'Modelo da Lava
Jato não funcionou. Por causa de violações de direitos, de se forçar situações
artificiais para manter tudo na mão de um único juiz', disse Simone Schreiber
23 de novembro de
2023
A desembargadora Simone Schreiber (Foto: Pedro
França/Agência Senado)
NOTA DA DIREÇÃO DESTE BLOG: Sugiro leitura desta entrevista, especialmente para todos(as) os(as) amantes do Estado de Direito e da Democracia. Ok, Moçada!
Por Sérgio Rodas, Conjur - Em seus primeiros anos, a
“lava jato” passava uma impressão de eficiência. Com base nos números de
prisões preventivas e condenados, além dos valores recuperados por meio de
acordos de colaboração premiada e de leniência, os atores e defensores da
investigação argumentavam que ela estava promovendo uma revolução no combate ao
crime organizado. Porém, com o tempo, as ilegalidades lavajatistas foram sendo
descobertas, e as decisões, anuladas pelos tribunais.
Para a
desembargadora do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (RJ e ES) Simone
Schreiber, relatora dos casos da “lava jato” na Corte, essa mudança de rumos
reflete o perfil dos juízes que atuaram no processo de início, como Sergio
Moro, ex-titular da 13ª Vara Federal de Curitiba, e Marcelo Bretas, que está
afastado da 7ª Vara Federal Criminal do Rio de Janeiro por decisão do Conselho
Nacional de Justiça — mais alinhados às visões do Ministério Público.
“Foi uma onda que argumentava que havia uma
situação excepcional de corrupção endêmica, que exigia soluções criativas e
excepcionais, muitas vezes atropelando o devido processo legal”, aponta a
magistrada, que é professora de Direito Processual Penal da Universidade
Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio).
É claro que o
sistema penal deve alcançar a elite politico econômica, e não só os pobres,
ressalta Simone. “Mas o modelo da ‘lava jato’ não funcionou”, devido às
violações de direitos de acusados e à falta de imparcialidade de julgadores,
avalia. Segundo ela, o caso pode servir como aprendizado para o país.
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A desembargadora é
autora do livro A publicidade opressiva de julgamentos criminais,
resultado de sua tese de doutorado, defendida em 2008 sob orientação do
ministro do Supremo Tribunal Federal Luís Roberto Barroso. Na obra, ela explica
que a publicidade opressiva se caracteriza quando o noticiário sobre um
processo fica tão ostensivo que a situação dos réus ou investigados fica
prejudicada, especialmente em casos que vão a júri. A campanha midiática
torna-se tão agressiva que é impossível ter um julgamento imparcial.
Na “lava jato”,
procuradores da República e juízes, como Moro, usaram a imprensa para gerar
publicidade opressiva contra os acusados. A estratégia deu certo, de acordo com
a desembargadora, porque jornalistas não tinham tempo de analisar criticamente
as informações que lhes eram repassadas por agentes públicos. Nem interesse,
porque a notícia bombástica é o que mais tem peso no meio jornalístico, opina.
Simone considera
positiva a regra de alternância de gênero no preenchimento de vagas para os
tribunais de segunda instância, recentemente aprovada pelo CNJ — embora preveja
resistência à sua implementação. Contudo, ela ressalta ser preciso também
estabelecer medidas para diminuir a desigualdade racial. “O Judiciário
brasileiro é totalmente branco, com raríssimas exceções”.
Em entrevista à
revista eletrônica Consultor Jurídico, Simone Schreiber ainda destacou que
juízes devem atuar a partir da lógica do desencarceramento e disse que o juiz
das garantias deve melhorar a qualidade do processo penal.
Leia a entrevista:
ConJur — A “lava jato” se
encerrou formalmente em 2021, com o fim das forças-tarefa, mas ainda há
diversos inquéritos e processos em curso. Qual é o legado da operação?
