facilidades a irresponsabilidades, ia-se fazendo a história dos desmandos, desde que beneficiassem os amigos. Não foi diferente com o sal-gema de Maceió, fruto de uma corrida de ganância e esperteza.

Em 2015 o historiador Edberto Ticianelli trouxe à luz, em seu blog, (História de Alagoas) a verdadeira saga da tragédia que mais cedo ou mais tarde aconteceria.

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Segundo o seu relato, quando as sondas começaram a perfurar o solo nas áreas de mangue da Lagoa Mundaú em 1941, o objetivo do Conselho Nacional do Petróleo era prospectar petróleo. “A firma contratada não teve sucesso com o petróleo, mas encontrou um “leito” de sal-gema sob Maceió”, descreve.

Naquele ano, nem a empresa contratada e nem o CNP deram importância à descoberta. Quem achou que a sal-gema tinha valor foi o empresário baiano Euvaldo Freire de Carvalho Luz, então o proprietário da oficina que recebia as sondas usadas na prospecção, para reparo, e percebeu nelas os fragmentos do mineral.

Interessado em explorar a descoberta, Euvaldo Luz procurou o governo Federal em 1944 para obter a concessão, mas descobriu que tal benefício já tinha sido outorgado a um grupo internacional com validade de 22 anos. Para sua sorte, em 1964 a concessão caducou, o que lhe permitiu obter o direito de exploração pelo Decreto nº 59.356 de 4 de outubro de 1966.

Finalmente em 1966 o empresário Euvaldo Luz conseguiu botar de pé a firma Salgema Indústrias Químicas Ltda, com a participação da Euluz S/A. Em 1968, quando a Sudene autorizou a participação de empresa estrangeira, 50% foram assumidos pela Dupont, com a devida autorização da Sudene.

Respaldado pelo decreto citado, Euvaldo Luz, que já realizava estudos geológicos um ano antes, iniciou a pesquisa para precisar a localização da sal-gema “em terrenos de sua propriedade e do Domínio da União, da Lagoa do Norte no distrito e município de Maceió, no Estado de Alagoas, numa área de quinhentos hectares (500 ha)”.

De acordo com o professor Abel Tenório Cavalcante, pesquisas realizadas em 1968 pelos técnicos da Petrobras, Álvaro A. Teixeira e Luiz A. R. Saldanha, “comprovaram para a área de Maceió, uma reserva de 0,5 bilhão de toneladas de sal. E conforme o relatório apresentado à Companhia de Desenvolvimento de Alagoas (Codeal), por ele, em junho de 1970, os poços onde o sal-gema era encontrado eram os Al-2 e o Al-3 e a empresa constatou “a existência de 80m de sal-gema, de alta pureza, na região de Maceió, a uma profundidade de 1.000 metros”.

No ano seguinte, o empresário Luz, percebendo a grandeza do projeto e o interesse das grandes empresas do ramo, procurou os grupos Dow Química e Solvay tentando atraí-los para o empreendimento.

No início dos anos de 1970, afastado do seu cargo no governo do ditador Geisel (Casa Civil) o general Golbery do Couto e Silva ocupou o cargo de diretor da Dow Química, tendo liderado a instalação da Dow em Aratu-BA e no Guarujá-SP e participado da tentativa de produzir soda-cloro em Bahía Blanca (Argentina). Ou seja, já se enfronhando no ramo.

A Dow Química, depois de conhecer detalhes da proposta e de sua viabilidade econômica, montou seu próprio projeto e tentou chegar primeiro que a Euluz S/A na Sudene para conseguir a autorização.

Segundo o jornalista Calazans Fernandes, em sua coluna Polígono no Diário de Pernambuco de 4 de novembro de 1966, “não fosse estar a equipe do Departamento de Industrialização da Sudene alerta, no momento da entrada da proposição da Dow Chemical e ela teria chegado primeiro que o grupo Euluz, merecendo, assim, uma resposta anterior à do outro”.

A construção da fábrica de cloro-soda, o campo de salmoura e o terminal marítimo, em Maceió, teve início em 1974.

Em 1971 foi a vez do BNDE aderir ao projeto. Nesse período Euvaldo Luz detinha 45% das ações, o BNDE controlava outros 10% e a Dupont possuía 45%. Preparando a estatização da empresa, o governo, por meio do BNDE, duplicou o capital — era de 70 — para 140 milhões de dólares.

O Grupo Euvaldo Luz não teve como acompanhar esse nível de investimento e se retirou da sociedade, vendendo sua participação para o próprio BNDE. Estas ações, depois, em junho de 1975, foram repassadas para a Petroquisa, que passou a dividir com a Du Pont o controle da estatal Salgema Indústrias Químicas S/A.

A construção da fábrica de cloro-soda, o campo de salmoura e o terminal marítimo, em Maceió, tiveram início em 1974. A produção comercial só começou em fevereiro de 1977 e a unidade de dicloretano, em 1979.

Entre o final de 1975 e junho de 1977, foi construído o Terminal Marítimo da Salgema, instalado a poucos metros da planta industrial.

