'A aprovação da proposta sobre decisões
monocráticas do Supremo acirrou o conflito entre governo e ministros da Corte',
escreve a colunista Tereza Cruvinel
Supremo Tribunal Federal (Foto: Carlos Moura/SCO/STF)
A aprovação da PEC 08/21 pelo Senado e a reação de
alguns ministros do STF não foram um evento trivial, em que estiveram, de um
lado, senadores bolsonaristas cortejados por Pacheco com objetivos políticos,
e de outro, ministros vaidosos com alto sentimento de intocabilidade. No
meio ficou o Governo Lula, que não quis ou não conseguiu realizar uma mediação
política. Pelo contrário, acirrou o conflito com o voto de Jacques Wagner,
embora ele alegue que foi pessoal.
A PEC que proibiu as decisões monocráticas contra atos e medidas dos chefes do Legislativo e do Executivo, e as outras tantas propostas que tramitam nas duas Casas do Congresso, tendo o Supremo como alvo, são reflexos do desarranjo no funcionamento do pacto democrático traduzido pela Constituição de 1988.
Este desarranjo, em que as coisas foram sendo tiradas de seu lugar, chegou ao paroxismo no governo de Bolsonaro, que fez do Supremo seu inimigo porque a corte bloqueou seguidamente suas transgressões constitucionais e seus intentos golpistas. Muitas vezes, através de decisões monocráticas, porque a situação pedia resposta urgente, o STF derrubou medidas que ameaçavam os direitos individuais e coletivos. Vidas estavam em risco. Assim fizeram para garantir o isolamento social, coibir os tratamentos ineficazes com cloroquina, garantir atendimento aos indígenas e a compra de vacinas.
Depois vieram as questões eleitorais, as alegações contra as urnas eletrônicas. STF e TSE também foram firmes e isso nunca foi engolido pelos bolsonaristas, como estes que armam vingança no Congresso. Bolsonaro entrou na cristaleira e quebrou muita louça. Agora está fora e triplamente inelegível mas o desarranjo, que não começou com ele, persiste e aflora nesta crise da PEC. Este conflito não se resolverá com as trocas de farpas e com o congelamento da emenda na Câmara. E nem com um jantar entre Lula e alguns ministros da corte. Ou com a nomeação de um PGR e um ministro do STF do agrado de alguns deles.
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O ex-deputado José Genoíno, que foi Constituinte, que foi condenado pelo STF e conhece como poucos o funcionamento do Congresso, a Constituição e a relação entre os poderes, aponta seguidos episódios em que o pacto de 1988 foi sofrendo pequenos rasgões. Quase nos levou à ruptura com Bolsonaro e o 8 de janeiro. A democracia sobreviveu mas o tecido essencial continua esgarçado. Já no governo do primeiro presidente eleito, Fernando Collor, recorda Genoino, o STF cometeu um pecado de omissão ao não condenar aquele plano de confisco, que violou garantias e direitos individuais.
A
inconstitucionalidade foi arguida pelo PT mas o STF cozinhou o assunto, talvez
acreditando que o plano funcionasse contra a inflação. Mas veio o impeachment
de Collor e o STF cumpriu o papel que cabia no rito. FHC aprovou a reeleição
para si mesmo mas foi dentro das regras democráticas, através de emenda
constitucional. O pacto funcionou bem com ele e no primeiro governo Lula. Até
que veio o chamado mensalão, que Genoíno aponta como início do esgarçamento.
Aquilo era um grande caixa dois, prática de todos os partidos, mas a oposição,
no Congresso, fez a guerra contra Lula e o PT. Até aí, luta política. Lula,
entretanto, conseguiu se reeleger.
No julgamento da ação penal 470, muitas regras
foram quebradas. Pessoas sem foro foram julgadas e condenadas pelo STF. Provas
foram ignoradas e ministros condenaram acusados por “convicção”. A alienígena
teoria do domínio do fato amparou o punitivismo. A mídia fazia sua parte,
forçando ministros a decidir “com a faca no pescoço”.
- Depois veio o impeachment sem crime de
responsabilidade de Dilma, que o Supremo endossou. Veio a Lava Jato, e por
muito tempo a quebra do devido processo legal foi tolerada. As prisões
preventivas alongadas, as delações premiadas arrancadas com tortura
psicológica. Lula foi condenado e preso num processo irregular, e só muito
depois o STF, por decisão monocrática, declarou que a Vara de Curitiba era
incompetente para julgá-lo – recorda Genoíno.
De fato, o desarranjo que chegou ao auge com Bolsonaro começou muito antes. Dilma, no impeachment, chegou a dizer: “não ficará pedra sobre pedra”. Genoino recorda também o caso das prisões após (sem - grifo do Blog) condenação em segunda instância, que a Constituição proíbe. Mas, depois do tuíte de um general autoritário, o STF negou o habeas corpus pedido por Lula e permitiu sua prisão. Depois reviu sua interpretação. Estas e outras são coisas que alimentam o discurso dos que desejam a contenção da corte.
Mas tem algo mais, agora entre Legislativo e
Executivo: o avanço constante do Congresso, seu empoderamento crescente sobre o
orçamento. Vieram as emendas individuais impositivas, depois as de bancada, e
agora vão impor ao Governo um calendário para liberações. Isso também é uma
distorção do que está pactuado na letra da Carta de 1988.
E o que falar de decisões monocráticas dos
presidentes do Legislativo? Nenhuma tão emblemática como a decisão de Lira, de
não colocar em andamento nenhum dos muitos pedidos de impeachment contra
Bolsonaro. O orçamento secreto comprou o Congresso naquela fase.
Alguém terá que buscar a repactuação e evitar o
“aventureirismo constitucional”, diz Genoíno. Alguém poderia ter feito isso
antes da votação da PEC. Se tivesse havido diálogo, poderiam ter negociado
outra redação para a emenda. As decisões monocráticas contra decisões do
Executivo e do Legislativo seriam proibidas, exceto quando houvesse ameaça aos
direitos individuais e coletivos.
O ex-ministro Celso de Mello, que por longos anos
foi decano da corte, publicou artigo nesta sexta-feira endossando o
entendimento do ministro Gilmar, de que a PEC é inconstitucional porque mexe
com uma cláusula pétrea, a separação entre os poderes. Isso significa então que
o Congresso não pode deliberar sobre nada que diga respeito ao STF? Esta é uma
grave questão. Se a emenda for eventualmente promulgada, depois de passar pela
Câmara, e o STF a derrubar, teremos uma crise mais grossa.
A democracia, ao fim e ao cabo, diz Genoíno repousa sobre três pilares: a soberania popular, pelo voto; os direitos e garantias individuais; e o pacto de procedimentos dos poderes. Lula, com sua liderança, seu talento e habilidade política, é quem tem as melhores condições para incluir entre suas prioridades a renovação do pacto democrático. Antes que as coisas desandem.
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