Simone Schreiber — Foi uma
experiência que pretendeu inaugurar uma nova maneira de lidar com os crimes de
colarinho branco, como corrupção e lavagem de dinheiro. Mas depois foram
identificadas várias práticas consideradas abusivas. Eles [lavajatistas] tinham
um método de trabalho baseado em conquistar a opinião pública, ter a opinião
pública do lado deles para poderem combater os crimes de colarinho branco.
Sergio Moro falava isso desde o início. Ele deu uma entrevista na qual disse
que precisava da sociedade para conseguir fazer o seu trabalho. Havia um apelo
de que a sociedade tinha que estar atenta, para permitir e para dar um apoio a
esse esforço de combate a crimes cometidos por pessoas que detêm poder político
e econômico.
Então havia uma
dimensão midiática. A “lava jato” começa com uma grande repercussão na mídia,
com aquilo que a gente chama de “operação” policial. As operações da Polícia
Federal são apelidadas, recebem nomes com apelo midiático. E essas operações
são muito violentas, porque têm prisões, conduções coercitivas, buscas e
apreensões. Todas essas medidas são feitas muito cedo, em um horário em que as
pessoas estão dormindo.
Apesar disso,
quando esses casos vão a julgamento, os resultados não cumprem o que prometem.
Porque são processos complexos, que enfrentam muitos problemas burocráticos de
condução, têm muitos réus, muitos bens bloqueados, muitos documentos
amealhados. Os processos acabam ficando muito lentos e difíceis de se conduzir.
Depois de todo esse tempo — a “lava jato” começou em 2014; no Rio, em
2016 —, há condenações
e absolvições, há casos que foram julgados no âmbito dos Tribunais Regionais
Federais. Mas ainda não há condenações definitivas, porque ainda há recursos
pendentes em Brasília. Então, a impressão de eficiência, de que finalmente se
está fazendo alguma coisa, é muito mais baseada na etapa inicial. A etapa
inicial que ainda não tinha processo, na qual as pessoas não puderam se
defender, que teve uma carga bastante invasiva.
É claro que o
sistema penal não pode ser seletivo, pegar só pessoas pobres. É claro que
precisamos ter mecanismos para apurar crimes cometidos por pessoas que detêm
poder político e econômico, como corrupção. Mas o modelo da “lava jato” não
funcionou. Por causa de violações de direitos das pessoas, de se forçar
situações artificiais de conexão para manter tudo na mão de um único juiz. Isso
se revelou muito ruim, por vários aspectos, como o personalismo excessivo
personalismo e inviabilização dessas varas. Não houve nem um ganho de
eficiência, porque as varas ficaram completamente inviabilizadas, e os juízes
acabaram ficando com a imparcialidade comprometida, porque ficaram muito
sujeitos à super popularidade.
Nós não temos que
desconsiderar a necessidade de se ter mecanismos de apuração e punição de
crimes cometidos pela elite. Mas dentro do que a Constituição prescreve.
Precisamos melhorar o Sistema de Justiça Penal para tentar trabalhar isso sem
violar direitos fundamentais. A “lava jato” talvez tenha sido um aprendizado.
ConJur — Passado o frenesi
inicial, muitas decisões da “lava jato” vêm sendo anuladas nos TRFs, Superior
Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal. O que isso diz sobre a
operação?
Simone Schreiber — Isso reflete
o perfil dos juízes que atuaram de início. Está dentro desse fenômeno de se
concentrar tudo nas mãos de um juiz e de o Ministério Público eleger juízes que
talvez tivessem um pouco mais afinidade com a maneira do MP de ver as coisas.
Foi uma onda que argumentava que havia uma situação excepcional de corrupção
endêmica, que exigia soluções criativas e excepcionais, muitas vezes atropelando
o devido processo legal. Em um determinado momento, quem falasse algo contra a
“lava jato” era apedrejado, chamado de leniente com a corrupção. Então as
pessoas ficaram um pouco amedrontadas de fazer um contraponto, de falar contra
a operação.