A unidade produtora de eteno a partir do álcool entrou em funcionamento em dezembro de 1981, eliminando a necessidade de importação da nafta para a produção de dicloretano.

Em 1981 a empresa teve lucro pela primeira vez. O ganho de Cr$ 10 milhões foi atribuído por seu presidente Ronaldo Miragaya ao crescimento das exportações, que tinham aumentado em 30 vezes. A unidade produtora de eteno começou a funcionar em meados de 1982.

Nesse período teve início a participação da Norquisa e da Copene. Em seguida a Odebrecht adquiriu participação no capital da empresa em Alagoas e em outras unidades, nascendo a Odebrecht Química S.A., que nos anos de 1990, com o processo de privatização do setor petroquímico, ampliou o seu controle sobre outras empresas criando a OPP Petroquímica S.A e a Trikem S.A. Em 1996, a empresa foi rebatizada como Trikem.

A partir de 2002, a exploração da sal-gema em Alagoas passou a ser realizada pela Braskem, empresa que continuava sob o controle da Odebrecht Química S.A., atual Novonor, denominação adotada após os problemas que empresa teve com a Operação Lava Jato. A Novonor detém 38,32% das ações, a Petrobras é a segunda maior acionista, com 36,1%. As outras ações estão nas mãos de vários outros investidores.

Quando da escolha do local para a construção da indústria durante o governo de Divaldo Suruagy, o coordenador do projeto de implantação era o economista Beroaldo Maia Gomes, também de acordo com o site de Ticianelli.

Em entrevista ao deputado Mendonça Neto em 1982, Beroaldo esclareceu que a escolha foi feita por um grupo de técnicos que veio dos Estados Unidos e que dele participava o vice-presidente da Dupont: “Eles acharam que o único lugar adequado, possível na época, seria onde hoje a Salgema está instalada. Era lá ou em nenhum outro local. Eu ainda sugeri outras áreas; mas não foi possível dissuadi-los. Eles garantiram que não haveria riscos para a população”. E, se houvesse, como houve, e eles com isso?

O momento mais crítico provocado pela localização da empresa no Trapiche da Barra ocorreu no início da manhã de 31 de março de 1982, quando uma “violenta explosão, seguida de chamas que alcançaram cerca de 15 metros” (Gazeta de Alagoas, 1º/04/1982) atingiu a unidade de Diocloretano.

“Houve pânico, com correrias, desmaios e choros por parte dos moradores e familiares dos funcionários da empresa. As ruas próximas a Salgema, embora chovesse muito em Maceió, ficaram movimentadas, com o povo procurando abandonar suas casas”, noticiou a Gazeta de Alagoas, notícia reproduzida no site de Ticianelli.

Pelo menos cinco pessoas foram atendidas na Unidade de Emergência Dr. Armando Lages. Vinte e cinco dias após a explosão faleceu no Hospital dos Usineiros o trabalhador Genival Ribeiro dos Santos, 44 anos, vinculado a uma empresa terceirizada. Morreu em consequência de queimaduras de 1º, 2º e 3º graus.

O fim das explorações

Em fevereiro de 2018 surgiram algumas rachaduras na altura do bairro do Pinheiro, mas como havia chovido muito em Maceió, inicialmente se atribuiu o fenômeno à acomodação do solo. Dias depois, em 3 de março de 2018, um tremor de 2,5 graus na escala Richter atingiu toda a área no entorno desse bairro.

A partir de então as rachaduras foram se espalhando pelos bairros vizinhos (Bebedouro, Mutange, Bom Parto e Farol), deixando evidente que algo de muito grave estava acontecendo no subsolo dessa parte de Maceió.

Os primeiros estudos para identificar o que estava ocorrendo ficaram ao encargo o Serviço Geológico do Brasil (SGB/CPRM), que passou a descartar a possibilidade de um fenômeno naturalmente geológico.

No início de 2019, o resultado das pesquisas foi apresentado em audiência pública. Indicava como causa da subsidência a extração mineral de sal-gema e a Braskem como a responsável pelos danos.

Diante da gravidade da situação, o Ministério Público Federal recomendou a urgente desocupação da área. Assim, além do plano de evacuação dos moradores, em março de 2019 foi decretado o estado de calamidade nas áreas de risco. Nos anos seguintes, 60 mil pessoas deixaram os bairros atingidos. As baixas indenizações provocaram inúmeros protestos. A retirada imediata dos moradores diminuiu drasticamente o risco de se ter mortes em caso de uma catástrofe.

Os novos tremores de terra que aconteceram no final de novembro de 2023 alertaram à população de Maceió e às autoridades, para o risco de colapso da mina 18, no Mutange. O município entrou em Estado de Emergência no dia 29 de novembro. Hoje, por volta da hora do almoço domingueiro, parte da mina colapsou.

Vítimas houve, e muitas. A memória das pessoas que ali cresceram foi destruída, com a obrigatoriedade de transferência dos bairros de referência da infância de todos. A fauna e a flora foram engolfadas pela mina, ao se romper, puxando para o seu interior as águas da lagoa Mandaú. Foram eles. Novamente foram eles. Lá atrás, com os compadrios de sempre.

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