'O Hamas não será destruído porque ele tem um sócio que precisa dele para sobreviver, e esse sócio é Benjamin Netanyahu', escreve o filósofo Vladimir Safatle (Professor titular do Departamento de Filosofia da USP)
Faixa de Gaza, onde ficam integrantes do grupo
islâmico Hamas, e Benjamin Netanyahu, primeiro-ministro de Israel (Foto: ABR |
Reprodução/AlJazeera)
Existe um filme de Luis Buñuel que se chama O anjo
exterminador. Nele, vemos um grupo de burgueses que vai para uma espécie de
salão de recepção e simplesmente não consegue mais sair. Não há nenhum
impedimento físico, nenhuma restrição, a não ser aquela vinda de suas próprias
vontades. Quando tentam sair eles subitamente param, perdem a força de vontade
e permanecem paralisados. A impotência vai até o desespero, cenas de violência
e degradação aparecem, até que, da mesma forma como foi natural entrarem no
salão, eles saem.
Existe um sintoma fundamental na ordem geopolítica
mundial. Trata-se do conflito palestino. Ele é como o filme de Buñuel: diante
dele todos param e preferem nada fazer, até que explode algo terrível, como os
ataques perpetrados pelo Hamas semana passada, e seguem-se ações que têm, no
fundo, um só objetivo, a saber, continuar a não fazer nada de real, continuar a
não procurar abrir caminho algum para resolver o conflito. A reação consiste
apenas em mobilizar porta-aviões, exército, discursos de força, catástrofes
humanitárias para esconder o dado elementar: a comunidade internacional não
está disposta a resolver problema algum na Palestina.
Façamos um exercício elementar de projeção. O que
acontecerá depois das ditas “ações militares” israelense em Gaza? O Hamas será
destruído? Mas o que significa exatamente “destruição” aqui? Ao contrário, não
foi exatamente assim que o Hamas cresceu, a saber, depois das ações
inaceitáveis de punição coletiva e de indiferença internacional? E mesmo se os
líderes do Hamas forem mortos, não aparecerão outros grupos alimentados pela
espiral cada vez mais brutal de violência?
Seria importante partir do dado histórico de que todas as tentativas de aniquilar militarmente o Hamas só aumentaram sua força, pois tais ações militares criaram o quadro narrativo ideal para que ele aparecesse, aos olhos de grande parte dos palestinos, como representante legítimo da resistência à ocupação. Quer dizer, só há uma maneira de vencer o Hamas e esta maneira não passa pela vitória militar, seja lá o que isso possa significar.
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Permitam-me colocar claramente o que penso e que
venho escrevendo há quase vinte anos na imprensa nacional: o Hamas não será
destruído porque ele tem um sócio que precisa dele para sobreviver, e esse
sócio é Benjamin Netanyahu. As ações feitas por Benjamin Netanyahu e seu
governo de extrema direita, com o beneplácito de potências internacionais, só
têm um efeito possível: fortalecer os sentimentos que alimentam o Hamas. Um
pouco de sensatez e de análise histórica do conflito nos levaria rapidamente a
essa conclusão. A solução está em outro lugar.
E, bem, aqui escreve alguém (e isto é fácil de
checar via internet) que nunca deixou de criticar o Hamas e seu projeto. Não
tenho ilusão alguma a respeito do que são os interesses de grupos
fundamentalistas religiosos. Falei em mais de uma vez que os palestinos têm
dois problemas para resolver: um é a política colonial do Estado de Israel, o
outro é o Hamas. Continuo pensando o mesmo. Mas, como no filme de Buñuel, a saída
desertou da vontade de quem pode resolver o conflito, a saber, a comunidade
internacional com seu sistema de pressão.
Um problema extremamente complexo?
Durante anos fomos massacrados com a eterna ideia
de que este era um conflito “extremamente complexo” ou de que suas causas
deveriam ser procuradas em alguma espécie de “ódio milenar entre povos semitas”
e coisas do gênero. No entanto, não há nada de complexo no conflito palestino.
O direito internacional, representado pela ONU (diga-se de passagem, a mesma
instituição que criou o Estado de Israel), reconhece à Palestina o estatuto
jurídico de “território ocupado”, ocupação considerada totalmente ilegal pelas
resoluções 242 e 338 há mais de cinquenta anos.
Ou seja, Israel deve respeitar a lei internacional
e devolver os territórios ocupados. Como se não bastasse, há os Acordos de
Oslo, que definem um caminho claro para a paz e a resolução do conflito. Israel
deve respeitar tais acordos internacionais, o que até agora não ocorreu.
Inclusive, o atual primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, nunca
escondeu sua recusa em aceitá-lo.
No entanto, os palestinos efetivamente se engajaram
nessa via. Durante décadas, a Organização pela Libertação da Palestina (OLP)
levou a cabo ações diretas, inclusive ataques a civis, e manteve um discurso
claramente contrário à partilha que criaria dois Estados na Palestina
histórica. E, no entanto, há mais de 30 anos, a OLP abriu mão das ações
armadas, mostrando a disposição dos palestinos a uma solução negociada para o conflito.
Há de se entender esse ponto: os palestinos que se engajaram em um processo
pacífico de negociação foram traídos. Se os Acordos de Oslo fossem respeitados,
não haveria Hamas. Qualquer solução começaria por mostrar aos palestinos que a
via diplomática pode trazer resultados efetivos.