Mas quando surgiu
uma reação a esse discurso, um enfraquecimento dessa onda, por motivos
políticos, fragilidades começaram a ser identificadas, como algumas más
condutas de juízes. A vaza jato e o caso de Luis Carlos Cancellier [ex-reitor
da Universidade Federal de Santa Catarina que se suicidou após ser
indevidamente acusado de corrupção na “lava jato”] foram importantes
enfraquecer o discurso, assim como o fato de serem atingidas pessoas que têm
voz, como políticos.
Com o tempo, esse
discurso hegemônico de que a “lava jato” era uma coisa maravilhosa foi se
enfraquecendo. Estabeleceu-se um momento de maior normalidade, de mais respeito
ao devido processo legal, e os tribunais começaram a identificar problemas. Um
caso evidente foi o do presidente Lula, como destacado no voto do ministro
Gilmar Mendes.
Um resultado desse
movimento de retorno à normalidade foi a determinação de redistribuição de
processos, de acabar com a competência concentradas em um único juiz ou um uma
única turma no tribunal. Quando eu assumi a relatoria da “lava jato” no TRF-2,
começamos a fazer algumas redistribuições, porque identificamos que não havia
conexão em várias situações. Alguns casos foram para a Justiça estadual, outros
para a Justiça Eleitoral, outros para Justiça Federal em outros estados. Em
vários casos, o Supremo Tribunal Federal mandou fazer essas redistribuições.
Com essas
redistribuições, passa-se a ter vários juízes pensando, trabalhando nos
processos. E eles vão identificando irregularidades. Um juiz pode não concordar
com a maneira como outro juiz conduziu o processo e declarar algumas nulidades.
Isso é natural. O que não é natural é tudo que o juiz faz ser corroborado pelo
tribunal. O normal dentro do ambiente da Justiça é ter opiniões díspares e
maneiras diferentes de aplicar o Direito.
O fato de não haver
um juízo crítico sobre aqueles procedimentos [da “lava jato”] era algo fora do
comum. Muitas prisões preventivas não tinham uma justificativa tão importante,
não tinham contemporaneidade para se decretar, os fatos eram muito anteriores.
Isso tudo foi sendo revisto, e é positivo.
ConJur — Qual foi o papel da
publicidade opressiva na “lava jato”
Simone Schreiber — Houve vários
episódios de publicidade opressiva que identificamos, principalmente com as
conversas da vaza jato. Houve o uso da imprensa para reforçar determinadas
posições processuais. Em sua dissertação de mestrado sobre a “lava jato”, a
advogada criminal Maíra Fernandes aborda a questão da publicidade. Ela narra um
episódio do começo da operação, em que o então juiz Sergio Moro decreta a
prisão de algumas pessoas, mas o então ministro do STF Teori Zavascki manda
revogá-las [por reconhecer indícios de incompetência da 13ª Vara Federal de
Curitiba]. Moro então manda um ofício para Teori pedindo esclarecimentos e
afirmando que um dos presos era um traficante internacional. Antes de Teori
responder ao ofício, a informação é divulgada para a imprensa. É evidente que a
fonte da informação foi Sergio Moro. Então, no dia seguinte sai uma manchete
dizendo “Teori Zavascki manda soltar traficante internacional”. Com a
repercussão negativa, Teori volta atrás e mantém as prisões. Essa é uma
primeira evidência da tentativa de se constranger juízes. Em artigo publicado
em 2004, Moro fala como a imprensa era um componente importante para combater o
crime organizado.
Teve um episódio da
vaza jato em que eles [procuradores] ficam discutindo maneiras de constranger o
ministro do STF Alexandre de Moraes a votar a favor da execução provisória da
pena, dizendo que Alexandre tinha feito uma palestra sobre isso, que eles iam
fazer uma edição dela para divulgar e constrangê-lo. Eles usam muito a palavra
“emparedar”. “Vamos emparedar o juiz, vamos emparedar o desembargador”. Quando
o desembargador Ivan Athié foi sorteado relator da “lava jato” no TRF-2, o
Ministério Público Federal arguiu a suspeição dele, jogou no jornal, saíram
reportagens dizendo que ele tinha ligação com um advogado do caso. Athié
sentiu-se profundamente constrangido e acabou declarando sua suspeição.
