Por Roger McKenzie e Vijay Prashad | Globetrotter – Tradução de Pedro Marin para a Revista Opera
A
maioria dos países que votaram contra a condenação da Rússia não o fizeram
porque apoiam a guerra da Rússia na Ucrânia, mas porque reconhecem que a
polarização é um erro fatal.
A guerra é uma das
faces feias da experiência humana. Tudo nela é medonho. Ela é o ato mais óbvio
de invasão e brutalidade, aspectos que sempre acompanham suas operações.
Nenhuma guerra é precisa; toda guerra atinge civis. Cada ato de bombardeio
provoca um estremecimento neurológico na sociedade.
A Segunda Guerra Mundial deu mostra desse horror no Holocausto e no bombardeio atômico de Hiroshima e Nagasaki. A partir do Holocausto e de Hiroshima, cresceram dois poderosos movimentos, um pela paz e contra os perigos de mais ataques nucleares, e outro pelo fim da divisão da humanidade e pelo não-alinhamento a essa divisão. O Apelo de Estocolmo de 1950, assinado por 300 milhões de pessoas, demandou um banimento absoluto das armas nucleares.
Cinco anos depois,
29 países da África e da Ásia, representando 54% da população mundial, se reuniram
em Bandung, na Indonésia, para assinar um documento de dez pontos contra a
guerra e pela “promoção dos interesses mútuos e a cooperação”. O espectro de
Bandung se orientava à paz e ao não-alinhamento, para que os povos do mundo
centrassem seus esforços em construir um processo de erradicação dos seus
fardos históricos (analfabetismo, doença, fome) fazendo uso de sua riqueza
social. Por que gastar dinheiro em armas nucleares quando o dinheiro deveria
ser gasto em salas de aula e hospitais?
Apesar dos grandes ganhos de muitas das novas nações que haviam emergido do colonialismo, a força esmagadora dos antigos poderes coloniais impediram que o espírito de Bandung definisse a história humana. Ao invés disso, a civilização da guerra prevaleceu. Essa civilização da guerra é revelada no maciço gasto de riquezas humanas na produção de forças armadas – suficiente para destruir centenas de planetas – e no uso dessas forças armadas como uma primeira opção para resolver disputas. Desde os anos 1950, o campo de batalha dessas ambições não foi a Europa ou a América do Norte, mas a África, a Ásia e a América Latina – áreas do mundo onde a vida humana é menos importante para as retrógradas sensibilidades coloniais.
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Essa divisão internacional da humanidade – que
predica que a guerra no Iêmen é normal, ao passo que a guerra na Ucrânia é
terrível – é definidora de nossos tempos. Há 40 guerras ocorrendo em todo o
mundo; é necessário vontade política para pôr fim a cada uma delas, não somente
àquelas acontecendo na Europa. A bandeira ucraniana é onipresente no Ocidente;
quais são as cores da bandeira iemenita, da bandeira saharaui e da bandeira
somali?
Retornar à paz, retornar ao não-alinhamento
Ou seja, pintar essa guerra como
um capricho do presidente russo Vladimir Putin é parte do exercício da guerra
permanente. Garantias de segurança à Ucrânia são necessárias, mas também são
necessárias à Rússia, o que incluiria um retorno a um regime internacional de
controle de armas sério.
A paz não virá
somente porque a desejamos. Ela requer uma luta nas trincheiras das ideias e
das instituições. As forças políticas no poder lucram com a guerra, por isso
trajam seu chauvinismo para melhor representar os negociantes de armas que
querem mais guerra, não menos. A essas pessoas, em seus burocráticos ternos
azuis, não devemos confiar o futuro do mundo. Elas falham conosco no que se
refere à catástrofe climática; falham conosco quando se trata da pandemia; elas
falharão conosco no que tange à construção da paz. Precisamos reavivar os
velhos espectros da paz e do não-alinhamento para colocá-los em voga nos
movimentos de massa, que são a única esperança desse planeta.
Não é um passo meramente sentimental voltar ao passado para dar vida ao Movimento dos Não-Alinhados hoje. As contradições do presente já levantaram o espectro do não-alinhamento em partes da África, Ásia e América Latina. A maioria desses países votou contra a condenação da Rússia não porque apoiem a guerra da Rússia na Ucrânia, mas porque reconhecem que a polarização é um erro fatal. O que necessitamos é uma alternativa aos dois campos mundiais da Guerra Fria.
Esta é
a razão pela qual os líderes de muitos desses países – do presidente chinês Xi
Jinping ao primeiro-ministro indiano Narendra Modi, passando pelo presidente
sul-africano Cyril Ramaphosa – fizeram um apelo, apesar de suas orientações
políticas bastante divergentes, por uma superação da “mentalidade da Guerra
Fria”. Eles já estão dando passos em direção a uma plataforma não-alinhada. É
esse movimento da história que nos provoca a refletir sobre um retorno aos
conceitos do não-alinhamento e da paz.
Ninguém quer imaginar
as implicações totais de um cerco à China e à Rússia pelos Estados Unidos e
seus aliados. Até países que são aliados próximos dos Estados Unidos – como a
Alemanha e o Japão – reconhecem que se uma nova cortina de ferro for posta ao
redor da China e da Rússia, ela seria fatal para seus próprios países. A guerra
e as sanções já criaram sérias crises políticas em Honduras, Paquistão, Peru,
Sri Lanka, com a expectativa de mais crises à medida que os preços dos
alimentos e combustíveis cresçam astronomicamente. A guerra é muito cara para
as nações pobres. Os gastos da guerra estão comendo o espírito humano, e a
própria guerra tem aumentado o sentimento de desespero dos povos.
Os guerristas são
idealistas. As guerras deles não resolvem os maiores dilemas da humanidade. As
ideias de não-alinhamento e paz, por outro lado, são realistas; elas oferecem
respostas às crianças que querem comer e aprender, brincar e sonhar.
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