Por Larissa Ramina (*)
A Rússia não pode levar o rótulo de ser a violadora
exclusiva do direito internacional, e tampouco de ser a causadora exclusiva do
conflito armado
15 de março de 2022
(Foto: Irina Rybakova/Serviço de Imprensa das
Forças terrestres ucranianas/via Reuters)
As violações ao direito internacional a partir da Segunda Guerra Mundial foram variadas e frequentes. Muito longe de querer justificar a agressão russa contra a Ucrânia, é importante lembrar que EUA, União Europeia (UE) e OTAN protagonizaram inúmeros atentados à legalidade internacional, colaborando para enfraquecer o já fragilíssimo ordenamento jurídico internacional, e colocando a manutenção da paz e da segurança internacionais à prova. Por óbvio, isso não significa, nem de longe, que a Rússia estava autorizada a partir para a agressão militar, ainda que pudesse ter preocupações legítimas de segurança. Significa, sim, que a Rússia não pode levar o rótulo de ser a violadora exclusiva do direito internacional, e tampouco de ser a causadora exclusiva do conflito armado.
Há que se falar, portanto, em responsabilidade coletiva pela guerra na Ucrânia, que cabe à Rússia, mas também cabe a todos aqueles que alimentaram a fogueira do confronto militar à beira de suas fronteiras, tentando integrar a Ucrânia à OTAN, inclusive a partir de métodos espúrios. O processo de desestabilização do Estado ucraniano não começou agora.
No que diz respeito à violação do princípio internacional basilar da proibição da ameaça e do uso da força, para ficarmos só na história recente, basta lembrar dos bombardeios liderados pelos EUA na Sérvia, que não foram autorizados pelo Conselho de Segurança (CS) da ONU e que foram duramente criticados pela Rússia, sua aliada histórica. Por isso, a declaração de independência do Kosovo é um precedente que a Rússia invoca com frequência para justificar sua intervenção na Crimeia, já que naquele caso a independência do Kosovo foi rapidamente reconhecida pelos EUA e pela maioria dos membros da UE.
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Em seguida, vieram as intervenções dos EUA no Afeganistão e
no Iraque, sem o respaldo da Carta da ONU. Nenhum desses conflitos recebeu
apoio do CS. As consequências catastróficas tanto para o Afeganistão quanto
para o Iraque são conhecidas por todos. O uso paradoxal e cínico da Guerra ao
Terror, a partir dos atentados de 2001, objetivando alcançar os interesses
geoestratégicos dos EUA, foi definitivo para o desencadeamento de inúmeros
conflitos entre antigos e novos rivais. Em 2011, as intervenções da OTAN na
Líbia para derrubar o regime de Muammar Gaddafi também violaram o direito
internacional, da mesma forma que as intervenções na Síria contra o regime de
Bashar al-Assad.
Essa lista pode crescer muito mais com o acréscimo
de violações de espaço aéreo sem autorização, financiamento de operações
militares secretas, tortura de suspeitos de terrorismo, espionagens e,
principalmente, com as operações que se enquadram dentro da estratégia de
guerras híbridas que promovem golpes de Estados não militares. A guerra atual é
consequência de uma série de fatos e decisões que remontam ao final da guerra
fria, mas certamente os golpes de Estado ocorridos em 2004 e em 2014 na Ucrânia
constituem um componente crucial para que se chegasse às vias de fato, em 24 de
fevereiro de 2022.
A guerra híbrida é entendida por Andrew Korybko
como uma mescla de “revoluções coloridas” com guerras não convencionais.
Trata-se de uma estratégia mais barata que a guerra militar, e cujo custo
político também é muito menor do que aquele provocado por tanques nas ruas e
por bombas despejadas por aviões. Também é chamada de guerra assimétrica,
irregular, indireta ou difusa, na qual são atacados sentimentos e percepções
dos cidadãos.
A chamada “revolução colorida” é compreendida como um movimento de desestabilização, aparentemente espontâneo, que visa uma mudança de governo com base nos valores da democracia e do combate anticorrupção. Uma de suas características é que sempre ocorre em Estados cujos governos não se alinham aos interesses dos EUA, sendo que o governo que resulta do regime change é de cunho neoliberal pró-ocidental.
Muitas
dessas “revoluções” aconteceram nos países que compunham a antiga União
Soviética, como a “Revolução Rosa” na Geórgia em 2003 e a “Revolução Laranja”
de 2004 na Ucrânia, que visou a anular a eleição de Viktor Yanukovych e levar
ao poder seu adversário, Viktor Yushchenko, que era pró-Ocidente. Trata-se de
estratégia que, acima de qualquer dúvida, configura violação do princípio da
não-intervenção, princípio fundamental do direito internacional.
A década seguinte à Revolução Laranja foi marcada
por uma série de instabilidades políticas e econômicas, e por fatos que
desconstruíram algumas inverdades sobre a Ucrânia. Efetivamente, a política do
país sofre influências externas, mas não resulta simplesmente da dicotomia
Rússia e Ocidente. Os líderes ucranianos seguem suas tendências pró-ocidente ou
pró-Rússia, mas desde que estas estejam alinhadas aos seus interesses políticos
e econômicos.
Os protestos de 2014 na Praça Maidan – o famoso “Euromaidan” - foram, na verdade, a reprodução da Revolução Laranja, um golpe de Estado implementado pelos EUA e suas agências governamentais e não governamentais, com o envolvimento de empresários, diplomatas e políticos, para precipitar o fim do governo de Yanukovych. À época, o parlamentar Oleg Tsariov denunciou, no Parlamento ucraniano, que havia uma estratégia orquestrada de dentro da embaixada dos EUA pelo menos desde 2012, preparada por especialistas em guerra de informação e descrédito das instituições do Estado, com o objetivo de usar o potencial da mídia para a manipulação da opinião pública e a organização de protestos.
Eram as mesmas técnicas usadas na Tunísia, no Egito,
na Líbia e Síria, durante a denominada Primavera Árabe. Os referidos
especialistas pertenciam a ONGs organizadas pela CIA e financiadas,
principalmente, pela U.S. Agency for International Development (USAID), National
Endowment for Democracy (NED), bem como pela Open Society
Foundations (OSF), Freedom House, entre outras. Essas ONGs
atuaram desde a década de 1990 como fachada para promover a política de regime
change sem a necessidade de golpes militares. Por isso, a guerra
militar na Ucrânia é também consequência do uso da estratégia da guerra híbrida.
(*) Professora de Direito
Internacional da UFPR, Membro da ABJD – Associação Brasileira de Juristas pela
Democracia
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