O voto do ministro
Gilmar Mendes no caso da suspeição de Sergio Moro para julgar Lula merece ser
lido. Ele se reporta a várias situações de uso da imprensa para atingimento de
fins que não tem nada a ver com a boa condução do processo. Então, em vários
episódios a imprensa foi utilizada estrategicamente.
ConJur — A imprensa foi
pouco crítica ao noticiar os andamentos da “lava jato”?
Simone Schreiber — Parece que sim, em
casos como o de Cancellier. A Polícia Federal e o Ministério Público Federal
fazem releases, já dão a notícia mastigada para o jornal publicar no dia da
operação. Isso faz parte de toda uma propaganda institucional. E a imprensa
compra e noticia daquele jeito. Até porque a imprensa está sempre com pouco
tempo. Tem a necessidade da imediaticidade praticamente da notícia, a pressão
do furo jornalístico, de não ser passado para trás por outro veículo. A
imprensa não faz uma análise crítica dessas informações porque não tem tempo
nem interesse, afinal, o que vale é a notícia bombástica.
A imprensa tem que
fazer mea culpa sobre o caso. O que os jornalistas geralmente dizem é que eles
só divulgaram fatos que efetivamente estavam ocorrendo. Mas aí surge a questão
de como lidar com esse fenômeno. Houve um uso estratégico da imprensa, sim [por
partes dos agentes estatais]. Isso está claro em vários episódios. Por exemplo,
a divulgação da delação do ex-ministro Antonio Palocci na véspera da eleição de
2018 [pelo então juiz Sergio Moro].
ConJur — Como a senhora
avalia o uso da colaboração premiada na “lava jato”?
Simone Schreiber — A colaboração
premiada é um mecanismo interessante de apuração de informações quando se está
investigando uma organização criminosa. Mas era um instituto que estava muito
pouco regulamentado. Ele estava previsto na Lei das Organizações Criminosas
(Lei 12.850/2013), tinha algumas normas, mas elas deixavam para o Ministério
Público uma grande discricionariedade sobre como os acordos seriam feitos. O
Ministério Público tinha muita autonomia para decidir com quem iria firmar um
acordo de colaboração, com quem não iria, que tipo de penas e de prêmios iria
oferecer os colaboradores. Havia cláusulas por meio das quais os colaboradores
se comprometiam a não impugnar os acordos.
A Lei “anticrime”
(Lei 13.694/2019) restringiu isso um pouco. Houve uma compreensão de que os
acordos estavam sendo feitos sem controle. Eu escrevi um texto mostrando que
houve uma jurisprudência muito permissiva, afirmando que os acordos de
colaboração eram negócios jurídicos e que ninguém poderia discuti-los, a não
ser as partes do acordo. Só que o colaborador era impedido de impugnar o
acordo. E as pessoas incriminadas não eram consideradas legítima para
questioná-lo. Dessa maneira, praticamente não houve controle judicial sobre as
cláusulas dos acordos de colaboração premiada.
O Ministério
Público tem essa característica de ir experimentando coisas, estabelecendo
determinados procedimentos para ver até onde eles podem chegar. Aconteceu isso
com os acordos de colaboração premiada.
Na “lava jato”, os
acordos foram feitos com pessoas que estavam no topo da suposta organização
criminosa, porque eram pessoas que detinham mais informações relevantes para
entregar. E as pessoas que estavam no topo também tinham mais valores para
entregar. O Ministério Público se pautou muito na questão da recuperação de
valores. Os valores recuperados são usados para argumentar que os acordos de
colaboração premiada e a “lava jato” foram um sucesso. Então, as pessoas que
estavam no topo firmaram acordos, mas que as ocupavam posições menos importantes
nas supostas organizações criminosas são as que seguirão sendo processadas.