E aqui seria importante recuperar a verdadeira
razão pela qual esse processo de paz fracassou. Ele fracassou porque o então
primeiro-ministro de Israel, Itzak Rabin, foi assassinado, não por um membro do
Hamas, não por um palestino, mas por um colono judeu. Enquanto Itzak Rabin e o
então líder da OLP, Yasser Arafat, tentavam colocar em prática o plano, colonos
afrontavam o exército israelense em processos de desocupação de assentamentos,
rabinos ultraconservadores faziam discursos incendiários contra o governo e
víamos na televisão campanhas publicitárias feitas por organizações judaicas
fundamentalistas que conclamavam os judeus do mundo, com armas em punho, a
impedirem a entrega de terras aos palestinos. O final deste processo foi o
assassinato de Itzak Rabin.
Desde então o processo de paz acabou. Pois havia um
problema de difícil resolução, esse sim um problema extremamente complexo. Há
uma ambiguidade maior no cerne da concepção israelense de nação. Por um lado,
ela é assentada na criação de um Estado moderno e laico onde haveria espaço
inclusive para os árabes (embora em número controlado).
Mas, de outro lado, a concepção israelense de nação
é assombrada por fantasmas religiosos e comunitaristas no interior dos quais um
messianismo redentor se mistura perigosamente com a tentativa de criar vínculos
orgânicos entre nação, Estado e povo. O resultado é o paradoxo gritante de um
Estado que se pretende moderno e tem um bizantino Ministério das Questões
Religiosas, com suas cortes rabínicas, seu Departamento de banhos rituais e sua
Divisão de assuntos sobre enterros. Na verdade, um espectro ronda o Estado de
Israel: o espectro do teológico-político.
Do lado de Israel, ficou claro que o avanço do
processo de paz só seria possível por meio de uma confrontação com este núcleo
teológico-político que sempre serviu de alimento para uma parte de seu
imaginário como nação. No entanto, isso seria simplesmente a morte da direita
israelense com seu comunitarismo indisfarçável e seus partidos religiosos. Para
ela, continuar o processo de paz seria levar o país a uma guerra civil.
Tratava-se então de adiar o processo de paz ad infinitum. E a melhor maneira
para isso era alimentando a popularidade de um grupo fundamentalista islâmico.
Foi assim que a direita israelense e o Hamas cresceram juntos a partir do final
do governo de Itzak Rabin. Um precisa do outro para existir.
Por isso, não há outra forma de descrever o que o
governo de Benjamin Netanyahu faz agora a não ser como um experimento suicida.
Pois ele acredita que a única coisa capaz de unificar o país é a guerra. Mas
para funcionar, essa guerra deve ser infinita, sem fim, criando uma situação de
exceção permanente. Uma sociedade fraturada como a israelense encontra na
guerra um ponto forçado de união. Através da guerra permanente, toda voz
contestadora é constrangida, a crítica dura ao apartheid de fato, à política
tipicamente colonial do Estado israelense para com os palestinos é associada,
de forma desonesta, ao antissemitismo. O que não significa ignorar expressões
de antissemitismo real que aparecem em situações de guerra e que devem ser
combatidas.
Eu insistiria que estamos diante de um experimento
suicida porque guerras dessa natureza não podem ser vencidas, elas servem
apenas para militarizar a sociedade em todos seus poros (como denunciou de
forma precisa a socióloga israelense Eva Illouz no caso de sua sociedade),
destruindo sua substancialidade. A única possibilidade de realmente vencer a
guerra seria através do puro, simples e impensável extermínio de fato dos
palestinos. Pois eles simplesmente nunca aceitarão serem tratados como um povo
inexistente ou que deve ser deslocado completamente para o leste do Rio Jordão.
Tentar aprofundar nessa via significará colocar o
mundo inteiro em risco, levar as populações dos países árabes à ebulição, com o
aumento generalizado da insegurança mundial. Há uma ilusão colonial típica que
está sendo mais uma vez atualizada aqui. Terra e liberdade são elementos
completamente conjugados. Os povos sabem que não há autonomia sem autoctonia.
Não há comunidade humana que aceite seu próprio desterro de maneira passiva.
Pode-se dizer que o conflito palestino é mais
complexo que uma situação colonial clássica, porque há uma contestação sobre
quem tem direito à autoctonia. No entanto, o direito internacional, mais uma
vez vale a pena lembrar, é claro: a autoctonia dos palestinos na Cisjordânia,
na Faixa de Gaza e em Jerusalém Oriental não tem nenhuma possibilidade de ser
contestada e a comunidade internacional tem a obrigação de defendê-la e
pressionar para sua efetivação imediata.
No entanto, não me escapa o fato de que o mundo
caminha para uma situação na qual só se governa através da generalização de
situações de crise. Uma verdadeira vontade de resolução do conflito passaria
por uma intervenção da ONU e o uso de força militar internacional como elemento
mediador, mas sequer um comunicado conjunto o Conselho de Segurança é capaz de
aprovar. A tentativa do governo brasileiro foi louvável, embora serviu apenas
para mostrar o fim de fato da ONU. Desde a invasão norte-americana no Iraque,
feita sem acordo da ONU, a única instituição capaz de mediar conflitos bélicos
deixou de existir.
Cada vez mais, entramos na era do medo como afeto
político central. Estados procuram, na verdade, perpetuar as ditas ameaças
terroristas como forma de consolidar uma política de contínua vigilância, de
intervenção policial extensa e de bloqueio de contestações efetivas. Isto é um
fenômeno mundial de mudança de paradigma de governo que vem sendo denunciado há
pelo menos duas décadas de forma sistemática por todos os lados. Com esse
conflito e seus desdobramentos, ele poderá ainda ser mais aprofundado.
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