segunda-feira, 29 de agosto de 2022

Chile convoca embaixador do Brasil em protesto contra ataques de Bolsonaro a Boric


Presidente brasileiro criticou líderes de esquerda latino-americanos no debate presidencial de domingo; declarações são 'falsas' e 'gravíssimas', disse chanceler chilena

Por O Globo

29/08/2022 Presidente do Chile, Gabriel Boric, fala durante o IV CEO da Cúpula das Américas em Los Angeles, Califórnia PATRICK T. FALLON / AFP

O Chile convocou nesta segunda-feira o embaixador brasileiro em Santiago para consultas em protesto às declarações do presidente Jair Bolsonaro sobre seu par chileno, Gabriel Boric, no debate presidencial de domingo. As falas do mandatário brasileiro, que erroneamente acusou Boric de atear fogo em metrôs durante os protestos de outubro de 2019, são "falsas" e "gravíssimas", afirmou a chanceler chilena, Antonia Urrejola.

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A fala de Bolsonaro sobre Boric veio no fim do debate, quando o presidente fazia suas considerações finais. Repetindo seus ataques frequentes a líderes de esquerda latino-americanos e tentando associá-los ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o presidente citou o argentino Alberto Fernández, o recém-empossado mandatário colombiano Gustavo Petro e Boric:

— Lula apoio o presidente do Chile também, o mesmo que praticava atos de tacar fogo em metrôs lá no Chile. Para onde está indo nosso Chile? — afirmou o presidente.

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Bolsonaro referia-se às maiores manifestações da História chilena, em outubro de 2019, que começaram com reclamações sobre o aumento do preço do metrô, mas rapidamente ganharam demandas mais amplas. Foi retrato de uma insatisfação com as condições socioeconômicas e com o governo do então presidente direitista Sebastián Piñera, demandando melhorias e reformas amplas.

Boric, à época, era deputado e atuou como um dos principais mediadores entre os manifestantes e o Legislativo chileno, inclusive para que houvesse o referendo que culminou na convocação do referendo em que os chilenos votaram pela Constituinte. Ao contrário do que diz o presidente brasileiro, o líder chileno não participou da destruição de patrimônios públicos.

— Como governo nos parece que essas declarações são gravíssimas, obviamente são absolutamente falsas (...). Lamentamos tirem proveito do contexto eleitoral para polarizarem as relações bilaterais através da desinformação e das notícias falsas — disse a chanceler.

O governo chileno, disse Urrejola, está "absolutamente convencida de que esta não é a maneira correta de fazer política quando se trata de dois chefes de Estado democraticamente eleitos". Ela classificou a relação de Bolsonaro e Boric como "respeitosa, apesar da diferença ideológica", mas disse que a desinformação "erosiona a democracia, mas neste caso também a relação bilateral".

Em uma nota emitida logo em seguida (leia abaixo a íntegra), a Chancelaria chilena ressaltou os comentários de Urrejola, afirmando que os comentários de Bolsonaro "são inaceitáveis". O comunicado diz que Boric "já manifestou publicamente as diferenças que o separam do presidente Bolsonaro, mas ao mesmo tempo sinaliza a importância de manter a relação bilateral".

No ano passado, o Chile foi o quinto maior comprador das exportações brasileiras, segundo dados do Ministério da Economia, ficando atrás apenas de China, Estados Unidos, Argentina e Holanda. As vendas, ao todo, somaram quase US$ 7 bilhões, em sua maior parte petróleo e carnes. O intercâmbio comercial entre os dois países teve seu melhor resultado no ano passado, quando um acordo de livre-comércio firmado em 2018 entrou em vigor.

A relação entre Bolsonaro e Boric, contudo, é tensa desde que antes do chileno tomar posse em março deste ano: por exemplo, o embaixador nomeado pelo Palácio de la Moneda para o Brasil, Sebastián Depolo, ainda não recebeu agrément — que na linguagem diplomática significa autorização — do Planalto. Os problemas começaram ainda na disputa eleitoral, com o presidente brasileiro deixando claro sua preferência pelo concorrente de Boric, o direitista José Antonio Kast.

Para o governo brasileiro, a preferência expressa de Boric por Lula também não cai bem. O petista havia inclusive sido convidado para comparecer à posse em Santiago, mas não compareceu — quem viajou foi a ex-presidente Dilma Rousseff. Bolsonaro também não fez a viagem, escalando o vice-presidente Hamilton Mourão para a tarefa.

O presidente brasileiro também não compareceu à posse de Fernández, em 2019, ou de Petro, no início deste mês, que também citou no domingo. Ambos defendem vocalmente Lula: o argentino chegou a visitar o petista na prisão em Curitiba quando concorria à Presidência e já o recebeu na Casa Rosada, enquanto o colombiano disse horas antes de sua posse desejar a vitória de Lula.

— Olha para onde está indo a economia da nossa Argentina. O presidente da Argentina, antes de ser presidente, visitou o Lula na cadeia em Curitiba. E o Lula apoiou ele — disse Bolsonaro, antes de dizer que 40% da população argentina vive na pobreza, fazendo uma referência à crise econômica que assombra o governo de Fernández.

Bolsonaro, em seguida, disse que "Lula apoia também Petro na Colômbia", afirmando que as medidas dele são "liberação das drogas e de presos". Referia-se às políticas do novo governo colombiano para combater o narcotráfico diante do fracasso das décadas de abordagem proibicionista que mataram milhões pelo mundo nas últimas décadas.

Bolsonaro citou também os regimes venezuelano e nicaraguense, citando que o presidente do país da América Central "persegue cristãos". Falava sobre as tensões entre a Igreja Católica e o governo de Daniel Ortega, cuja repressão contra os religiosos aumento em 2018, quando vários templos católicos deram abrigo a manifestantes feridos nos protestos que eclodiram contra Ortega.

Leia abaixo a íntegra do comunicado de imprensa emitido pela Chancelaria Chilena:

"O governo do Chile considera que as declarações formuladas contra o presidente Gabriel Boric pelo presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, durante um debate presidencial realizado no dia de ontem são inaceitáveis e não condizem com o trato respeituoso que deve haver entre chefes de Estado e nem com a relação fraterna entre dois países latino-americanos.

A utilização política da relação bilateral com fins eleitorais, com base em mentiras, desinformação e deturpações erosiona não apenas o vínculo entre nossos países, mas também a democracia, prejudicando a confiança e afetando a irmandade entre os povos.

O presidente Boric manifestou publicamente suas diferenças que o separam do presidente Bolsonaro, mas ao mesmo tempo sinalizou a importância de manter as boas relações entre os Estados do Brasil e do Chile.

Apesar das declarações infelizes, o governo do Chile manifesta sua convicção de que o nosso país e o Brasil tem não apenas uma História comum, mas também enormes desafios para enfrentarem de maneira colaborativa, razão pela qual esperar continuar a fortalecer os permanentes vínculos de amizade e cooperação entre nossos países."

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