Isso é uma distorção do mecanismo de colaboração.
Agora, eu não sou
completamente contrária à colaboração premiada. Em tese, é um bom mecanismo
para apurar fatos. Mas é preciso estabelecer critérios e mecanismos de
controle, porque é um espaço de muita autonomia do Ministério Público.
ConJur — O ex-juiz Sergio
Moro foi declarado suspeito para julgar o presidente Lula e deixou o cargo para
virar ministro da Justiça de Bolsonaro. O juiz Marcelo Bretas foi afastado do
cargo, entre outros motivos, por suspeita de ter prejudicado Eduardo Paes para
favorecer Wilson Witzel na disputa pelo governo do Rio em 2018. A “lava jato”
foi utilizada como mecanismo de perseguição de adversários políticos?
Simone Schreiber — Alguns juízes
tiveram claros propósitos políticos. Eu não me arrisco a falar nada sobre
Bretas. Ele foi afastado do cargo pelo Conselho Nacional de Justiça, mas o
procedimento está em sigilo, então não sabemos efetivamente o que motivou a
medida.
O caso de Sergio
Moro é muito mais explícito. Ele condenou um possível candidato à Presidência
do Brasil na eleição de 2018 [Lula] e logo depois abandonou a magistratura para
ser ministro da Justiça do opositor [Jair Bolsonaro]. Isso não sou eu que estou
dizendo, foi o que o Supremo Tribunal Federal disse ao declarar a suspeição de
Sergio Moro para julgar Lula.
E também houve um
movimento de Deltan Dallagnol e outros de sair do ambiente da Justiça, do
Ministério Público, para disputarem cargos políticos. Então, de certa forma,
tiveram propósito político ou depois entenderam que a projeção da “lava jato”
lhes deu capital político e resolveram trilhar esse caminho.
A ideia de se
estabelecer uma quarentena para juízes e integrantes do Ministério Público
entrarem na política é interessante. Justamente para evitar que um juiz use a
toga para fazer política, já visando atuar na área. Isso é muito ruim para a
Justiça, gera a suspeita de que ela está sendo instrumentalizada para outros
fins.
ConJur — Lavajatistas
criticam anulações de operações por nulidades processuais, dizendo que são
“filigranas jurídicas”. Eles inclusive tentaram suprimir diversas garantias com
as “10 medidas contra a corrupção”. Qual é a importância do processo penal em
uma democracia?
Simone Schreiber — Para se condenar
uma pessoa, é preciso antes que ela tenha todas as garantias previstas na
Constituição e no Código de Processo Penal. O Estado deve respeitar o devido
processo legal.
Na “lava jato”,
houve o componente dos chamados maxiprocessos, em que há muitos réus, fatos
investigados e documentos. Era preciso conciliar as regras da Constituição, do
CPP, que já tem 82 anos, e da realidade dos maxiprocessos. Nisso faltou um
pouco de bom senso. Se o CPP estabelece que o réu deve apresentar resposta à
acusação em dez dias, mas o advogado tem que examinar 700 volumes de documentos
para isso, é preciso alongar esse prazo para 30 dias, por exemplo. As coisas
foram feitas de maneira atropelada. Em várias situações, as defesas alegaram
que não tiveram condições de se contrapor efetivamente às acusações pela
complexidade dos casos, pela quantidade de documentos para examinar.
Eu não estou
dizendo que todos os juízes estavam o tempo inteiro propensos a atropelar essas
normas para condenar as pessoas o mais rápido possível. Mas talvez eles não
tenham sabido lidar muito bem com isso. É preciso partir da ideia de que se tem
que permitir a ampla defesa e tentar viabilizar isso. O CPP não oferece
respostas precisas a todas as situações. Às vezes, é preciso pensar nos
direitos dos réus e fazer uma adaptação.
ConJur — A senhora defende
que juízes deveriam trabalhar a partir da lógica do desencarceramento. Como
isso pode ser feito?
Simone Schreiber — O código dá a nós,
juízes, a possibilidade de resolver questões penais sem recorrer à prisão.
Penas de até 4 anos podem ser substituídas. Existem entendimentos formados a
partir da epidemia de Covid-19 de que a pena em regime aberto pode ser cumprida
em casa. É possível ter uma lógica de desencarceramento. Na hora de julgar as
pessoas, os juízes deveriam ter no radar o problema do sistema carcerário
brasileiro. O Supremo Tribunal Federal sinalizou nesse sentido ao afirmar que o
sistema prisional brasileiro caracteriza um estado de coisas inconstitucional.
Não dá para juízes
seguirem cegamente critérios do Código Penal pensando que não têm nada a ver
com o problema, que quem tem que viabilizar boas condições do cárcere é o Poder
Executivo. Os juízes têm que zelar pelos direitos fundamentais das pessoas
encarceradas. Elas estão privadas da liberdade, mas não estão privadas de
outros direitos fundamentais. A maneira como são colocadas no cárcere, como
vivem lá, em que condições, têm a ver com o Judiciário. É sabido que há
superpopulação carcerária, que há insalubridade. Os juízes não podem
simplesmente fazer de conta que não sabem que estão colocando pessoas nesse
ambiente.
Eu, sempre que eu
posso, substituo a pena de prisão para crimes cometidos sem violência. Há
diversas outras penas previstas no Código Penal, como a pecuniária e a de
prestação de serviços comunitários. É preciso fazer um esforço para aplicar
penas alternativas à prisão. Uma medida positiva nesse sentido é o acordo de
não persecução penal, que evita o encarceramento.
Eu sou a favor de
todas as políticas de desencarceramento possíveis. É preciso pensar além, não
se pode ficar amarrado na ideia de que Direito Penal é igual a pena privativa
de liberdade. O legislador tem apontado para esse caminho, prevendo a
substituição de penas, a imposição de medidas cautelares alternativas à prisão.
Os juízes é que são resistentes.
ConJur — Que reformas
legislativas poderiam ajudar a diminuir o encarceramento? A descriminalização
ou regulamentação das drogas seria uma boa medida nesse sentido?
Simone Schreiber — Crimes contra o
patrimônio sem violência contra a pessoa não deveriam ser punidos com prisão.
Repensar a política antidrogas é outra medida necessária. Se pelo menos
descriminalizar o porte para uso pessoal — como o Supremo está fazendo,
tendendo a estabelecer uma quantidade de drogas para caracterizar o uso e o
tráfico —, já pode ter um bom impacto para o desencarceramento.
ConJur — Após crimes de
grande repercussão, sempre surgem propostas de endurecimento da legislação
penal e processual penal. Depois de milicianos incendiarem 35 ônibus e um trem
na Zona Oeste do Rio no fim de outubro, o governador Cláudio Castro apresentou
um projeto que proíbe, entre outras medidas, a progressão do regime de cumprimento
de pena para quem portar armas de guerra; cobrar taxas de serviços públicos
como água, luz, transportes e telecomunicações; e for acusado de lavagem de
dinheiro de organização criminosa. O endurecimento penal é eficaz no combate ao
crime?
Simone Schreiber — Não. Essa é a
fórmula que temos usado desde a Lei de Crimes Hediondos (Lei 8.072/1990) e não
houve redução da criminalidade nem sensação de maior segurança para a
população. Se o endurecimento penal ajudasse a resolver o problema de segurança
pública no Brasil, estaríamos vivendo o melhor dos mundos, sem crimes na rua.
Porque esse é sempre o remédio que propõem, mesmo sabendo que ele não funciona.
A Lei “anticrime”
aumentou de 30 para 40 anos a pena máxima de prisão. A proibição de progressão
de regime já foi declarada inconstitucional pelo Supremo, porque viola o
princípio da individualização da pena. São medidas que não vão resolver o
problema de segurança pública no Brasil. Eu não sei o que resolve. Mas com
certeza não é a ampliação de penas, do encarceramento. Até porque as facções
criminosas se fortalecem nas prisões, cooptando novos integrantes. O aumento de
pena é uma medida simbólica, para os políticos poderem dizer que fizeram alguma
coisa.
ConJur — Em entrevista à
ConJur, a senhora afirmou que a entrada em vigor do instituto do juiz das
garantias pode aumentar a qualidade dos processos. Porém, muitos especialistas
criticaram a decisão do STF sobre o juiz das garantias, especialmente a
limitação da competência desse magistrado ao momento do oferecimento da
denúncia, e não ao do recebimento, como estava previsto na Lei “anticrime”.
Como avalia a decisão do STF sobre o juiz das garantias?
Simone Schreiber — A declaração de
constitucionalidade do juiz das garantias é positiva. Contudo, é importante ressaltar
que o Supremo, usando o método da interpretação conforme a Constituição, acabou
reescrevendo alguns artigos e substituindo o modelo do legislador por um que
entende que ser mais coerente constitucionalmente.
Por exemplo, a lei
aprovada previa uma regra de impedimento. O juiz que atua na investigação
ficaria impedido de atuar no processo. Isso com o propósito de preservar sua
originalidade cognitiva, que o juiz da causa não se deixasse influenciar pelas
decisões que tomou na investigação. O STF afirmou a inconstitucionalidade dessa
regra, ao argumento de violação do princípio da proporcionalidade e da
razoabilidade. É difícil identificar inconstitucionalidade na previsão de nova
regra de impedimento, já que o CPP tem diversas regras de impedimento. Parece-me
que essa escolha está na margem de discricionariedade do legislador ordinário.
Da mesma forma, o STF alterou a previsão de que competia ao juiz das garantias
receber a denúncia. Parece-me assim que o STF acabou substituindo algumas
escolhas do legislador.
ConJur — Mesmo com essas
mudanças, o instituto do juiz das garantias continua sendo positivo?
Simone Schreiber — Sim. O modelo
estabelecido pelo legislador, ao prever que o juiz das garantias receberia a
denúncia, avançava um pouco e trazia tal julgador para a fase pré-audiência.
Nesse modelo, o juiz das garantias citava o réu, recebia a resposta escrita,
decidia se iria absolvê-lo sumariamente ou aceitar a denúncia e, depois disso,
dava lugar ao juiz da causa.
Uma questão
sensível é que a ideia era que o juiz da causa não tivesse contato com os
elementos informativos produzidos na fase de inquérito, para que ele julgasse a
causa exclusivamente com base nas provas produzidas no processo, ressalvadas as
irrepetíveis, lógico. Na realidade da Justiça Federal, as provas mais
importantes são as produzidas na investigação, como as decorrentes de
interceptação telefônica, perícia ou busca e apreensão. De qualquer maneira,
essas provas iriam ser levadas para o processo, porque a Lei “anticrime” dizia
que os autos da investigação ficariam acautelados na vara e não apensados aos
autos principais, ressalvando as provas não repetíveis. E a maioria das provas
importantes produzidas na investigação não são repetíveis. Na prática, a única
prova produzida na investigação à qual o juiz não teria acesso seria a oral.
Porque as provas materiais iriam para o processo de qualquer forma.
Mas apesar dessas
alterações feitas pelo Supremo, considero que a divisão de competências entre o
juiz que atua na investigação e o juiz que atua no feito é extremamente
positiva e reforça o sistema acusatório. Vamos aguardar sua implementação e ver
como vai funcionar na prática.
EM TEMPO: Sérgio Moro e Deltan Dallagnol, atuaram ao arrepio da lei, como agentes políticos e em conluio com os interesses do imperialismo norte-americano para quebrar a conceituada indústria brasileira da construção civil, quebrar a Petrobrás e impedir a vitória de Lula nas Eleições de 2018.
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